Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma (2023).
“Não só de
pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4)
O primeiro
domingo da Quaresma nos des-loca até o “deserto das tentações”; ali
Jesus se deparou com as grandes “fomes que desumanizam”: “pão do ego”, “poder
auto-centrado”, “vaidade estéril”.
Jesus foi
conduzido ao deserto imediatamente depois do seu batismo, com a palavra do Pai
ressoando em seu coração: “Tu és meu filho amado...”; mas agora, no deserto,
vai escutar outras palavras que “tentam” convencê-lo para que não ponha o centro
de sua vida nesse amor, mas no poder, na vida fácil, na fama, nas posses... O
relato das tentações resume simbolicamente outros momentos da
vida de Jesus nos quais esteve submetido à alternativa entre “a maneira de
pensar de Deus” ou “a maneira humana”.
As tentações foram
uma ocasião privilegiada para Jesus ativar as “grandes fomes que humanizam”:
fome de vida doada, fome do Reino, fome de comunhão, de pão partilhado, de
compromisso solidário...
Conduzido pela força do Espírito, Ele
viveu uma integração a partir de seu coração e não se deixou levar pelas
aparências enganosas.
Sua vocação à messianidade ficou
clara no batismo; agora, tratava-se de buscar os meios para viver sua
missão. No seu discernimento, Jesus sentiu que o poder, a riqueza, o prestígio
não são “meios” para realizar a Vontade do Pai; pelo contrário, inspirado pelo
Espírito, elegeu o caminho do esvaziamento de si, da pobreza e do compromisso
solidário com os mais pobres e excluídos. Sua missão como Messias devia começar
nas periferias, junto aos abandonados pelo poder religioso e civil da época.
À luz do
discernimento de Jesus, também nós, durante esta Quaresma, seremos conduzidos
pelo Espírito ao deserto interior para o despertar das “fomes”
que nos tornam mais sensíveis, abertos à realidade, comprometidos na partilha
do “pão”, que é dom e deve chegar a todos.
A Campanha
da Fraternidade (CF) deste ano nos alerta para o drama da fome, escândalo e
incoerência na vivência do seguimento de Jesus.
Sabemos que a fome
e a sede são mecanismos fundamentais dos seres vivos. Todo ser vivente
necessita nutrição e hidratação, mas, nos seres humanos, estas necessidades
biológicas têm caráter social. Em muitas culturas humanas, compartilhar o
alimento e a bebida revela-se como gesto de socialização e de integração.
Na experiência
cristã, esta necessidade vital é transladada ao campo da fé: o alimento
é dom do Criador para todos. O problema crônico da atualidade não é unicamente
a satisfação das necessidades básicas, mas também o despertar de uma
consciência que exija a justa distribuição dos recursos naturais, para que a
humanidade cultive o melhor de si mesma e viva a solidariedade e a justiça como
um projeto social alternativo frente às políticas egoístas e concentradoras de
bens.
A CF nos revela que a fome tem várias raízes
(escassez de recursos, alterações climáticas, subdesenvolvimento de alguns
povos...); no entanto, em sentido mais profundo, ela provém de duas causas
principais: a) o egoísmo de grupos e indivíduos, que se apropriam dos recursos
de todos e não partilham seus produtos; b) a injustiça de um sistema político e
econômico que não se preocupa com o bem comum. Ter alimento faz parte dos
direitos fundamentais de toda pessoa, um direito que deve ser garantido pelo
Estado.
A pedagogia quaresmal, portanto, nos sacode e nos desnuda, porque
desmascara nossas falsas seguranças, centradas na riqueza, no poder, na
vaidade. Inspirados pelo “discernimento”
de Jesus no deserto, somos também movidos a buscar nossas raízes mais
profundas. Quando esse percurso é vivido de maneira intensa, o Espírito nos
conduzirá ao fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira
identidade, à “Terra prometida” onde há fartura de pão.
Por isso, é preciso ampliar nosso interior
para despertar outras fomes.
O
lema da CF – “dai-lhes vós mesmos de comer” – nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos
humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais,
criatividade, espírito de busca... São alimentos que plenificam e dão sabor à
nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e
de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos
seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento
salutar”.
Afinal,
alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.
Com frequência, nossa existência humana
parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta
corrida, aparecem muitos elementos que nos são familiares: necessidades,
ansiedade, insegurança, vazio, insatisfação... Todos eles, à primeira vista,
nos fazem tomar consciência que somos seres carentes. Seria, pois, essa carência
aquela que nos movimenta na busca de algo para preencher nosso vazio?
De fato, o ser humano é um ser
insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o
quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a
qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder,
posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada lhe satisfaz.
Não são
as “coisas
exteriores” que nos tentam. O que nos tenta é a maneira injusta,
perversa com o qual utilizamos as coisas, o espírito com o qual vivemos a nossa
vida. Só o Pão da Palavra pode preencher nosso interior; só um alimento nos
plenifica: “fazer a Vontade do Pai”.
Aqui,
também é preciso nos perguntar: - qual é a nossa tentação? O que é que nos
seduz?
Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas
direções. A cena das “tentações de
Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas
tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de
alargamento ou expansão de nós mesmos em direção aos outros e de Deus; e outro
de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos;
é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito.
O centro é o Espírito.
“Dai-lhes vós
mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa
sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de
famintos, presentes em nossa realidade: famintos de alimento, de proximidade,
de justiça, de comunhão, de afeto...
Jesus ensina que a dinâmica do
Reino é a arte de compartilhar.
Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento
necessário para todos os que passam fome... O problema não se soluciona
comprando, o problema se soluciona compartilhando.
O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e
compartilhado.
O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos;
precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o
pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão
indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e conflitos.
Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o
sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão,
para que possamos comungar.
No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto, brilhará tua luz como a aurora” (Is 58,7).
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na
oração:
Já paramos para pensar na abundância de recursos e nutrientes
em nosso coração e que poderíamos compartilhar com os outros? Nem sempre se
trata de encher estômagos vazios. Não só o estômago tem necessidades. Há outras
muitas necessidades vitais no coração humano. Nosso coração é habitado pelo
impulso do “mais”; ali não há carência. Em nossos celeiros interiores há
abundância de alimentos que nos humanizam.
- Quais são as “fomes” que mobilizam sua criatividade e seus melhores
recursos? São “fomes” egocentradas ou oblativas, fomes auto-centradas ou
abertas à solidariedade e partilha?
- Visite seu “celeiro interior”; ative suas “reservas” de bondade,
recursos, beatitudes originais...