Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo da Quaresma (2023).
“E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)
Nestes
próximos três domingos da Quaresma a liturgia nos apresenta três grandes
relatos do evangelho de João: a samaritana, o cego de nascimento e a
revivificação de Lázaro.
A expressão
“Eu sou”, característico do quarto evangelho, se encontra nestas três
cenas: “eu sou a Água viva”, “eu sou a Luz”, “eu sou a Vida”. São
imagens-símbolo que des-velam e nos ajudam a compreender a verdadeira
identidade de Jesus; ao mesmo tempo, são imagens que também revelam nossa
identidade. É no encontro destas duas identidades que se fundamenta o sentido
profundo do seguimento de Jesus.
A Quaresma se apresenta como
momento oportuno para enraizar nossa vida n’Aquele que “morreu de tanto viver”;
afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não de uma religião, de uma
doutrina... Seguir Jesus implica tornar visível em nossa vida o modo de ser e
viver d’Aquele que foi o “biófilo”: amigo da vida.
O relato deste domingo – encontro
de Jesus com a samaritana – é uma verdadeira catequese, que nos convida ao
seguimento d’Aquele que é a Fonte da Vida. Nem no templo, nem em Jerusalém, nem
em nenhum outro lugar se pode viver o verdadeiro culto, que se revela como
encontro e identificação com Jesus.
Muitas vezes, o que entendemos por
prestar culto é apenas idolatria: a tentativa de domesticar e manipular Deus
segundo os nossos interesses.
Uma mulher da Samaria chega a
um poço para tirar água, alheia a tudo o que ali a espera e distraída na
trivialidade de sua vida cotidiana que não se abre ao imprevisível: vai só
buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua casa com ele cheio. Não há
mais expectativas, nem mais planos, nem mais desejos.
Mas o imprevisível está lhe
esperando na pessoa daquele galileu sentado na beira do poço e que inicia uma
conversação com ela sobre coisas banais, talvez para não a assustar: falam de
água e de sede, de poços e de velhas rixas entre os povos vizinhos, coisas de
todos os dias. Repentinamente, irrompe a linguagem “das coisas do alto”, o dom,
uma água que se converte em manancial vivo, a promessa de uma sede pacificada
para sempre, um Deus em busca do ser humano, fora dos espaços estreitos de
templos e santuários.
E, no final da cena, o cântaro
que era símbolo da pequena capacidade que está disposta a oferecer, fica
esquecido junto ao poço, agora já inútil pois não pode conter uma água viva.
A
sede da samaritana – e a de Jesus – é a mesma sede de todo ser humano: é
insatisfação radical que não pode ser saciada por nada humano. A sede
representa as necessidades e aspirações fundamentais do ser humano: sede de
sentido e de plenitude, sede de comunhão e de encontro, sede de vida...
Somos
pessoas-sede!
A sede é uma água que nos habita e
nos dá vida. A sede é fundamental, essencial. O nosso coração é um
«interminável reservatório de sede. Sede de amor. Sede de verdade. Sede de
reconhecimento. Sede de razões de viver. Sede de um refúgio. Sede de novas
palavras e de novas formas. Sede de justiça. Sede de humanidade autêntica. Sede
de infinito» (José Tolentino Mendonça, Elogio da Sede).
Como
um bom pedagogo, Jesus acompanha a samaritana a descobrir o desejo de água
fresca, a saudade humana de amor e felicidade.
Em
termos orantes, o ser humano, todos nós, temos “sede do Deus vivo”
(Sl 42,3), que brota de nossa terra ressequida, rachada, sem água: suspiramos
como a corça suspira pelas torrentes de água, por Deus. Só o Senhor nos conduz
para as fontes tranquilas (Sl 22).
Neste precioso e profundo
relato do evangelho de João são tantos os temas que o autor vai alinhavando, a
partir de diferentes níveis (histórico, simbólico, espiritual), que se torna
impossível aprofundá-los em um breve comentário. A imagem da sede remete
à nossa aspiração profunda, incapaz de ser saciada por nenhum objeto. A imagem
da água, por sua vez, nos remete à nossa identidade original, que está
brotando constantemente em nosso interior.
Jesus aparece como o mestre que
nos liberta de enganos e de falsas identificações, para que possamos entrar em
contato com a “água viva” que Ele mesmo já saboreia, a única que torna possível
“nunca
mais ter sede”.
Essa água não é “algo” – algum
objeto que possa nos preencher – nem se encontra longe de nós. Constitui nosso
núcleo mais profundo. O que normalmente acontece é que – como a samaritana –
estamos longe dela. Ao viver “fora” de nós, desconectados da fonte, nos
acontece aquilo que S. Agostinho lamentava:
“Tarde te amei, beleza sempre
antiga e sempre nova, tarde te amei! No entanto, Tu estavas dentro de mim e era
eu quem estava fora”.
O importante é saber que a “beleza sempre antiga e sempre
nova” não é
“algo” (ou “alguém”) separado de nós, embora possamos nos dirigir a ela em
chave relacional, nomeando-a como um “Tú”.
É outro nome da “água” de que
falava Jesus, e constitui nossa identidade última, aquela na qual nos
reconhecemos quando nossa mente se silencia; aquela que saboreamos quando,
simplesmente, nos deixamos ser; aquela que está sempre a salvo e que, para além
das aparências mentais, partilhamos com todos os seres.
O encontro com Jesus move a
samaritana e, nos convida também, a descobrir o manancial de água viva que flui
em nossas entranhas em lugar de continuar sendo buscadores de “poços no
deserto”.
Jesus
espera a samaritana, como espera cada um de nós, ali onde está a trama de nossa
vida. Ele inicia sempre o encontro pedindo-nos daquilo que já recebemos, do que
já temos... Junto a Sicar ou ao lado de nossos próprios poços... Não é preciso
percorrer um caminho diferente, não pede a ela, nem a nós, ir a nenhum templo,
nem lugar sagrado; nossa própria vida, com as circunstâncias nas quais vivemos,
é o lugar em que Jesus se faz presente. Às vezes o escutamos e outras nem
sequer o vemos.
Ali
nos pede, como à samaritana, que entremos no mais íntimo de nós mesmos, que
desçamos ao nosso próprio centro, à nossa realidade profunda, que estejamos
atentos à nossa própria fonte e à fonte dos outros. O encontro com Jesus não
acontece na superfície de nossa vida, no banal ou impessoal, nas aparências ou
falsas imagens que tantas vezes alimentamos. A presença d’Ele des-vela (tira o
véu) nosso manancial, muitas vezes bloqueado por uma cultura da exterioridade
que nos resseca e torna estéril nossa vida.
Em nosso
percurso existencial encontramos, muitas vezes, pessoas que são verdadeiras nascentes.
São límpidas e transparentes, inspiradoras e mobilizadora, habitualmente
delicadas. Estar na presença delas é saciar nossa sede, saímos renovados. São
pessoas-fonte que despertam em nós o desejo de acessar nosso manancial interior
de desejos, criatividade e busca... É ali, na fonte interior, que a vida se
renova.
Outras
vezes nos encontramos com pessoas que são verdadeiros lençóis de água.
Subterrâneas, circulam debaixo da terra, discretas, silenciosas, mas
surpreendentemente criativas. Trabalham no silêncio e fazem mover a engrenagem
do mundo com seus gestos escondidos, simples, mas eficazes; suas presenças
fazem a diferença. Sem elas não seria possível a vida.
É certo que também há as pessoas
pântano, pessoas charco, pessoas “águas paradas” ou águas poluídas, pessoas “enxurrada”
que tudo destroem. Claramente, nem todas as águas são boas!
Bebemos de muitas águas e
partilhamos muitas fontes. Talvez em nós convivam agora, e em diversas fases da
vida, muitas destas águas. A água é dinâmica, viva. Como nós. Não somos
estáticos, mas vamos no expandindo ao longo da vida, regando ambientes secos e
áridos. Às vezes pensamos que só quando estivermos saciados poderemos saciar,
ou só quando formos água boa poderemos matar sedes. No entanto, em nós convivem
miséria e grandeza, força e fragilidade, estagnação e movimento, água boa e água
pior. Simultaneamente, somos água e somos sede. E o encontro destas duas
realidades constitui nossa verdadeira identidade.
Tentar só guardar a nossa água ou
permanecer fechados na nossa sede faz-nos definhar e morrer. Sondar as nossas
águas e oferecer as nossas sedes é caminho comum de vida e redenção.
Afinal, Jesus fez-se sede para nos
redimir.
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração:
Somos seres insaciáveis, insatisfeitos; vivemos eternamente buscando, sem saber o quê.
Em contato com o “poço infinito” (nosso interior), sentimos a necessidade de
preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenchemo-lo com “coisas”:
busca de poder, posses, prestígio... e sentimo-nos frustrados, porque nada nos satisfaz. Precisamos ativar outras
“sedes”.
- Dê nomes às suas “sedes existenciais” que o(a) mantém criativo(a),
buscador(a)...
- Escave
seu interior e verifique a “qualidade” da água que brota do seu manancial?
Amei …. Estava conversando s/ isso com um amigo, pois temos uma pessoa que amamos muito que busca a felicidade nas coisas materiais :(
ResponderExcluir👆🏻Mãe carioca 😍
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