sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Quaresma: de que temos fome?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º  Domingo da Quaresma (2023).

“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4)

 

O primeiro domingo da Quaresma nos des-loca até o “deserto das tentações”; ali Jesus se deparou com as grandes “fomes que desumanizam”: “pão do ego”, “poder auto-centrado”, “vaidade estéril”.

Jesus foi conduzido ao deserto imediatamente depois do seu batismo, com a palavra do Pai ressoando em seu coração: “Tu és meu filho amado...”; mas agora, no deserto, vai escutar outras palavras que “tentam” convencê-lo para que não ponha o centro de sua vida nesse amor, mas no poder, na vida fácil, na fama, nas posses... O relato das tentações resume simbolicamente outros momentos da vida de Jesus nos quais esteve submetido à alternativa entre “a maneira de pensar de Deus” ou “a maneira humana”.

As tentações foram uma ocasião privilegiada para Jesus ativar as “grandes fomes que humanizam”: fome de vida doada, fome do Reino, fome de comunhão, de pão partilhado, de compromisso solidário...

Conduzido pela força do Espírito, Ele viveu uma integração a partir de seu coração e não se deixou levar pelas aparências enganosas.

Sua vocação à messianidade ficou clara no batismo; agora, tratava-se de buscar os meios para viver sua missão. No seu discernimento, Jesus sentiu que o poder, a riqueza, o prestígio não são “meios” para realizar a Vontade do Pai; pelo contrário, inspirado pelo Espírito, elegeu o caminho do esvaziamento de si, da pobreza e do compromisso solidário com os mais pobres e excluídos. Sua missão como Messias devia começar nas periferias, junto aos abandonados pelo poder religioso e civil da época.

À luz do discernimento de Jesus, também nós, durante esta Quaresma, seremos conduzidos pelo Espírito ao deserto interior para o despertar das “fomes” que nos tornam mais sensíveis, abertos à realidade, comprometidos na partilha do “pão”, que é dom e deve chegar a todos.

A Campanha da Fraternidade (CF) deste ano nos alerta para o drama da fome, escândalo e incoerência na vivência do seguimento de Jesus.

Sabemos que a fome e a sede são mecanismos fundamentais dos seres vivos. Todo ser vivente necessita nutrição e hidratação, mas, nos seres humanos, estas necessidades biológicas têm caráter social. Em muitas culturas humanas, compartilhar o alimento e a bebida revela-se como gesto de socialização e de integração.

Na experiência cristã, esta necessidade vital é transladada ao campo da fé: o alimento é dom do Criador para todos. O problema crônico da atualidade não é unicamente a satisfação das necessidades básicas, mas também o despertar de uma consciência que exija a justa distribuição dos recursos naturais, para que a humanidade cultive o melhor de si mesma e viva a solidariedade e a justiça como um projeto social alternativo frente às políticas egoístas e concentradoras de bens.

A CF nos revela que a fome tem várias raízes (escassez de recursos, alterações climáticas, subdesenvolvimento de alguns povos...); no entanto, em sentido mais profundo, ela provém de duas causas principais: a) o egoísmo de grupos e indivíduos, que se apropriam dos recursos de todos e não partilham seus produtos; b) a injustiça de um sistema político e econômico que não se preocupa com o bem comum. Ter alimento faz parte dos direitos fundamentais de toda pessoa, um direito que deve ser garantido pelo Estado.

A pedagogia quaresmal, portanto, nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças, centradas na riqueza, no poder, na vaidade.  Inspirados pelo “discernimento” de Jesus no deserto, somos também movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido de maneira intensa, o Espírito nos conduzirá ao fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida” onde há fartura de pão.

Por isso, é preciso ampliar nosso interior para despertar outras fomes.

O lema da CF – “dai-lhes vós mesmos de comer”nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais, criatividade, espírito de busca... São alimentos que plenificam e dão sabor à nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento salutar”.

Afinal, alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.

Com frequência, nossa existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, aparecem muitos elementos que nos são familiares: necessidades, ansiedade, insegurança, vazio, insatisfação... Todos eles, à primeira vista, nos fazem tomar consciência que somos seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que nos movimenta na busca de algo para preencher nosso vazio?

De fato, o ser humano é um ser insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada  lhe satisfaz.

Não são as “coisas exteriores” que nos tentam. O que nos tenta é a maneira injusta, perversa com o qual utilizamos as coisas, o espírito com o qual vivemos a nossa vida. Só o Pão da Palavra pode preencher nosso interior; só um alimento nos plenifica: “fazer a Vontade do Pai”.

Aqui, também é preciso nos perguntar: - qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?

Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de nós mesmos em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).

A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.

“Dai-lhes vós mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de famintos, presentes em nossa realidade: famintos de alimento, de proximidade, de justiça, de comunhão, de afeto...

Jesus ensina que a dinâmica do Reino é a arte de compartilhar. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento necessário para todos os que passam fome... O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando.

O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado.

O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.

Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.

O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.

O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!

Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar.

No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto, brilhará tua luz como a aurora” (Is 58,7).

Texto bíblico: Mt 4,1-11

Na oração:

Já paramos para pensar na abundância de recursos e nutrientes em nosso coração e que poderíamos compartilhar com os outros? Nem sempre se trata de encher estômagos vazios. Não só o estômago tem necessidades. Há outras muitas necessidades vitais no coração humano. Nosso coração é habitado pelo impulso do “mais”; ali não há carência. Em nossos celeiros interiores há abundância de alimentos que nos humanizam.

- Quais são as “fomes” que mobilizam sua criatividade e seus melhores recursos? São “fomes” egocentradas ou oblativas, fomes auto-centradas ou abertas à solidariedade e partilha?

- Visite seu “celeiro interior”; ative suas “reservas” de bondade, recursos, beatitudes originais...

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

QUARESMA: jejum que desperta “outras fomes”

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da Quarta-feira de Cinzas (2023), que inicia o Tempo Litúrgico da Quaresma. Desejamos uma santa "travessia quaresmal" a todos.

“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17) 

Mais uma vez a Quaresma vem ao nosso encontro e nos convida a recomeçar um caminho novo; talvez seja necessário refazer nossa rota de vida pois nos desviamos por caminhos que levaram a um auto-centramento, à superficialidade, à frieza nas relações com os outros, ao consumismo, ao afastamento da presença de Deus.

A vivência quaresmal nos convida a descer até à raiz da vida, à fonte germinal, porque só a partir dali é que podemos construir o fundamento de uma nova vida centrada no seguimento de Jesus.

Diante do novo que a Quaresma nos propõe viver, na realidade o que importa não é tanto o caminho pessoal que devemos percorrer (podemos cair num intimismo e numa vivência piedosa sem atitude compassiva diante dos outros). O decisivo são os encontros surpreendentes que acontecem ao longo da travessia do deserto existencial, sobretudo na relação com os pobres, excluídos, aqueles que estão à margem da vida...

A Campanha da Fraternidade deste ano quer despertar em nós uma sensibilidade solidária com aqueles que são vítimas de uma estrutura social e política que concentra os bens nas mãos de poucos, de maneira especial os alimentos. “Fraternidade e fome” denuncia a vergonhosa chaga social dos famintos em um país que é grande produtor de alimentos. A fome clama aos céus e ressoa em nosso coração; ela é expressão de uma profunda incoerência dos cristãos que se dizem seguidores d’Aquele que veio multiplicar os alimentos. Estamos muito distantes das primitivas comunidades cristãs que “tinham tudo em comum, partiam o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46).

“Convertei-vos e crede no Evangelho”: este apelo ressoará em todas as igrejas e comunidades cristãs nesta Quarta-Feira de Cinzas; certamente terá uma ressonância especial em nosso interior, pois irá direto ao mais profundo em nós, ao coração, onde é gerada a confiança que afasta os medos, a aliança que gera relações verdadeiras, a meta que dá sentido à nossa vida. É ali, nas profundezas de nosso ser onde nasce o amor maior, capaz de expandir nossa vida; é ali onde aprendemos a amar ao Tu que nos habita; ali onde aprendemos que em cada um está presente um desejo de infinito que só o Tu divino pode preencher. É também ali, justamente ali, onde nascem o jejum, a esmola e a oração, ou seja, as atitudes vitais que nos afastam do superficial e nos fazem descobrir o essencial: vida que se faz partilha, amor que se doa, sensibilidade que se compromete.

A vivência quaresmal nos faz descer em direção à nossa própria humanidade; ao mesmo tempo, somos também impulsionados a descer em direção à humanidade dos outros; ela visa colocar “ordem” nos nossos afetos, esvazia nosso ego e desperta nossa solidariedade para com tantos irmãos nossos que carecem do mais essencial, em parte, pelo mau uso que fazemos dos recursos da natureza, em parte devido à nossa acumulação e monopolização desmedida deles.

Assim, o Tempo Quaresmal nos sensibiliza a viver o verdadeiro sentido das conhecidas “práticas quaresmais”: jejum, esmola e oração.  Tais práticas nos movem a sair do nosso “ego inflado” e entrar em sintonia com os outros, com a natureza e com o Criador; tal experiência ativa em nós a generosidade, o despojamento, o verdadeiro sentido da pobreza evangélica e, sobretudo, o sentir-nos irmão com o irmão. Quem sabe partilhar nunca se empobrece, pelo contrário, se enriquece infinitamente.

Para que isto aconteça, a liturgia da Quarta-feira de Cinzas nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.

À luz da Campanha da Fraternidade deste ano, o jejum adquire um novo sentido; em primeiro lugar, porque nos associa ao jejum de Jesus; e, em segundo lugar, porque nos inspira a viver uma relação justa e harmoniosa com os alimentos, não nos deixando possuir por eles e nem querendo possuí-los (afeição desordenada). A justa relação com as coisas e os alimentos consiste em reconhecer com gratidão o valor destes dons que Deus criou para suprir as necessidades básicas de todos.

Com o jejum aprendemos a conhecer e a ordenar nossos diferentes apetites mediante a moderação do apetite fundamental e vital: a fome. Aprendemos, desta maneira, a regular nossas relações com os outros, com a realidade exterior e com Deus, relações muitas vezes motivadas pela voracidade. Ao mesmo tempo, o jejum nos desperta a “fome essencial”: fome de sentido, fome do Reino, fome em favor da vida.

No sentido bíblico, o jejum vai além de um ato voluntário: significa uma “atitude de vida”; ele nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum tem sentido quando brota da sensibilidade que evita o desperdício, o consumo desenfreado, o esbanjamento.

Na linguagem inaciana, jejuar é “sair do próprio amor, querer e interesse”, ou seja, viver na simplicidade de quem renuncia a um “eu inflado” em favor de um “mundo diferente”, onde predomina a partilha.

Jejuamos para crescer; jejuamos para recordar que as “coisas” não são um fim, mas um meio; jejuamos como forma de olhar ao redor e recordar que a realidade é muito mais ampla que nossa própria situação.

Jejuar não é “deixar de comer”. É aceitar de maneira consciente que nossos desejos, nossas necessidades, nossos interesses, nossas preocupações não são o centro do mundo.

Por isso, jejuar pode ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua...; purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo.

Por lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê vivemos?

A esmola (“elemosyne”) sempre esteve ligada à compaixão e piedade. Quem partilha “o ser e o ter” revela-se compassivo e misericordioso. Trata-se, fundamentalmente, da inclinação para com os desfavorecidos.

A misericórdia (qualidade da esmola) é a atitude própria de quem tem um coração sensível à miséria do outro. Mantém profundamente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva. Está atenta à necessidade de cada pessoa, que em uns casos será econômica, em outras psicológica, em muitos afetiva...

Uma das qualidades mais atraentes da esmola é precisamente sua capacidade para criar laços de comunhão. Se cada um põe seus bens a serviço dos outros e se deixa socorrer em suas necessidades, criará verdadeira comunidade. A esmola – misericórdia em ação – é uma realidade central para o cristão. Trata-se de uma virtude tão querida e apreciada pelo Senhor que a pôs em prática fazendo-se, Ele mesmo, “esmoleiro”.

Por fim, a Quaresma nos revela o verdadeiro sentido da oração: ela é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.

A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...

Texto bíblicoMt 6,1-6.16-18

Na oração:

- Mobilize todo o seu ser para viver com mais intensidade este “percurso quaresmal”;

- Alimente ânimo e generosidade para deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus;

-  Ao longo da Quaresma, você é movido(a) a “cristificar” suas relações básicas: com Deus, com os outros, com as coisas e consigo mesmo; verifique sua vivência frente a estas relações: qual delas está mais fragilizada? como alimentá-las? como torná-las mais oblativas, abertas...?

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

A mansidão é a plenitude da força

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 7º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Vós ouvistes o que foi dito: ‘olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo...” (Mt 5,38) 

Não é preciso ser um especialista em análise da realidade para perceber e sentir que está se difundindo na nossa sociedade uma linguagem que deixa transparecer o crescimento da agressividade e do ódio. Cada vez, com mais frequência, ouvimos e lemos nas “redes sociais” insultos agressivos, intolerantes, preconceituosos, proferidos só para humilhar, desprezar e ferir a dignidade do outro. São “palavras ácidas” nascidas da rejeição, do ressentimento, da vingança...; palavras proferidas sem amor e sem respeito, que envenenam a convivência e causam profundas rupturas nas relações interpessoais; palavras que emergem de interioridades mesquinhas, vazias, baixas... As conversações, nos espaços públicos e privados, estão sendo tecidas de expressões injustas que espalham condenações e semeiam suspeitas.

Assim, vai sendo gestado, lenta, mas implacavelmente, um espírito de combate, de linchamento, uma guerra de mentiras, um fogo cruzado carregado de desprezos, revanches e incompreensões frente àqueles que pensam diferente, creem diferente, amam diferente.

A virtude da mansidão está cada vez mais distante das esferas públicas e das relações pessoais.

E isso não é um fato que acontece só na convivência social. É também um grave problema no interior da Igreja. São divisões, conflitos e enfrentamentos de “cristãos em guerra contra outros cristãos”. Trata-se de uma situação tão contrária ao Evangelho que o Papa Francisco sentiu a necessidade de nos dirigir um apelo urgente: “não à guerra entre nós!”

Assim fala o Papa: “Dói-me comprovar como em algumas comunidades cristãs consentimos diversas formas de ódios, calúnias, difamações, vinganças, ciúmes, desejos de impor as próprias ideias à custa que qualquer coisa, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. A quem vamos evangelizar com esses comportamentos?”

Diante desse contexto, onde imperam a prepotência, a agressividade e os radicalismos, ressoa estranho as palavras de Jesus: “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”. Parece um grito ingênuo, proferido no deserto da desumanização.

No entanto, talvez sejam as palavras que mais precisamos escutar nestes momentos em que, submersos na podridão do ódio e da intolerância, não sabemos o que fazer de concreto para ir arrancando a violência do nosso mundo e do nosso coração.

E é precisamente aqui onde o evangelho de Jesus tem muito a iluminar, não para oferecer técnicas para resolver conflitos, mas sim para nos ajudar a descobrir com que atitudes devemos abordá-los.

Há uma convicção profunda em Jesus: não se pode vencer o mal apelando à espiral do ódio e da violência.

Já dizia Martin Luther King que “o último defeito da violência é que gera uma espiral descendente que destrói tudo o que engendra. Em vez de diminuir o mal, aumenta-o”.

Sempre há tentativas de justificar, em algumas circunstâncias, a legitimidade da violência. No entanto, Jesus nos convida a trabalhar e lutar sempre para que ela não seja nunca justificada. Por isso, é decisivo buscar sempre caminhos que nos conduzam à convivência fraterna e não ao fratricídio.

“Amar os inimigos” não significa tolerar as injustiças e retirar-se comodamente da luta contra o mal. O que Jesus viu com claridade é que não se luta contra o mal quando se destrói as pessoas. É preciso combater o mal, mas sem buscar a destruição do adversário.

A dificuldade maior para compreender o “amor aos inimigos” está no fato de que confundimos “amor” com sentimento. O amor evangélico (ágape) não é instinto, nem sentimento. Portanto, não podemos esperar que seja algo espontâneo. O verdadeiro amor, seja ao inimigo ou a um filho, não é o instinto que nasce de nosso ser biológico. O amor ágape é algo muito mais profundo e humano. Nem sequer nossa razão pode nos conduzir a este nível.

Amar o inimigo não é questão de voluntarismo, mas atitude de vida. Um exemplo: no mar sempre haverá ondas, de maior ou menor tamanho, mas sempre estarão aí. Ao chegar no litoral, a mesma onda pode encontrar-se com a rocha ou encontrar-se com a areia. Contra a rocha, quebra-se em mil pedaços; contra a areia, ela se desfaz suavemente.

Os inimigos sempre vão aparecer em nossas vidas; mas a maneira de encontrar com eles dependerá de cada um de nós. Se somos rocha, o encontro se manifestará com estrondo e todos sofrerão danos. Se somos praia, todo seu potencial de violência ficará anulado e chegará até nós com a maior suavidade.

Um detalhe, a rocha e a areia são constituídas da mesma matéria, só muda seu aspecto exterior.

“Assim seremos filhos de nosso Pai...”  Um Deus que ama a todos de maneira igual, porque seu amor não é a resposta às atitudes ou às ações, mas é anterior a toda ação humana. Deus nos ama não porque somos bons, mas porque Ele é bom e ama infinitamente a todos. É da essência de Deus: “Deus é amor” permanentemente. Da mesma maneira, o amor que temos para com os outros não tem sua origem nem é condicionado pelo que eles são ou fazem, mas pela qualidade de nosso próprio ser. O amor não é resposta às ações de alguém; sua origem está em cada um de nós, pois, na essência, fomos criados à imagem e semelhança do Deus que é amor. “Amar os inimigos”, portanto, é entrar no fluxo do amor que brota do coração de Deus e faz morada no nosso coração.

Por isso, hoje, mais do que nunca, é preciso ativar toda nossa reserva de amor e bondade em favor de uma resistência firme, mas lúcida, para aplacar o rufar dos tambores do ódio; não entremos na barca dos furiosos pois a cólera nos fará naufragar a todos! Nascemos para voar; deixemos voar a ternura e despertemos a mansidão que se encontram na essência do nosso ser profundo. São atributos humanos que tornam a nossa vida mais leve, flexível, aberta, acolhedora... E não nos deixemos envolver por aqueles que, carregados de ódio ou preconceito, não querem alçar o vôo. Quem sabe, algum dia consigamos que ninguém mais decida permanecer no deserto da desumanização.

Sem dúvida, a “mansidão” e a “ternura” definem radicalmente o sentir e o atuar de todo(a) seguidor(a) de Jesus. A maior contradição é alguém dizer que segue Aquele que é “manso e humilde de coração” e, ao mesmo tempo, revela-se como presença agressiva e conflituosa, expele ódio por todos os poros, faz-se mediação para a transmissão das piores mentiras.

A mansidão e a ternura são virtudes irmãs, andam sempre de mãos dadas. Quem cultiva a mansidão mais facilmente se torna terno com todos. É sentimento de suave comoção, de afeto doce e delicado, de atenção amorosa, de profunda e autêntica humanidade, no sentido de constante abertura aos outros, de consideração positiva, de disponibilidade e ajuda.

O Papa Francisco usa, com frequência, uma expressão carregada de intensidade: “revolução da ternura”.

A “revolução da ternura” nos convida a acompanhar, curar e acolher, a partir de nossa realidade, aqueles que nos rodeiam, a viver investindo nossos melhores recursos em favor da quebra da cadeia de violência.

Hoje, essa proposta simples, mas de profunda marca evangélica, responde à desumanização que estamos vivendo. Essa revolução da ternura nos convida a sair de nós mesmos, a colocar nossa vida a serviço do irmão, a entrar no fluxo do Amor de Deus, fazendo-o chegar a tantos que dele necessitam, através de nossas palavras mansas, de nossa presença cheia de ternura; assim vivendo, seremos pura transparência do Coração manso e humilde de Jesus.

Texto bíblico: Mt 5,38-48

Na oração:

A suavidade é o significado mais relevante e mais perceptível da mansidão. Mas a mansidão não é apenas suavidade; ela é plena de força, de iniciativa, de criatividade...

- Você vive num ambiente onde predomina mansidão, tolerância, compreensão...? Ou, ao contrário, um ambiente carregado de suspeitas, julgamentos, ódios...?

- Como despertar a bem-aventurança da mansidão, presente em seu interior?

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Viver a Lei Interior da Caridade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 6º. Domingo do Tempo Comum (Ano A). 

“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20) 

A liturgia deste domingo nos apresenta um longo texto do evangelho de Mateus. É importante que descubramos a mensagem central, essencial e sumamente importante ali presente, se não quisermos correr o risco de nos enredar em cada detalhe, perdendo aquilo que, de verdade, Jesus desejava para as comunidades cristãs.

O primeiro parágrafo já nos dá a chave de leitura de todo o texto. Mateus explicita a atitude de Jesus frente à Lei: “Vim para dar-lhe plenitude”; ou seja, Ele não se limita a analisar os detalhes da Lei, nem criticar alguns preceitos, mas dar plenitude e sentido profundo.

E esta plenitude não significa melhorar a lei com novas normas que Jesus confrontaria com as antigas, por considerá-las mais perfeitas. A plenitude que o evangelho nos apresenta não vai na direção de “maior perfeição” da lei, mas de uma mudança radical: Jesus mesmo é a plenitude da Lei. Sua pessoa, sua identidade, sua mensagem, sua maneira de viver é a Lei mesma em sua plenitude. Por isso, acolhê-Lo, crer n’Ele, identificar-nos com Ele, vivendo como discípulos seus, nos torna “grandes no Reino dos céus”.

Os evangelistas deixam claro que Jesus não vive centrado na Lei; não se dedica a estudá-la nem a explicá-la a seus discípulos. Nunca o vemos preocupado por observá-la de maneira escrupulosa. Certamente, não põe em marcha uma campanha contra a Lei, mas esta não ocupa um lugar central em seu coração. Jesus não foi contra a Lei, mas foi além da Lei. Quis dizer-nos que sempre temos que ir mais além da letra, da pura formulação, até descobrir o espírito da lei. “A lei mata, o espírito vivifica” (S. Paulo).

Jesus busca a Vontade de Deus a partir de outra experiência diferente, ou seja, procurando abrir caminho entre os homens para construir com eles um mundo mais justo e fraterno. Isto muda tudo. A Lei já não é o decisivo para saber o que Deus espera de nós. O primeiro é “buscar o reino de Deus e sua justiça”.

“Justiça” é um termo particularmente especial para Mateus, e que poderia ser traduzido como “ajustar-se ao modo de agir Deus” “sintonizar-se à sua vontade” – uma justiça que é infinitamente superior à Lei.

Para ressaltar a “novidade” da mensagem de Jesus, o evangelista Mateus realça que “se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.

O texto aponta para algo de grande profundidade e que toca uma questão básica do caminho espiritual: “a partir de onde eu vivo? vivo a partir da lei externa ou a partir do coração?”

Os códigos morais insistem nas ações: “não matar”, “não cometer adultério”, “não jurar”. Mas, provavelmente, todos temos experiência de que é possível não ter cometido nada disso e, no entanto, vivemos com o coração endurecido, desconectado daquilo que é realmente importante.

A mensagem de Jesus é radical pois quer chegar à raiz. E por isso nos confronta com nossa própria verdade interior. O evangelho deste domingo nos revela um Jesus que vem para dar plenitude à lei. Mas essa plenitude está muito distante do mero cumprimento externo: não matar, não cometer adultério, não jurar falso... Supõe ir mais adentro, mais a fundo, examinando nossas atitudes, nossas razões, nossos sentimentos e tudo aquilo que nos constrói e define como pessoas. É aí, no centro de nossa humanidade, onde conectamos com o espírito e o divino em nós; onde todos somos uno e nossas ações são um fluir dessa unidade interior.

Viver a partir do “coração” significa viver a partir do amor que nasce da compreensão da unidade que somos, e que se modela na “regra de outro”: “faça aos outros o que gostaria que eles fizessem a você”.

A nova situação que se instaurou a partir da vinda do Messias não é como a antiga aliança, a aliança da lei exterior ao homem; é, pelo contrário, a aliança da interioridade, a situação que se define pelas atitudes que brotam do coração.

Há uma frase que se repete três vezes no texto deste domingo, e que, ao mesmo tempo, é novidade e ruptura. Certamente, ela se revelou escandalosa para muitos contemporâneos de Jesus, judeus fiéis à lei de Moisés, à qual consideravam-na como voz de Deus: “Vós ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo”.

A novidade e a ruptura estão na afirmação: “Eu, porém, vos digo”. A força da expressão é o “eu”. Sua autoridade reside em sua pessoa. Sua maneira de ser e viver é nossa “lei” e referência. A partir de agora, cumprir a lei é crer n’Ele e segui-lo. A coerência de Jesus é a origem de sua autoridade; não é a dos escribas e fariseus que dizem, mas não fazem.

O evangelho pede de todos nós uma mudança absoluta. É como se Jesus nos dissesse: “não fiques só em tuas ações, a lei está dirigida ao coração, ao interior de tua pessoa, às tuas atitudes profundas, às tuas razões para agir, aos teus sentimentos, àquilo que te constrói e te define como pessoa. Tu não podes te limitar em não atacar teu irmão; és chamado a amá-lo, compreendê-lo, perdoá-lo...”

Com a novidade do anúncio e da prática de Jesus, realizou-se uma transformação radical nas relações do ser humano com Deus e com os outros. Esta transformação consiste em que o regime da observância da lei foi sucedido por outro regime, o regime filial, que comporta uma situação muito diferente.

Por conseguinte, a nova situação consiste em que não só fomos libertados da lei, senão que, além disso – e sobretudo – Deus nos fez verdadeiros(as) filhos(as) seus(suas).

Nesse sentido, as relações de intimidade familiar não se fundamentam a partir de um regulamento ou de uma codificação legal. Seria simplesmente absurdo que duas pessoas, que se amam, se pusessem a redatar um regulamento no qual se estipulasse taxativamente como dever-se-iam agradar mutuamente.

Quando se trata de uma relação pessoal, vivida nessa profundidade, é o dinamismo do amor que faz cada um inventar sua própria conduta, descobrir o que agrada ao outro e evitar a todo custo o que pode causar distância entre eles.

Pode-se e deve-se dizer: a liberdade que a fé exige é viver o amor com todas as suas consequências. As exigências da lei são sempre limitadas; as exigências do amor, pelo contrário, não têm limites.

O único limite do amor é amar sem limites, é a disponibilidade e o serviço incondicional aos outros.

Ou seja, no amor não há limite possível. E isso, no fundo, é o que nos dá medo e nos assusta a ideia de uma vida cristã na qual tudo depende, não da observância de algumas leis (com seus limites e casuísticas), senão do grau e da dose de amor sincero, da bondade sem limites que alguém tenha frente aos outros com quem convive.

É preciso superar o legalismo que se contenta com o cumprimento literal de leis e normas. O empenho de Jesus consistiu em fazer as pessoas passarem de uma religiosidade externa a uma atitude interna, ou seja, passar de um cumprimento de leis a uma descoberta das exigências de nosso próprio ser.

Nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como Jesus os vivia: buscando esse mundo mais justo e fraterno que o Pai tanto deseja.

Nesse sentido, o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho.

Esta é a diferença entre a Lei e o Evangelho: a Lei deixa a pessoa abandonada às suas próprias forças, impõe-lhe preceitos que é preciso esforçar-se por cumpri-los, ameaça-a, premia-a, exige-lhe empenho…

O Evangelho, no entanto, coloca a pessoa diante do dom de Deus, faz-lhe conhecer seu Pai, converte-a em filho(a), transforma-a por dentro… e não a obriga a nada. No amor não há imposição, mas acolhida.

Texto bíblico: Mt 5,17-37

Na oração:

Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo”, presentes no seu cotidiano.

- Frente às limitações do outro, o que prevalece? O peso da lei ou a força da misericórdia?

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Somos luz e sabor

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 5º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Vós sois a luz, vós sois o sal...”

O evangelho deste domingo é a conclusão das bem-aventuranças, proclamadas no domingo passado.

Jesus faz uma afirmação lapidar: “vós sois o sal, sois a luz”. O artigo determinado nos adverte que não há outro sal, que não há outra luz. Todos têm direito a esperar algo de nós. O mundo dos cristãos não é um mundo fechado e à parte. A salvação que Jesus propõe é a salvação para todos. É preciso que a única história, o único mundo fique temperado e iluminado pela vida daqueles (as) que seguem a Jesus.

Mateus nos traz uma mensagem de muita transcendência para o discipulado. Este texto pertence ao Sermão da Montanha no qual transparece a intenção de Jesus de construir uma nova comunidade, aquela que decide pertencer ao movimento de vida iniciado por Ele, identificando-se com o modo de ser e viver do Mestre da Galileia. Aqui está a verdadeira identidade dos seguidores (as): ser presença que ilumina e dá sabor à realidade carregada de tantos conflitos e divisões.

A originalidade desta nova comunidade não está centrada na pertença a uma nova religião, com seus ritos, leis, doutrinas, hierarquias..., mas no fato de prolongar o movimento humanizador iniciado por Jesus. Movimento de inclusão de todos, movimento que põe em questão toda forma de submissão, movimento que abre um horizonte de esperança e de vida.

É importante destacar que as palavras de Jesus dirigidas ao discipulado não são uma promessa, mas uma realidade existencial, porque lhes diz que já são “sal da terra” e já são “luz do mundo”. Ele utiliza estas duas imagens para que todos compreendam que estão equipados de sabedoria e luz para iniciar este caminho.

O sal não tem valor para si mesmo, mas para conservar e dar sabor, para diluir-se no processo da vida da terra. Não somos sal para nós, para um pequeno grupo, mas sal para a terra inteira.

Ser luz... Tampouco a luz tem valor em si mesma, mas para iluminar os outros.

Devemos cair na conta de que Jesus não pede para salgar ou iluminar, mas ser sal, ser luz. O matiz tem sua importância. A missão fundamental de cada um está dentro dele mesmo, não fora. A preocupação de cada um deve ser alcançar a plenitude humana. Se é sal, tudo o que ele toca ficará temperado. Se é luz, tudo ficará iluminado ao seu redor. Com demasiada frequência o cristã acredita ser sal e luz, mas sem dar-se conta de que perdeu toda capacidade de dar sabor e iluminar a vida, porque é sal insosso e luz tímida.

O simbolismo do sal aqui é extraordinário: ele não pode salgar a si mesmo. Sua capacidade não lhe é útil para nada. Mas é imprescindível para os outros. É para ser acrescentado a outro alimento, é para ressaltar seu sabor. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos. Ele garante o sabor, com a condição de que se dissolva.

O sal serve para ativar o sabor dos alimentos; não é o sal que “dá sabor”, mas é ele que realça o sabor de cada alimento. As palavras “sabor” e “sabedoria” tem a mesma raiz do verbo latino: “sapere”, que significa, ao mesmo tempo, tanto “saber” quanto “ter sabor”. Assim como está o sabor para os alimentos, também está o sabor da vida.

Sabedoria rica e nova: o coração é “sábio” quando sabe “saborear a verdade”, quando é livre, quando intui a direção da própria existência, quando se sente “seduzido” pelo que é verdadeiro, bom e belo.

Saber é experimentar o gosto das coisas. Saber é sentir o sabor.

Sapiencia” quer dizer conhecimento que tem sabor. Segundo a Anotação 2 dos EE, “não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente”.

Portanto, sabedoria é a arte de degustar, distinguir, discernir...

O sábio é aquele que conhece, não com a razão, mas sente o gosto daquilo que já está dentro dele.

 Sábia é a pessoa que sintoniza atentamente seus ouvidos aos desejos do coração.

“Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?” (T.S. Eliot).

A verdadeira sabedoria, portanto, nos ajuda a descobrir a profunda raiz da vida e como investir, da melhor maneira e em sua justa medida, nossas energias vitais. Mas, há um forte alerta: “se o sal perde seu sabor, com que se salgará?” Esta frase é um provérbio usado na literatura rabínica pois se refere a um sal extraído do mar Morto e que perdia seu sabor muito rapidamente. Agora, Jesus situa o discipulado diante de uma grande responsabilidade: a inutilidade de uma fé centrada na razão e não vivida a partir da profundidade humana. Viver o seguimento a partir de uma fé focada na doutrina gera ideologia; mas, quando é vivida como raiz existencial gera sentido para chegar a ser o que somos em potencialidade.

O tema da luz é muito frequente na Bíblia. Partindo de um dado experimental, descobre-se sua importância para o desenvolvimento da vida. Não só porque a luz é imprescindível para a vida, mas porque o ser humano não pode desenvolver-se na escuridão. Daí que a luz tenha se convertido no símbolo da vida mesma e de tudo o que a rodeia. Assim como a escuridão se converteu no símbolo da morte e de tudo o que a provoca.

A escuridão nos paralisa; tudo está aí, mas não podemos nem nos mover. A pequena luz põe as coisas em seu devido lugar, nos faz capaz de contemplar a beleza presente em tudo. É como o primeiro momento da Criação: “Faça-se a luz”, e a partir daí o caos foi se transformando em cosmos.

Quem segue Aquele que é a Luz, reacende a faísca de luz dentro de si e se torna reflexo da Luz de Cristo.

A vida inspirada pelo seguimento é um “caminhar na Luz”.

“Deus é luz e nele não há treva alguma” (1Jo 1,5). Deus revela, potencializa, ilumina, dá sabor. A pessoa que vive descentrada de si mesma torna-se um canal por onde passa a mesma luz divina. Não a impede, não a retém e nem se apropria dela, mas permite que a Luz divina ilumine tudo.

Ser luz, significa explorar nossas possibilidades humanas e espirituais e pôr toda essa riqueza a serviço dos demais. Devemos ter cuidado de iluminar, sem deslumbrar.

Ninguém é “a” luz, senão que tem um pouco de luz. E todos compartilhamos mutuamente a luz que vem de Deus. Nossa pequena luz reforça e ativa a luz presente no outro.

A vida do(a) discípulo(a) transcorre em meio a um contínuo discernimento para encontrar a medida justa de sal/sabor e a medida justa de luz. Um excesso de sal torna intragável qualquer alimento, um excesso de luz nos cega. Às vezes, o discipulado se vê envolvido em um ego que expele um excesso de sal até afastar os comensais. Assim também, um excesso de luz faz permanecer na sombra àqueles a quem ela se dirige.

Do mesmo modo, uma dose menor de sal gera uma falta de sabor que dilui o sentido original ou a pouca luz gera um ambiente sombrio e frio. É a tibieza de um discípulo que não se atreve a viver com inspiração esta missão, porque suas raízes se desconectaram da fonte e ele se reduz a cumprir alguns ritos ou normas, sem viver uma profunda identificação com Jesus.

Texto bíblico: Mt 5,13-16

Na oração:

Rezar sua presença e sua atuação na realidade cotidiana e no encontro com os outros.

“Ser sal” e “ser luz” significa vida descentrada, oblativa e servidora. Lembre-se: o sal, para salgar, tem de desfazer-se, dissolver-se, deixar de ser o que era. A lamparina ou a vela produzem luz, mas o azeite ou a cera se consomem.

Seguir Jesus é deixar que a Luz d’Ele transpareça em sua vida; o carvão e o diamante são feitos da mesma matéria: tem a mesma composição química.

No entanto, o carvão afoga a luz, enquanto o diamante a faz resplandecer.

- Você é carvão ou diamante no seu “existir cristão”?