terça-feira, 27 de setembro de 2022

A fé que se visibiliza no serviço

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 27º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“Quando tiverdes feito tudo o que vos ordenarem, dizei: ‘somos simples servos, só fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)

 

Continuamos o percurso contemplativo, seguindo e aprendendo com Jesus. No evangelho deste domingo temos a impressão de que Lucas recolhe afirmações do Mestre da Galileia que, aparentemente, estão desconexas; no entanto, há um fio condutor muito sutil. Nos relatos anteriores, Ele nos pedia, de diferentes maneiras, para que não colocássemos a confiança nas riquezas, no poder, no luxo; e hoje nos diz claramente: “não coloques tua confiança em tuas ‘boas obras’”. Confia somente em Deus.

Os dois temas que o evangelho deste domingo nos propõe estão intimamente conectados; ou seja, devemos confiar somente em Deus e não nas nossas obras. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A salvação por “pontos conquistados” é totalmente contrária ao evangelho. Esta era a atitude dos fariseus que Jesus criticou.

Também hoje é comum a atitude daqueles que não se identificam com Jesus e se limitam a cumprir alguns ritos, observar algumas normas e penitências, realizar algumas “obras interesseiras”.

Suas vidas não deixam transparecer a “fé em Jesus”; quando falta esta adesão pessoal viva, interiorizada, cuidada e confirmada continuamente no próprio coração e nas relações com os outros, a fé corre o risco de atrofiar-se, reduzindo-se à aceitação doutrinal, à prática de obrigações religiosas e obediência a uma disciplina. A vivência da fé cristã consiste primordialmente na identificação com Aquele que nos atrai e nos chama: “Vem se segue-me!”

No relato deste domingo, os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.

Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde diretamente à petição dos apóstolos.

Quer dar a entender que a não é questão de quantidade, mas de autenticidade. Além disso, a não pode ser aumentada a partir de fora; ela precisa crescer a partir de dentro, como o grão de mostarda.

A fé é um caminho, é uma “travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.

A não se resume a um ato nem uma série de atos, nem uma adesão a uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Confiar naquilo que realmente somos nos dá uma liberdade de movimento para desatar todas as nossas possibilidades humanas.

Na Bíblia, a é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade.

Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada a ver com a quantidade.

Jesus denuncia a dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de agir.

A supõe o des-centramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.

É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e lançar-nos a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança em Deus, poderá desatar toda essa energia de vida.

Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude humana.

Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta viva, forte e eficaz. que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza pela prática do amor” (Gl 5,6).

E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”. Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.

No Reino de Deus, somos todos servidores; nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é dom.

Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.

As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios méritos.

Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.

Sabemos que Jesus desencadeou um movimento profético em favor da vida, mobilizando seguidores (as) a quem confiou a missão de anunciar e promover o projeto do Reino de Deus. Por isso, o mais importante para reavivar a fé cristã é ativar a decisão de viver como seguidores(as) seus(suas).

Nesta perspectiva, o critério primeiro e a chave decisiva para entender e viver a fé cristã é seguir Jesus Cristo. Quem o segue vai descobrindo o mistério que se revela n’Ele, situa-se na perspectiva correta para entender Sua mensagem e vai aprendendo a trabalhar a serviço do Reino de Deus. O seguimento constitui o núcleo, o eixo e a força que permite a uma comunidade cristã expandir sua fé em Jesus Cristo.

Por isso, mais que ter fé em Jesus, o decisivo é “viver a fé de Jesus”; e a fé de Jesus está intimamente vinculada à justiça do Reino, ou seja, comprometida com a vida.

Para Jesus, a fé não está vinculada a um catálogo de crenças, a uma doutrina, a uma religião, e sim, a um modo de viver e agir, profundamente sintonizado com o modo de ser e agir do Pai.

Deixando-nos afetar e seduzir pela identificação com Jesus, vamos nos revestindo das grandes atitudes e compromissos que Ele viveu na sua missão, sobretudo na relação com os mais pobres e excluídos, alimentando neles a esperança de um mundo novo, o Reinado do Pai. É isso que, como seguidores(as), temos de interiorizar e viver sempre.

Texto bíblico: Lc 17,5-10

Na oração:

Fazer memória de tantas pessoas que, mesmo no anonimato de suas vidas, foram referências na vivência de fé, integrando uma profunda adesão ao Deus da Vida e o compromisso em favor da vida.

- Sua vivência de fé faz diferença na realidade em que você se encontra? Ela inspira, move, provoca... a sair das suas “normoses religiosas” (normalidade doentia centrada no legalismo, no moralismo, no ritualismo...)

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Ter Compaixão é Abrir Portas, da Casa e do Coração

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 26º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico” (Lc 16,20)

O Evangelho deste domingo nos traz, mais uma vez, uma parábola escandalosa e provocativa. O que Jesus quer nos comunicar através desta parábola que desperta tanto incômodo? A parábola do rico “epulón” e do pobre Lázaro nos inquieta e é inquietante, pois nos situa de novo diante da exigência do amor concreto e comprometido, como serviço ao próximo.

Na primeira parte do relato a ideia prevalente é que tudo o que fazemos repercute nos outros: a situação de Lázaro é consequência do mal proceder daqueles que apodrecem em suas riquezas. Os pobres não existem “porque sim”, mas por uma deficiente partilha dos bens e de uma insensibilidade diante de quem é vítima de uma estrutura social e econômica perversa.

A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata de uma pessoa anónima; antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase familiar, torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua condição concreta ser a de um descarte humano.

A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que vive o rico. Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De fato, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se reservava para os deuses. Assim, a riqueza deste homem é ofensiva, inclusive porque exibida habitualmente: “Fazia todos os dias esplêndidos banquetes”

A sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e passageira da existência.

Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio ego e, por isso, as pessoas que o rodeiam tornam-se invisíveis; seu olhar não as alcança. Assim, o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.

Ao ler ou escutar a parábola temos uma primeira impressão de que ela vai contra o evangelho, pois o rico é condenado por ser rico, por puro pecado de omissão. Pensamos que esta é uma parábola sem misericórdia: nem Deus escuta o lamento do condenado que pede somente umas gotas de água. Por que não se compadece do condenado?

Mas, lendo o texto com atenção e cuidado, como parábola-advertência, sentimos por dentro que é verdade o que diz: esta é uma parábola provocativa de Jesus, uma advertência profunda para aqueles que, petrificados pela riqueza, acabam correndo o risco de converter a terra em um inferno. Esta parábola nos fala mais do presente que do “mais além”; fala de tudo o que podemos mudar desde agora para ter um futuro melhor: um verdadeiro banquete, onde a única riqueza seja o amor compartilhado.

A parábola denuncia o abismo vergonhoso entre os próprios seres humanos; o que essa imagem nos revela é a ruptura que nossa indiferença constantemente produz, à qual, no entanto, não costumamos prestar atenção. Contra ela, já advertia Martin Luther King: “Quando refletimos sobre nosso século XX, o mais grave não parece ser as ações dos maus, mas o escandaloso silêncio dos bons”.

Por que caímos tão facilmente na indiferença? Sem dúvida, frente aos outros e frente ao mundo, ela esconde uma maior ou menor insensibilidade que, bloqueada ou endurecida, isola a pessoa em um caracol egocêntrico e a instala numa atitude indiferente – oposta à compaixão -, que está na origem das injustiças e violências que diariamente vemos em nosso mundo.

Em sua redoma protetora, o rico não vê os outros a não ser quando necessita deles, considerando-os como se fossem “objetos” a seu serviço; sua capacidade de amar fica bloqueada.

O abismo que causa a dor de Lázaro é também o abismo que provoca a dor do rico. Nos dois “quadros” da parábola – simbolizados no antes e no depois da morte -, destaca-se com intensidade a ruptura como o motivo do mal. Pois bem, esta ruptura não é casual, nem é provocada por Deus, que castigaria o rico por toda a eternidade. É causada pela indiferença do próprio rico que, em sua cegueira, não “vê” o pobre jogado ao chão, à sua porta.

Em seu processo de desumanização o rico “epulón” fez das riquezas seu “deus”. Este “deus” matou seu coração, sua sensibilidade e sua humanidade; ficou sem entranhas de compaixão, pois ao seu redor já não existiam outras pessoas a não ser o seu ego fechado, isolado...

Como poderia ver aquele pobre homem desprezado ou chegar a saber seu nome, caído à porta de seu palácio esperando algumas sobras para comer? Lázaro tornou-se “invisível” para aquele que ficara cego por causa de suas riquezas.

O pobre está fora da porta, rodeado de cães da rua. O homem rico se encontra dentro de casa. Não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Na primeira parte, ambos se encontravam próximos um do outro; o texto realça a distância espacial que os separa (“um grande abismo”), mas, apesar da distância eles podem se ver e escutar um ao outro. É só abrir a porta.

O destino do rico “epulón” é o melhor espelho para ver a realidade tal qual ela é, essa que o mundo nos impede reconhecer: que o autêntico mendigo e indigente era ele, e que a solidão lhe oprimia em meio ao esbanjamento mais agressivo.

Muitas vezes, as portas protegem do encontro com o diferente, blindam a individualidade e parecem ser itens indispensáveis à sobrevivência. Assim, o indivíduo se tornará um prisioneiro de sua visão de mundo e fará de sua casa uma couraça que protege.  A riqueza pode ser um grande portão que impede ver o que há do outro lado; a púrpura e o linho podem ser um impedimento para ver os desnudos da rua; os banquetes podem obscurecer a capacidade de ver aqueles de estômago vazio, atirados à entrada do portão de casa.

No fundo, o que a parábola deste domingo denuncia é a falta de compaixão do rico para com o pobre; sua riqueza o torna frio, distante e petrificado.

Sabemos que a compaixão é o sinal mais claro de maturidade humana. A indiferença, pelo contrário, manifesta nossa imaturidade e atrofia nossa humanidade. A compaixão desperta o contato com a nossa própria vulnerabilidade ou fragilidade.

Quando acolhemos toda nossa realidade humana a partir de uma atitude humilde, é provável que emerja um sentimento amoroso para conosco mesmo; assim, nos tornamos mais sensíveis ao sofrimento dos outros.

A indiferença é, antes de mais nada, cegueira que alimenta uma insensibilidade diante da situação de penúria dos outros, petrificando-nos por dentro. Certamente, constitui um mecanismo de defesa, com o qual nos blindamos diante da necessidade e da dor dos outros – “olhos que não veem, coração que não sente” -; mas, em último termo, nasce de não “saber” que o outro é o nosso espelho: nele nos vemos e nele nos sentimos interpelados. Para isso é preciso abrir as portas do coração para viver a “cultura do encontro”.

Texto bíblico: Lc 16,19-31

Na oração:

A parábola deste domingo nos fala também da necessidade de abrir a porta e acolher o que é rejeitado, ferido, desprezível... que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre Lázaro interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e cresceremos na sensibilidade frentes aos “lázaros” da vida.

- Diante do mundo da exclusão e da miséria, que sentimentos prevalecem em você: indiferença, compaixão, insensibilidade, espírito solidário...?

Viver a “santa astúcia” no serviço do Reino

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 25º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“Os filhos deste mundo são mais astutos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8)

O Evangelho deste domingo nos situa diante de mais uma parábola "escandalosa" de Jesus, ou seja, um relato impactante e provocativo, que ajuda a “despertar” o ouvinte ou o leitor.

Mas o que se trata na parábola não é da injustiça cometida nem da desonestidade do administrador, senão de sua astúcia. O objeto de louvor por parte de Jesus é a esperteza, a audácia e o empenho com que o administrador tira partido de uma situação presente tendo em vista garantir o futuro; Jesus elogia o administrador não porque roubou, mas porque teve presença de espírito, soube calcular bem as coisas e encontrar uma saída honrosa, enquanto havia tempo. E a “saída” do administrador, ameaçado de desemprego, foi fazer “amigos” para depois.

A parábola, apesar das aparências, não está centrada no dinheiro, mas na “astúcia” do administrador.

E é então quando a parábola dá o salto “dos filhos das trevas” aos “filhos da luz”, tomando forma de denúncia ou alerta: todos somos “astutos” quando manejamos os assuntos do nosso ego, naquilo que tem a ver com seus interesses. Não aplicamos a mesma inteligência para aquilo que tem a ver com nossa verdade profunda. Precisamos estar atentos para viver coerentemente com o que realmente somos. Em uma palavra: vivemos nas “trevas” ou na “luz”?

Quanto investimos no mal e como somos preguiçosos e sem criatividade na vivência do bem!

Não podemos continuar lamentando o mau que os outros fazem; devemos lamentar o bem que deixamos de fazer; não queixemos do mal que está no mundo; lamentemos daquilo que nós, seguidores(as) de Jesus, não fazemos para que nosso mundo esteja melhor.

Não lamentemos dos maus, mas dos inúteis que os bons costumam ser.

A comunidade cristã não anda mal pelos pecados que há nela. Anda mal pelo fato de sermos poucos criativos e o pouco que os bons fazem por ela.

Jesus reconhece a esperteza dos filhos deste mundo utilizada para cometer delitos, enganar, roubar ou levar uma vida corrupta, e realça o modo de proceder daqueles que o seguem, ou seja, a necessidade de serem também astutos para fazer o bem e lutar pela justiça.

Ele quer que os “filhos da luz” sejam criativos em favor do Reino: estejam atentos, sejam hábeis e permaneçam despertos e ativos para livrar-se do complicado e sutil combate contra os mecanismos do mal; neste caso, o que gera a ambição do dinheiro.

Não devemos imitar a injustiça que o administrador infiel está cometendo, mas utilizar a astúcia e a prontidão com que atua; ele é um filho deste mundo; é sagaz porque, em meio à situação desesperada de ser despedido do emprego, soube aproveitar da situação para preservar seus interesses. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.

E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente, utilizando todos os recursos em favor da vida. Quem são nossos “amigos para depois”? São os cegos, os excluídos, os pobres em geral. Temos amplas oportunidades de usar o “vil dinheiro” para conquistar estes amigos.  Essa Vida não é outra coisa que as “moradas eternas” de que fala o texto.

A mensagem do Evangelho deste domingo não só nos instiga a sermos mais astutos com os valores do Reino, mas também nos alerta para o perigo de afeição desordenada com relação ao ídolo dinheiro.

O dinheiro pode ser mediação para ajudar às pessoas, mas também pode se tornar o “absoluto” da existência.

No fundo, o evangelho de hoje nos situa diante do maior dilema de nossa vida, diante da única pergunta na qual investimos tudo: quem é o “senhor” que determina nossa vida? Na prática, segundo a resposta que lhe demos, viveremos “para o dinheiro” (nas “trevas”) ou “para Deus” (na “luz).

Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelo dinheiro (e outros afetos desordenados) e a paixão pelo Reino. “Ninguém pode servir a dois senhores”.

Há uma incompatibilidade de ordem religiosa, porque a fé no Deus único impede a idolatria;

uma incompatibilidade de ordem moral: não se pode servir, ao mesmo tempo, ao amor e ao egoísmo; e também uma incompatibilidade de ordem psíquica, porque não é possível experimentar a paixão pelo Reino e pelo dinheiro, ao mesmo tempo, sem divisão para o indivíduo.

Para os seguidores de Jesus, o amor não é apenas um preceito, é uma atitude de vida, que pede um total investimento afetivo. Por isso, o “afeto desordenado” ao dinheiro, como fonte de desamor, se apresenta não somente como problema ético, mas também como problema de crença, de fé.

A fidelidade ao Deus único fica interditada. E o caráter idolátrico que o dinheiro possui é ressaltado nos Evangelhos mediante o uso do termo “mamon” – a etimologia desta palavra parece referir-se à ideia de “depósito”, “provisão; mas na boca de Jesus parece adquirir um caráter de idolatria, na medida em que remete a um lugar que fornece “segurança” à existência.

Como todo ídolo, o dinheiro provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas.

De fato, a tentação do dinheiro tem suas raízes fundadas no pânico produzido pela insegurança.

O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob nossos pés.

Mais ainda: o dinheiro é algo mais do que solo firme e apoio; é carapaça protetora, é um objeto interno, corpo do corpo, ou coisa com a “qualidade do eu”. A dinâmica acumulativa, retentiva, própria da posse do dinheiro, possui toda a força do narcisismo e da auto-afirmação infantil.

Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como “verdade” - de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Há coisas que são mentira, mas que aparecem como verdade; aí se enraíza seu atrativo.

Temos medo de “perder pé”; por isso, com o dinheiro, pensamos agradar e robustecer nosso ego. Daí surgem as racionalizações com a desculpa de servir a Deus; no fundo, manipulamos Deus para santificar nossos afetos desordenados. “Eu quero um Deus que queira o que eu quero”.

Cada um de nós precisa encontrar a maneira de agir com sagacidade para conseguir o maior benefício no uso do “dinheiro”, não para alimentar nosso falso eu, mas para construir relações mais sadias, através da partilha. Se somos sinceros, descobriremos que, em nossa vida, confiamos muito mais nas coisas externas e muito pouco naquilo que realmente somos. Com frequência, servimos ao dinheiro e nos servimos de Deus. Proclamamos Deus como o Senhor, mas quem manda de verdade é o dinheiro. Deus é Amor gratuito, mas dinheiro quer tudo..., até a “alma”.

Aos poucos, o “dinheiro” vai se transformando em “senhor” que exige pesados sacrifícios e um alto investimento afetivo, esvaziando outras dimensões de nossa vida.

A criação da nova comunidade, como alternativa às relações perversas do mundo, passa necessariamente pela ruptura com o que se encontra na própria base da desigualdade e da injustiça, que é a afeição ao dinheiro.

Texto bíblico: Lc 16,1-13

Na oração:

Seu compromisso com o Reino afeta seu “bolso”?

Você sabe e sente a força de sedução que o dinheiro exerce e da capacidade que ele tem de atrofiar sua sensibilidade diante da realidade e dos outros?

- Quem é o “senhor” que move seu coração? 

sábado, 10 de setembro de 2022

Os “perdidos” em nosso interior

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 24º. Domingo do Tempo Comum (Ano C). 

“Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida! ... encontrei a moeda que tinha perdido!... este teu irmão estava perdido, e foi encontrado” (Lc 15,6.9.32) 

O cap. 15 do evangelho de Lucas é conhecido como o “Evangelho dos perdidos”. A experiência de perda marca a nossa existência de várias formas. Perdemo-nos do Pai e da casa paterna; perdemo-nos na fraternidade; perdemo-nos no tempo e nas decisões da vida...

As parábolas dos perdidos colocam nossa vida em questão. Na verdade, dentro de nós não existem só coisas belas, harmoniosas e resolvidas. Dentro de nós há sentimentos sufocados, muita matéria por esclarecer, patologias, repressões...; há feridas para serem curadas, dimensões por reconciliar, memórias dolorosas que precisam ser relidas sob outra luz; fracassos que pesam e alimentam culpas... Uma multidão de “perdidos” nos habita, esperando uma ocasião para serem acolhidos e integrados.

As parábolas do evangelho deste dia nos colocam diante desta pergunta: “o que está perdido em mim?”

É preciso tomar consciência da ovelha, da moeda e do filho perdidos em nosso interior. São símbolos de nossa fragilidade, vulnerabilidade, pobreza..., enfim, expressão de nossa condição humana. Cada um dos perdidos pode revelar recursos, dons... que não foram valorizados. A moeda significa riqueza, mas que está perdida em nossa própria casa; o filho, revela a continuidade da descendência, mas que está afastado.

É preciso redescobrir (des-velar), no próprio interior, a presença do pastor, da mulher e do pai. Eles são como que os pontos nutrientes, iluminantes e terapêuticos encontrados em nosso “eu profundo”. Cada um deles revela uma presença diferenciada em relação ao que está perdido. O pastor deixa transparecer o seu cuidado e a iniciativa de sair do próprio redil para ir em busca da ovelha perdida. A mulher revela desvelo no cuidado da própria casa para encontrar a moeda. O pai misericordioso revela paciência e espera o retorno do filho que se perdera, acolhendo-o e integrando-o à família.

Por outro lado, habitam também no nosso interior os fariseus e mestres da lei que, tendo a lei na mão, emitem juízos, não acolhem as ovelhas, as moedas e o filho perdido de nossas vidas. Não abrem espaço para a misericórdia. São inquisidores porque perfeccionistas, e não conseguem integrar os limites e fragilidades de nossa vida.

Isso requer “humildade” para sair da segurança do redil e ir atrás de tudo aquilo que foi excluído de nossa vida, devido a uma cobrança interior de perfeição. Quando alguém desce em direção à sua “condição humana”, tudo acolhe e tudo integra, vive um processo de humanização plenificante.

Nesta perspectiva, o desgarrado e o perdido des-velam a realidade onde Deus atua e revela seu rosto misericordioso. Exatamente onde existe fraqueza, perda, vulnerabilidade, talvez seja o “lugar mais sagrado”, aquele que exige mais acolhida e cuidado, para ser transformado pela misericórdia.

A tradição moralista e legalista nos ensinou a alimentar um conflito entre o pastor e a ovelha que se perdera; do mesmo modo, conflito entre a mulher e a moeda; ou, conflito entre o pai e o filho que se afastara. Tal tradição moralista deu peso maior às limitações e fragilidades, alimentando culpa, remorso..., esquecendo-se de despertar nossa atenção para as dimensões mais ricas do nosso interior: o pastor cuidadoso, a mulher zelosa, o pai festeiro.

Nesse contexto, queremos dar um destaque às duas pequenas parábolas do evangelho de hoje, pois elas têm um sabor todo especial. Diferentemente das outras, elas falam de uma perda interior, quase íntima: há uma parte do tesouro que se perde dentro da própria casa. Prestemos atenção: a mulher não perdeu tudo, nem a maior parte sequer; de dez moedas, ela perdeu uma; o pastor não perdeu tudo, apenas uma ovelha. Mas quem vive essa perda percebe o que isso representa: um esfriamento, um abrandamento, uma quebra na inteireza de vida, na unidade ampla do sim de amor que nos constitui. Tendo perdido uma ovelha, uma moeda, a vida continua, mas não da mesma maneira.

A mulher que perdera uma moeda, no entanto, não se acomodou, pensando que ainda ficaria com nove moedas: decidiu procurar a parte perdida do seu tesouro. Ela não culpou ninguém pela perda, não ficou de mau humor, nem deprimida..., mas também não se deixou ficar de braços cruzados. Não se lamentou pelo acontecido, mas tomou a iniciativa de acender a luz, varrer, limpar, aclarar...

“Buscar cuidadosamente”, ensina a mulher da parábola. Nós também temos de ir ao fundo e procurar a raiz daquilo que tira nossa vitalidade espiritual; talvez um medo terrível, uma insegurança fundamental, uma falta de confiança, uma perda de sentido...

A mulher e o pastor das parábolas não ficam lamentando a “perda” da moeda ou da ovelha. A perda pode ser ocasião para um novo movimento, para conhecer outras dimensões da casa ou dos prados.

O Evangelho deixa claro: é “proibido queixar-se”.

A vida não é lamento, é expressão de nossas melhores qualidades, de nossos recursos internos.  A queixa bloqueia nossa potencialidade e não deixa emergir o melhor que há em nós. A atitude é rebaixada durante a queixa, o tórax se comprime e o coração se encolhe. Isso é morte, não é vida.

A vida, no entanto, é abertura, aventura, encontro, é possibilidade, é vontade de estar bem.

A queixa torna a vida pesada e difícil; ela é inútil pois trava os melhores recursos vitais.

É preciso passar da queixa à solução, do lamento à busca de uma nova possibilidade.

Cada dia, a vida traz sua surpresa; cada dia amanhece um novo sol.

A espiritualidade cristã alimenta uma integração entre as duas dimensões: pastor e ovelha, mulher e moeda, pai e filho. São dimensões encontradas em nosso próprio interior. A espiritualidade não significa alimentar um combate que desgasta, mas possibilitar um encontro entre as duas realidades. Nada se perde, tudo se pacifica e tudo desemboca na alegria festiva.

Há sempre uma nova aprendizagem que brota do encontro com o que está mais frágil. O pastor também aprende ao acolher a ovelha perdida, pois é no encontro com ela que desperta o seu ser cuidadoso. A mulher aprende ao encontrar a moeda perdida, pois passa a tomar consciência mais profunda da sua própria casa; ao varrê-la, vai conhecendo outros pontos surpreendentes, atrofiados pelo ritmo cotidiano. O pai, no retorno do filho, expressa toda a potencialidade e reserva de compaixão, que não tivera oportunidade de expressar na relação com o filho mais velho. Todos os personagens, no encontro com os “perdidos”, saem enriquecidos e mais humanos.

Enfim, o evangelho deste domingo nos convida a transitar pelos espaços interiores à procura do nosso eu perdido, do nosso centro perdido, dos ideais perdidos, da alegria perdida, da fé perdida, do amor perdido...

Precisamos ser pastor de nossa interioridade; corremos o risco de só “cuidar” daquilo que é ovelha sadia e que está no redil, descuidando das outras ovelhas que estão afastadas e que requerem uma atenção e um cuidado especial. Nada do que é humano deve ser rejeitado.

“O risco que corremos é nos acomodar e nos enganar, fingindo que não damos pela falta de uma outra vida, de um novo ardor, de um coração inteiro. No caminho espiritual o importante é a decisão interior que nos leva a retomar a arte da busca e da inteireza. “Para ser grande, sê inteiro”, nos diz Fernando Pessoa. E o grande desafio da vida espiritual não é o da grandeza, mas o da inteireza. Sermos nós mesmos”. (cf. José Tolentino Mendonça – O tesouro escondido – Paulinas – pp 15-19)

Texto bíblicoLc 15,1-32

Na oração:

Re-visite sua casa e seu redil interior; transite pelos espaços onde se encontram

os seus “perdidos”; deixe a luz misericordiosa do Deus Pai/Mãe chegar até ali onde tudo foi rejeitado, reprimido, escondido...

- Dê nomes aos seus “perdidos”: acolha-os, pois eles podem ser des-veladores de novos recursos e de novas potencialidades de vida.

Ser capaz de agradecer os “perdidos” que foram encontrados é sinal de maturidade espiritual e humana. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Seguimento de Jesus = Esvaziamento do “Ego”

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 23º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).  

“Quem não se desapega de sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26)

Para poder entender o sentido do evangelho de hoje é preciso recordar que Jesus está a caminho de Jerusalém. Ele adverte à multidão que o acompanhava sobre as exigências próprias de um autêntico seguimento; para Ele não basta o entusiasmo passageiro e o fervor momentâneo. No fundo, Jesus quer verificar as reais motivações e a sinceridade de atitude daqueles que estão fazendo caminho com Ele. É preciso ter somente um “foco” no caminho do seguimento; há sempre o risco de caminhar em diferentes direções, desviando-se da atenção primeira no caminho de Jesus.

Daí a radicalidade das exigências de Jesus: “desapegar-se da família”, “carregar a cruz”, “renunciar a tudo que tem”. As três se resumem numa só: disponibilidade total. Sem ela não pode haver seguimento.

O seguimento de Jesus é questão de sedução, de atração, de paixão...; exige um “investimento afetivo” total. O(a) discípulo(a) pela metade não pode fazer caminho com Jesus; não servem as entregas pela metade.

Tudo se decide nos afetos. Os afetos podem nos situar no horizonte maior (seguimento) ou podem nos fixar nas mediações (família, apego a si mesmo, às coisas...) atrofiando e esvaziando o impulso do seguimento, travando a liberdade.

A afetividade ordenada nos faz livres para viver o seguimento de Jesus com mais leveza.

Por isso, é preciso detectar as aderências e fixações afetivas (apegos) que limitam a liberdade e que podem minar o seguimento.

Seguir Jesus é deixar de viver para o “eu”, é descentrar-nos, não ser mais o centro de nosso próprio projeto. O seguimento brota, pois, de uma “sintonia profunda” com Ele, esvaziando nosso “eu inflado” para entrar em comunhão com seu modo de viver e com seu Projeto.

Jesus é presença sem mescla de “ego”: o centro de sua vida não está em si mesmo, mas na comunhão com a vontade do Pai e na solidariedade com os últimos e sofredores. Diante d’Ele, brota em nós uma “ressonância interior”, absolutamente iluminadora e motivadora, que desperta, ativa e mobiliza a segui-lo, des-centrando-nos de nós mesmos. Esta nova experiência modifica a maneira de perceber toda a realidade: a família, os outros, os bens, o nosso próprio eu... A vida mesma é percebida de um modo novo.

Este é o caminho do Seguimento. Jesus quer seguidores(as) com liberdade, com decisão e responsabilidade.

Para isso é preciso “renunciar a tudo” para ser pessoas, em amor e partilha. “Renunciar a tudo” para que todos possam ter, para que todos possam compartilhar fraternalmente tudo.

O que significa “renunciar a tudo” e desapegar-se dos seres mais queridos? Significa sair da visão egocentrada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma: “Deixa de crer que és o eu separado (e fechado na torre) e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; não vejas nem sequer a tua família a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-os a partir de tua verdadeira identidade, onde todos sois um, mas sem apego nem comparações”.

Não é a renúncia em si que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.

A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando se faz por algo melhor. O apego às coisas ou às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.

Os ensinamentos de Jesus, no evangelho deste domingo, são um chamado ao realismo. Para além das imagens que Ele usa, poderíamos sintetizá-las assim: Até onde estou disposto a ir no seguimento? Estou motivado e decidido a manter o “sim” até o final? Estou pronto para viver a fidelidade à causa do Reino, mesmo correndo o risco de encontrar cruzes?

Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morre na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional de Deus e o compromisso com os excluídos.

Cruz, (“staurós” no grego) não significa simplesmente patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos àqueles que consideravam transgressores da ordem ou subversivos; significa prontidão, estar preparado, estar de pé, mobilizado, firme, fiel até o fim... Nesse sentido, a “cruz-staurós” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros; ela é vivida a partir de uma causa: o Reino. A cruz não é um “peso morto” a ser suportado; ela é consequência de uma opção radical em favor da vida; a

cruz não significa passividade e resignação, pois ela brota de uma vida plena e transbordante; a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

Existem cruzes que são vazias, sem sentido, in-sensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. São cruzes que brotam dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... e que não foram integradas Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de sentido; elas se fixam no passado, na mortificação, no ritualismo vazio... com a intenção de agradar a Deus. Fazer o caminho com Jesus, que carrega a cruz da fidelidade, ajuda a romper com as cruzes que afundam no desespero e no fracasso.

Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Carregar a cruz significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com a causa de Jesus e a fidelidade no compromisso com os outros.

É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.

A cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; nela mesma, não salva; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir.

A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11,28-30).

“Carregar a cruz” não é ser amigo da dor, mas sinal de lucidez. Significa assumir que toda a existência é um caminho progressivo de “morte do ego” (de identificação com ele), para possibilitar que “nasça” e viva o que realmente somos. Como dissera o próprio Jesus, se trata de “perder para ganhar”, morrer para viver.

Texto bíblico: Lc 14,25-33

Na oração:

A sua maneira de viver o seguimento de Jesus faz diferença no seu ambiente cotidiano (família, trabalho, relações...)?

- Você já fez a experiência de encontrar oposição e perseguição por sua fidelidade aos valores do Evangelho?

- Em que circunstâncias da vida o “ego inflado” tem aparecido? Você se deixa determinar por ele ou pela vida verdadeira que se revela como esvaziamento?