Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 27º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“Quando
tiverdes feito tudo o que vos ordenarem, dizei: ‘somos simples servos, só
fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)
Continuamos o percurso contemplativo, seguindo e
aprendendo com Jesus. No evangelho deste domingo temos a impressão de que Lucas
recolhe afirmações do Mestre da Galileia que, aparentemente, estão desconexas;
no entanto, há um fio condutor muito sutil. Nos relatos anteriores, Ele nos
pedia, de diferentes maneiras, para que não colocássemos a confiança nas
riquezas, no poder, no luxo; e hoje nos diz claramente: “não coloques tua
confiança em tuas ‘boas obras’”. Confia somente em Deus.
Os dois temas que o evangelho deste domingo nos
propõe estão intimamente conectados; ou seja, devemos confiar somente em Deus e
não nas nossas obras. Aqueles que passam
a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A salvação por
“pontos conquistados” é totalmente contrária ao evangelho. Esta era a
atitude dos fariseus que Jesus criticou.
Também hoje é comum a atitude daqueles
que não se identificam com Jesus e se limitam a cumprir alguns ritos, observar
algumas normas e penitências, realizar algumas “obras interesseiras”.
Suas vidas não deixam transparecer
a “fé em Jesus”; quando falta esta adesão pessoal viva, interiorizada, cuidada
e confirmada continuamente no próprio coração e nas relações com os outros, a
fé corre o risco de atrofiar-se, reduzindo-se à aceitação doutrinal, à prática
de obrigações religiosas e obediência a uma disciplina. A vivência da fé cristã
consiste primordialmente na identificação com Aquele que nos atrai e nos chama:
“Vem se segue-me!”
No relato deste domingo, os apóstolos, depois de
um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para
poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.
Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus
não responde diretamente à petição dos apóstolos.
Quer dar a entender que a fé não é questão de quantidade, mas de autenticidade. Além
disso, a fé não pode ser aumentada a
partir de fora; ela precisa crescer a partir de dentro, como o grão de
mostarda.
A fé é um caminho, é uma
“travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente
insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.
A fé não se resume a um ato nem uma série de atos, nem uma adesão a
uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude
pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência.
Confiar naquilo que realmente somos nos dá uma liberdade de movimento para
desatar todas as nossas possibilidades humanas.
Na Bíblia, a fé é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada
da fidelidade.
Nesse sentido, a fé é uma vivência
em Deus; por isso não tem nada a ver com a quantidade.
Jesus denuncia a fé dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz
de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de
agir.
A fé
supõe o des-centramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da
própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser
humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente
Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.
É esta experiência de fé que
desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da
amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos
possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e
lançar-nos a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da
própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança em Deus,
poderá desatar toda essa energia de vida.
Essa vida é o que de verdade
importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas
possibilidades para alcançar sua plenitude humana.
Que
alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta fé viva, forte e eficaz. Fé que
se visibiliza no serviço por pura
gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza “pela prática do amor” (Gl 5,6).
E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples
servo”. Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem
uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os
outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.
No Reino de Deus, somos todos servidores;
nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na
obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho
a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é
dom.
Não podemos fazer desse serviço uma
“carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a
mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um
preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.
As “obras boas” não são um crédito
que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido
o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também
incompatível com a confiança nos próprios méritos.
Há aqui o princípio ético que deve
reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da
inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem
comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um
profundo e inexplicável humanismo.
Sabemos que Jesus desencadeou um movimento
profético em favor da vida, mobilizando seguidores (as) a quem confiou a
missão de anunciar e promover o projeto do Reino de Deus. Por isso, o mais
importante para reavivar a fé cristã é ativar a decisão de viver como
seguidores(as) seus(suas).
Nesta perspectiva, o critério primeiro e a chave
decisiva para entender e viver a fé cristã é seguir Jesus Cristo. Quem o
segue vai descobrindo o mistério que se revela n’Ele, situa-se na perspectiva
correta para entender Sua mensagem e vai aprendendo a trabalhar a serviço do
Reino de Deus. O seguimento constitui o núcleo, o eixo e a força que permite a
uma comunidade cristã expandir sua fé em Jesus Cristo.
Por isso, mais que ter fé em Jesus,
o decisivo é “viver a fé de Jesus”; e a fé de Jesus está intimamente vinculada
à justiça do Reino, ou seja,
comprometida com a vida.
Para Jesus, a fé não está vinculada
a um catálogo de crenças, a uma doutrina, a uma religião, e sim, a um modo de
viver e agir, profundamente sintonizado com o modo de ser e agir do Pai.
Deixando-nos afetar e seduzir pela identificação com Jesus, vamos nos revestindo das grandes atitudes e compromissos que Ele viveu na sua missão, sobretudo na relação com os mais pobres e excluídos, alimentando neles a esperança de um mundo novo, o Reinado do Pai. É isso que, como seguidores(as), temos de interiorizar e viver sempre.
Texto bíblico: Lc 17,5-10
Na
oração:
Fazer
memória de tantas pessoas que, mesmo no anonimato de suas vidas, foram referências
na vivência de fé, integrando uma profunda adesão ao Deus da Vida e o
compromisso em favor da vida.
-
Sua vivência de fé faz diferença na realidade em que você se encontra? Ela
inspira, move, provoca... a sair das suas “normoses religiosas” (normalidade
doentia centrada no legalismo, no moralismo, no ritualismo...)