sábado, 30 de junho de 2018

Quando Jesus é ‘Rocha’ em Nosso Interior

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Solenidade de S. Pedro e S. Paulo.

“Tu és Pedro, e sobre esta rocha edificarei a minha igreja...” (Mt 16,18)

Há indicações históricas de que já no séc. IV se celebrava uma festa em honra de S. Pedro e S. Paulo. Não é fácil descobrir as razões que levaram aqueles primeiros cristãos a unir em uma mesma celebração litúrgica duas figuras humanas tão diferentes. O mais provável é porque os dois foram martirizados em Roma durante a perseguição de Nero e quase ao mesmo tempo. Pode ser também porque suas sepulturas estivessem juntas durante muito tempo. É também provável que muito cedo se descobriu a complementariedade desses dois homens. De qualquer forma, são um claro exemplo de que personalidades tão diferentes, que inclusive discutiram duramente aspectos importantes da primitiva fé cristã, pudessem ser dois seguidores autênticos de Jesus.
Mas, desde sempre, Pedro e Paulo foram considerados como as colunas da Igreja. No caso de Paulo é tão evidente que alguns estudiosos chegaram a dizer que ele foi o verdadeiro fundador da Igreja, enquanto organização.
Pedro é o personagem mais destacado em todo o NT. Mesmo assim, sabemos muito pouco de sua vida. Pelo contrário, Paulo é a pessoa melhor documentada. É o único apóstolo do qual podemos fazer uma biografia quase completa.

O texto do Evangelho da festa de hoje nos ajuda a reler nossa vida. Ali afirma-se nossa identidade: temos um nome, que carrega algo sólido, firme, resistente, que não se desfaz com as adversidades existenciais (crises, fracassos...). A identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é consistente, seguro... no seu interior e não pelo nome em si.
“Tu és Pedro e sobre esta rocha edificarei minha Igreja..."
E sobre ela, ao longo dos séculos, se assentou a fé dos cristãos de todos os tempos. Mas a Pedra da qual Cristo fala não é Pedro, pois a pedra da sua presunção, de sua segurança, de seu orgulho se transformou em cacos com suas negações na noite da Paixão.
Mais tarde, Pedro, estará em condição de entender que a Pedra é unicamente Jesus. Somente Ele oferece toda a segurança. Pedro nos alenta na fé: confirma os seus irmãos, mas a fé é em Jesus Cristo.
O fundamento da Igreja é Jesus Cristo. Quem é decisivo na Igreja é Ele. O papa, os bispos, a clero tem sua missão e sua importância, mas a pedra angular é o Senhor.
Igualmente decisivo é o Reino de Deus, não a Igreja. A Igreja é aquela que trabalha em favor do Reino de Deus, mas o fundamento último é o Reino de Deus. Um Reino de justiça, de amor e de paz.

Mateus, no evangelho deste domingo, nos situa diante de um jogo de palavras entre “petros” (pedregulho, pedra sem estabilidade e que se esfarela) e “petra” (rocha firme, consistente).
Simão é, por si mesmo, um “petros”, mas através de sua confissão messiânica, acolhendo a revelação de Deus e confessando Jesus como o Cristo, Filho de Deus vivo, alargou sua interioridade para que o mesmo Jesus ali se fizesse “petra” (Rocha – fundamento). Pedro chega ao grau máximo de identificação com Jesus, que mais tarde Paulo afirmará: “Não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”. Pedro é proclamado bem-aventurado porque na sua fragilidade (petros) Jesus se faz presença solidificada (petra).
A Igreja se fundamenta na misericórdia de Deus, não na força dos homens. A Igreja é a comunidade dos pecadores perdoados, não a comunidade dos perfeitos.

A primeira coisa que estes dois personagens, Pedro e Paulo, nos ensinam é que não é nada fácil aceitar a mensagem de Jesus e segui-Lo. Precisamente, os dois foram os mais resistentes, cada um à sua maneira, na hora de dar o passo e aceitar o verdadeiro Jesus. Tanto Pedro como Paulo eram pessoas muito religiosas e que se encontravam muito confortáveis dentro do judaísmo. O encontro com Jesus desbaratou essa segurança e os fez entrar na dinâmica de uma autêntica relação com o Mestre galileu.
Pedro, com toda espontaneidade, não perde ocasião de manifestar sua oposição àquilo que o Mestre dizia.
Paulo foi um fanático na defesa de sua religião. Por defender o judaísmo se converteu em perseguidor de todos aqueles que seguiam a maior heresia surgida dentro do judaísmo: “os seguidores do caminho”.
Mais ainda: pode-se perceber claramente nos evangelhos os obstáculos que eles tiveram de superar para passar do conhecimento de Jesus à vivência de tudo o que Ele pregou. Seria muito interessante descobrir que somente a partir da vivência pessoal alguém pode se lançar à missão de comunicar uma fé. Isto explica como um punhado de pessoas, em pouco tempo, foram capazes de transformar o mundo até então conhecido.

Essa dificuldade que Pedro e Paulo tiveram para seguir Jesus, pode ser de muita ajuda para nós hoje. Pedro, antes da experiência pascal, seguia a um Jesus que se encaixava em seus ideais e interesses de bom judeu. Paulo, antes da queda a caminho de Damasco, servia ao Deus do AT que estava a anos-luz do Deus de Jesus.
Não serve para nada seguir a Jesus sem conhecê-Lo a fundo, identificando-nos com seu modo de ser e viver. Só depois de termos superado os nossos pré-juízos, estaremos preparados para despertar nos outros o desejo de viver o mesmo seguimento.
Todos temos de passar pelo doloroso processo de maturação na fé, pelo qual passaram Pedro e Paulo. No caso deles, a dificuldade se agravou porque os dois tiveram que dar o salto de uma religião centrada na Lei a uma experiência interior de seguimento, o que não é em nenhum caso, algo cômodo.
Da aprendizagem de uma doutrina à vivência do seguimento de uma Pessoa, há um grande percurso que todos devemos fazer. Sem essa passagem a fé se converte em pura teoria, que torna estéril nossa vida e nem desperta sedução nos outros. Talvez esteja aqui a causa de muitos fracassos no caminho da evangelização. Estamos mais preocupados em “passar” uma doutrina, uma moral, uma religião... e não deixamos transparecer em nossas vidas que somos seguidores d’Aquele que é Rocha em nosso interior.

Na origem do discipulado e da igreja está sempre presente a consciência de termos sido chamados. A vontade e a decisão de cada um são imprescindíveis, mas são despertadas pela chamado e testemunho de outros, pelo chamado de Jesus e, em último termo, pelo chamado do próprio Deus. Isso é o que significa originariamente o termo “igreja” (ekklesia): “comunidade de chamados”.
No chamado de Jesus, Pedro e Paulo reconheceram o chamado de seu próprio interior, o chamado do povo sofredor, o chamado dos tempos difíceis e, em última instância, o chamado do Deus grande e próximo que lhes convidava à identificação com seu Filho e ao compromisso com o Reino.


Texto bíblicoMt 16,13-19

Na oração:
É o Espírito que, guiando-nos pelo caminho da escuta de nosso “eu interior”, nos faz sentir originais, únicos, sagrados...
A oração é a chave interior que abre cami-nho  para chegarmos até o “eu original”, aquele lugar sólido, a rocha sobre a qual construimos nossa vida. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos  no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa sobre a qual encontramos segurança para caminhar na vida, superando as dificuldades e as inevitáveis resistências na vivência do Reino.

- Dê nomes aos seus recursos internos, valores e capacidades, sonhos e desejos... que dão solidez à sua vida.

sábado, 23 de junho de 2018

Chamados pelo Nome, no Fluxo da Vida

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Natividade de João Batista.

“João é o seu nome” (Lc. 1,63)

A natividade de João Batista assemelha-se às festas da infância de Jesus. O espírito da festa é tipicamente de Lucas, ou seja, ela é inspirada e sustentada pela manifestação da graça e da bondade de Deus.
O nascimento de João se dá num clima de intensa alegria. Isabel se alegra e com ela os vizinhos. É a alegria de haver nascido um menino de uma mãe que era estéril e de idade avançada. Esta alegria do coração se manifesta no louvor: o Senhor tem favorecido com grande misericórdia. O reconhecimento agradecido dos grandes feitos do Senhor proporciona alegria.
A alegria é um sentimento central na experiência cristã. Nisto consiste a verdadeira alegria: sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, nos visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária.
Alegria que brota do interior e é um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz sentir como filhos (as) de Deus, capazes de viver e saborear sua bondade e misericórdia.

O nascimento de João Batista é cheio de mistério, porque ali todos descobrem o agir misterioso de Deus.
É o mistério da vida. É o mistério de Deus que dá a vida como presente; é o mistério de um ventre seco que se torna fértil; o mistério do novo em um ventre que carrega a “novidade”.
Dois anciãos, Isabel e Zacarias: uma grávida, o outro mudo. No entanto, uma vida que cresce.
“Os vizinhos e parentes ouviram dizer...” Não tinham percebido até o nascimento? Alguém afirmou que, de vergonha, Isabel se retirou a um sítio vizinho para esconder o mistério de Deus em seu ventre.
Pode-se ocultar a gravidez; não se pode ocultar o filho. Para eles, é o filho esperado no silêncio que faz amadurecer a fé. Para os vizinhos e parentes, o filho da surpresa. E todos o veem “como o Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela”. E todos se perguntavam: “O que virá a ser este menino?”

A natividade de João é uma visibilização do mistério da misericórdia de Deus; é o mistério da missão que Deus tinha para ele. Não seria sacerdote como seu pai; seria um mensageiro que prepara caminhos.
João Batista é a primeira ruptura com o passado. Já não se chamará Zacarias, porque não será como seu pai. Chamar-se-á João porque anunciará o novo que está ali mesmo, a seu lado, no ventre virginal de Maria.
Não será o “homem do templo e do culto”, mas o “homem do deserto e do anúncio”.
Não será o “homem que recorda o passado”; será o “homem que anuncia a proximidade do novo”.
Não será o “homem que anuncia a esperança”; será o “homem que anuncia que a esperança já é realidade”.
Não será o “homem da lei”; será o “homem que abre caminhos onde tudo parece estar bloqueado.

Por isso, o tema central do Evangelho deste domingo é este: “João é seu nome”. Esta frase é uma mensagem da gratuidade e bondade de Deus. João é um nome muito especial. Nele são guardadas muitas e importantes lembranças. De fato, o nome “Yohanan” significa “Deus se mostrou misericordioso”.
João é um dom gratuito de Deus, pois está além dos cálculos humanos; pertence plenamente a Deus. Nem sempre Deus elege o tradicional, o velho costume, o caminho trilhado. Agora nasce um tempo novo: o Espírito vai por caminhos novos, que nem sempre são fáceis de conhecer.
É Deus quem toma a iniciativa e chama pelo nome. O “nome” encerra toda a verdade da pessoa e, ao mesmo tempo, todo o mistério da sua relação direta com Deus.
Na Bíblia, o nome é algo dinâmico, é um programa de vida. A troca de nome implica uma missão que deve ser realizada pela pessoa (Gen, 17,5; Jo. 1,42).
Um nome novo: uma aventura que começa; uma história a ser construída.
O nome é ponto de partida e de chegada na relação com Deus.

Todo nascimento é um mistério. Por isso, cada um de nós é fruto do mistério da misericórdia de Deus. E todos somos o mistério do anúncio do novo. Não somos repetição de ninguém. Somos únicos. E somos preparadores dos caminhos de Deus. Nosso nome, escrito na palma da mão de Deus, é uma missão a realizar.
É preciso crescer na consciência de que o próprio nome tem uma história e manifesta uma identidade única, irrepetível, original. O nome próprio está relacionado com nossa realidade pessoal, responsável, criativa e livre. Essa identidade vai sendo elaborada ao longo de nossa história pessoal, com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, as alegrias e os sofrimentos... que vão pontilhando nossa existência e formando esse ser único que somos nós.


Na linguagem bíblica, “nome” significa aquilo que torna a pessoa única.  O nome é um símbolo que exprime a individualidade de cada um. No nome está toda a pessoa. O nome é a pessoa.
Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa; é o primeiro passo para o encontro pessoal; é pelo nome que nos identificamos.
Os orientais, por exemplo, não dizem o seu nome a qualquer um. Só aos amigos, aos seus mais íntimos.
Conhecer o nome de alguém, para eles, é conhecer a pessoa toda. Fazer saber o seu nome é prova de amizade. Interessar-se por conhecer o nome é interessar-se pela pessoa.
O nome é referência reveladora da verdade da pessoa. É a porta de entrada de cada história particular.
Deus sabe o nosso nome: “Eu te gravei na palma de minha mão” (Is. 49,16).
Deus nunca pode olhar Sua mão sem ver o nosso nome. E o nosso nome quer dizer: “EU mesmo”
Deus garante a nossa identidade: podemos ser nós mesmos.
Ter recebido um nome de Deus significa tomar um lugar na história, uma missão a cumprir.
Nosso nome secreto Deus o conhece.

Cada um de nós tem um nome, que é próprio, não comum. É de uma pessoa. Ele expressa o nosso ser, indica uma missão a realizar, uma vocação a viver, um apelo a responder. Somos seres chamados. É isso que significa ter um nome.
Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém realiza-la-á por nós. Ser fiel ao nome é ser fiel à própria vocação.
A dinâmica da relação com Deus passa através da nossa história, das nossas alegrias, dos nossos sofrimentos, e das nossas perguntas: “Quem sou eu?”, “O que quereis de mim?”.
Não posso permanecer indiferente. É preciso ter coragem de perguntar: “Quem me chama?” e “a quê me chama?”; pedir ajuda para conseguir entender, reconhecer, descobrir o próprio nome.
Deus, no momento em que me chama pelo nome, me revela a mim mesmo.
Assim, meu nome se torna a minha própria vida, o meu patrimônio existencial, a minha realidade.


Texto bíblicoLc. 1,57-66

- Tome consciência de que também você tem um nome, é pessoa única e com características muito particulares. Você tem uma dignidade imensa: é imagem e semelhança de Deus.
-  Para realizar o seu nome, você deve ser você mesmo. Você tem a sua própria vida, o seu modo próprio e original de ser.
- Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.

- Rezar o sentido do seu nome.

sábado, 16 de junho de 2018

O Reino é Verde

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 11º Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra; ... e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece” (Mc 4,26-27)

Todas as religiões e culturas se servem de relatos para revelar a verdade e fazer chegar até nós a sabedoria de nossos antepassados. A revelação mais antiga e universal é que a Terra e todas as suas criaturas, assim como o ar, o solo, a pedra e a água são sagrados, e que esta verdade deve refletir-se em nossas vidas.
Como cristãos, seguir Jesus Cristo hoje é adquirir conhecimento e experiência consciente desta história oculta e sagrada. Com efeito, a Terra acolheu Jesus como acolhe toda pessoa que vem a este mundo.
É a casa verdadeira, a mais básica. Jesus sentiu a companhia desta Terra que é irmã e mãe.
Os Evangelhos destacam de muitas maneiras a boa relação que Ele teve com a Terra. Desfrutou dos caminhos andados, dos campos semeados, do vento que se assemelha ao Espírito, das árvores que servirão como parábolas do Reino, das vinhas que serão símbolo de sua oferta em novidade...
Jesus experimentou a dureza da Terra, sua aspereza no deserto e o calor de seu abrigo à hora da morte; pisou o chão de terra batida, machucada, rasgada... Teve uma mentalidade inclusiva porque, no fundo, entendeu que tudo estava relacionado e que as coisas e as pessoas espreitam o mesmo horizonte.

O ritmo da natureza inspirou Jesus para anunciar que o Reino também tem seu ritmo e seu momento. Não o acelera a impaciência de uns nem o paralisa o fracasso de outros. Não somos nós que levamos o Reino em nossas mãos, mas é nossa missão ajudar a desvelá-lo (tirar o véu) na vida humana como o dinamismo mais profundo da existência. O Reino alcança a todos, ninguém fica excluído; ele não está fechado dentro dos limites de uma igreja ou das religiões.
Ninguém tem a exclusividade do Reino, e por isso mesmo devemos viver constantemente despertos para descobri-lo e acolhê-lo ali onde se faz presente, seja onde for.
Precisamos cultivar processos. O Reino tem seu tempo, o tempo de Deus, que não coincide necessariamente com os nossos tempos, projetos e ansiedades. Saber distender-se nos processos, não querer acelerá-los pela ansiedade que nos chega de uma cultura estressante, nem nos paralisar diante de um ambiente de desencanto, é uma grande sabedoria. Atravessamos momentos favoráveis e luminosos como o dia, e momentos desfavoráveis como a noite, com sua obscuridade e seu desconcerto. Não podemos nos apoderar dos momentos luminosos, nem nos perder nas trevas obscuras e ameaçantes: “o agricultor vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo...”

Por isso, a melhor imagem que Jesus encontrou para expressar essa “presença misteriosa” do Reino é a da semente. Na semente acha-se presente uma grande força de crescimento. A força da vida, contida na semente, envelhecerá e se apodrecerá se não houver quem confie nela, se não houver quem arrisque sua terra, seu tempo e seu trabalho. Quando a semente é enterrada na terra, ela já conhece o seu caminho; escondida ali, debaixo da terra, envolvida pelo absoluto silêncio, a semente germina e vai crescendo.
Mesmo à margem de todo e qualquer esforço que possa ser feito pelo agricultor, “a terra por si mesma produz fruto”, ultrapassando etapas precisas e bem definidas, que de modo algum podem ser modificadas, apressadas ou suprimidas. O importante é dar frutos no seu devido tempo.
“As sementes armazenam possibilidades misteriosas e surpreendentes aos nossos olhos. Cada semente é uma fonte, um desfecho, uma pausa da eternidade. Ser semente é possuir todas as idades, todos os percursos, todas as histórias. É preciso prezar a coragem das sementes. Apodrecer para inaugurar o fruto. Cada semente, como poesia, é um bilhete para viagens” (Campos Queiroz).

“O Reino é verde”: as parábolas do Reino nos animam a “descer” junto à natureza com um sentimento e uma visão de parentesco; todos procedemos das mesmas entranhas amorosas do Criador. As parábolas nos ajudam a desenvolver uma relação de proximidade e um conhecimento espiritual da vida, para aproximarmos da terra com espírito de gratidão, frente a uma visão de domínio e exploração; elas também nos animam a despertar em nós um espírito de solidariedade para compartilhar os bens da terra com os pobres e os marginalizados. Este equilíbrio conserva a comunidade de vida para o futuro e promove uma esperança cósmica.
A relação com a terra, pegá-la entre as mãos, espremê-la, semear e plantar, regar e ver crescer, é um exercício espiritual para o ser humano; conhecer a terra e o entorno é conhecer o que torna possível a vida. A vida depende de uma fina camada de 15 cm ao redor da terra: por que maltratá-la, desconhecê-la, ignorá-la, desprezá-la? Dizem os cientistas que em um punhado de terra há mais biodiversidade que toda aquela que até o momento conhecemos no resto do Universo. E este milagre não nos diz nada?


Sabemos que o “novo” sempre nasce pequeno, frágil, oculto e a partir de baixo. As sementes, muito pequenas, são colocadas na terra e desaparecem. No entanto, contém uma vitalidade oculta que as leva a germinar. O fundamental não é seu tamanho senão a enorme força transformadora que contém e sua grande fecundidade.
Submergidas na terra, as sementes vivem um lento processo até poderem liberar uma vida nova e abundante. Mas para que isto aconteça sofrem uma certa morte: para gerar vida, entregam sua vida.
Não esqueçamos que somos terra e em terra nos converteremos.
Somos terra de Deus, alimentada pela seiva de seu Espírito. Sobre esta terra, Deus plantou a semente de seu Reino para que germine, cresça e dê frutos. O que essa semente carrega em seu interior é um novo modo de viver e conviver, em sintonia com todas as expressões de vida.
Como as sementes na terra, somos movidos a atuar a partir de dentro, transformando a realidade e mobilizando os meios mais simples, mas com criatividade e audácia.

Viver a experiência do Reino significa, portanto, “mergulhar os pés na terra” (Lev. 25,1-24). É na obscuridade da terra que a planta vai buscar a força que a manterá viva, que lhe dará condição de expandir sua copa em direção à imensidão do céu. As raízes mergulham na terra de modo profundo, silencioso e lento.
Na experiência espiritual nos é pedido que mergulhemos no “chão da vida”, como as raízes na obscuridade, na presença do silêncio. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio.
Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão da vida e viver em comunhão com a comunidade das criaturas. Faz-se necessário lançar raízes no mais profundo do humano e despertar todas as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente, toda decisão de assumir-se como cooperador e artífice de um novo tempo.
Sentir-se Terra é perceber-se dentro de uma complexa comunidade de seres vivos. É a diversidade incontável de seres vivos, animais, pássaros e peixes, nossos companheiros dentro da unidade sagrada da vida. A Terra produz, para todos, condições de subsistência, de evolução e de alimentação, no solo, no subsolo e no ar. Terra, nossa “casa comum”!
Sentir-se Terra é mergulhar na comunidade terrenal, todos filhos e filhas da grande e generosa Mãe. A hora é de somar em prol da vida e no cuidado de todos os seres da Terra.
É para Deus que tudo converge. É Ele que tudo sustenta. É Ele que, no Amor, tudo atrai.

Texto bíblicoMc 4,26-34

Na oração:
Mobilize seus sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa terra.
Considere sua conexão com esta beleza e como ela lhe faz perceber o amor da Trindade ao cosmos em constante evolução.

Considere o novo sentimento de maravilha que cresce em seu coração e como dá novo sentido à sua missão de ser colaborador(a) no grande jardim do Criador.

domingo, 10 de junho de 2018

Por que temos Medo de quem é Diferente?

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 10º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


“Os mestres da lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que Ele estava possuído por Belzebu…”

Desconcertante: exatamente assim foi Jesus; e sabemos disso através dos evangelhos. Jesus foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se revelou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Jesus desconcertou sua família que o considerava louco; desconcertou àqueles que o acusavam de “blasfemo”, de “Belzebu”, de “escandaloso”. Jesus desconcertou todo mundo, até o final de sua vida, que foi o mais desconcertante de tudo. Desconcertou porque assumiu uma postura diferente frente ao contexto social, religioso e político no qual viveu. Jesus não se “encaixou” em nenhum grupo e deixou transparecer sua liberdade frente às leis, às tradições de seu povo, ao templo, aos poderes... Por isso foi incompreendido e rejeitado.
Numa sociedade corrupta e deformada, uma pessoa que se ajusta ao modo de proceder e de pensar dos intolerantes e preconceituosos, não desconcerta ninguém; é uma pessoa “formatada” que passa pela vida sem deixar “marcas”, sem saber “por quê e para quê vive”, deixando tudo como está.

Jesus viveu deslocamentos contínuos; fez-se presente em diversos lugares; teve contatos com outras culturas, raças, expressões religiosas… Tudo isso o enriqueceu, tornando-o diferente, aberto; sua vida se ampliou, sua mente se abriu, seu coração se expandiu… Nova visão, nova experiência…
Seu movimento de vida foi desencadeado nas casas, ao longo dos seus percursos; Jesus desejou que também sua casa entrasse nesse movimento em favor da vida. Mas não foi acolhido pelos seus parentes, pois não se “encaixou” mais nos esquemas da família, da religião, da sua comunidade… Seus parentes em Nazaré continuaram vivendo uma estreiteza de vida; Jesus não voltou mais o mesmo, saiu da “normalidade” de vida própria de Nazaré. Voltou enriquecido, expansivo, muito maior, mas não foi compreendido.
O deslocamento de Jesus pelos territórios vizinhos da Galileia revela-se como um apelo e uma ocasião privilegiada para pôr em questão nosso confinamento religioso, nossas posturas fechadas, nossas visões preconceituosas... e abrir-nos à diversidade e ao diferente. Sem alteridade regenerante caímos no confinamento de uma pureza de ortodoxia, de um fascismo enrustido, de um legalismo estéril, de uma doutrina impositiva. Confinamento que nos torna cegos aos valores e riquezas que vem de outras expressões humanas, sociais e religiosas.
Vivemos contínuos deslocamentos geográficos, sociais, culturais, religiosos… Tudo isso nos enriquece. Com esta riqueza voltamos às nossas Nazarés, para ampliá-las, expandi-las. Não se trata de impor, mas de propor; compartilhar as ricas experiências adquiridas.
Não é fácil ser diferente dos outros; não é fácil assumir uma vida alternativa frente àqueles que estão petrificados em suas posturas e ideias; não é fácil dizer “não” onde todos, como cordeiros, dizem “sim”; não é fácil fazer o que ninguém quer fazer.

Toda autêntica vida humana é vida com os outros, é convivência, é encontro... Assim, o princípio de alteridade está fundado no princípio de identidade; a diversidade reforça a identidade pessoal: podemos nos compreender apesar de sermos diferentes, porque todos somos seres criados e agraciados por Deus, chamados a ser habitados por uma verdade que está para além de uma religião e uma cultura específica.
Somos humanos, seres em caminho, buscadores de sentido, buscadores da verdade e habitados pelo mesmo Deus. E viver a “cultura do encontro” (Papa Francisco) implica respeitar e se alegrar com a diversidade, considerando-a riqueza. Saber conviver com as diferenças é sinal de maturidade. É maravilhoso que haja raças, costumes, cultura, gênero, religiões, tradições, línguas, formas de pensar... diferentes. 
Assim, ser seguidores (as) de Jesus nos converte em seres abertos, acolhedores da diferença.

As diferenças mobilizam a energia e a fertilidade criadora; elas provocam intercâmbio entre as pessoas. A diversidade é uma forma de aproximação entre os seres humanos.  A diferença do “outro” deve ser motivo para o encontro e para o enriquecimento mútuo. A diferença é rebelde, quebra o uniformismo, convulsiona a quietude, sacode a rotina. É a diferença que gera alteridade. O outro é diversificado e não repetitivo. Massificar as pessoas é uma forma de silenciá-las e dominá-las. Perverter a diferença é uma atitude que degrada a pessoa. Diferença é originalidade, é o inédito, é o que excede a medida comum, é o que distingue uma personalidade de outra. A humanidade é profundamente diversificada em seus talentos, valores originais e em sua vitalidade; seu tesouro está precisamente em sua diversidade criadora.
Daí a importância e a urgência de aprender a valorizar o que é próprio e também o que é diferente, esforçando-se para não transformar as diferenças normais (geográficas, culturais, de raça, de gênero...) em desigualdades. É preciso educar e preservar as diferenças humanas.
Deveríamos pensar mais sobre a importância das diferenças que nos humanizam.  Deveríamos admirar as diferenças pessoais e grupais, e não lamentá-las. É necessário evitar tudo o que reprime as diferenças e desenvolver a verdadeira coexistência pessoal, social, científica, religiosa, ética. Deveríamos remover abusos e vícios que anulam a diferenças. Perverter a diferença é uma atitude que degrada a pessoa. Valorizar a diferença e os diferentes implica tratar com cortesia, saber interagir, trabalhar juntos, respeitar...

Segundo o modo de ser e proceder de Jesus, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de abrir-se ao novo. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus, pois acredita que quem é diferente “está possuído por um espírito mau” (3,30).
Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e à injustiça que destroem as relações entre as pessoas. Passamos a viver separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia. Quem assume atitudes de indiferença tem medo do diferente, e a vida vai se atrofiando...
Num coração petrificado o Espírito não tem liberdade de atuar; dessa resistência à ação do Espírito brotam as doentias divisões internas. São os dinamismos “dia-bólicos” (aquilo que divide) que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos.
Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. Daí a importância de aprender a ver o melhor de cada pessoa e de cada povo, superando as visões estreitas e fundamentalistas e todo tipo de racismo, xenofobia, desprezo, mixofobia, preconceito, dominação...
A “Ruah de Deus” nos move a construir uma Comunidade fraterna, capaz de abrir suas portas e derrubar seus muros, para que ninguém se sinta excluído. É missão específica da Ruah integrar as diferenças numa grande comunhão universal. Não podemos matar a presença e a ação original do Espírito.


Texto bíblicoMc 3,20-35

Na oração:
“E olhando para os estavam sentados ao seu redor…” Estar em círculo supõe uma postura de acolhida e comunhão com os outros, respeitando sua diversidade.  Tal atitude quebra toda pretensão de imposição, de poder, de violência... Isso só é possível quando Jesus se faz o centro.
Trata-se de uma imagem espacial do discipulado que pode nos ajudar a entender melhor nossas posturas vitais, tanto no nível pessoal como no comunitário ou na missão.
- “Estar em círculo” também quer dizer que estamos vinculados a outros numa postura corporal que tem Jesus como centro. A imagem do círculo é a que melhor expressa o modo de seguir Jesus e não a “hierarquia” que dá margem ao carreirismo e à busca de poder. 

domingo, 3 de junho de 2018

Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate - Capítulo 1

Na reunião do dia 29/05/2018, a CVX Amar e Servir iniciou a reflexão e partilha da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE), do Papa Francisco. A exortação tem foco nos desafios de ser santos no mundo atual, com indicações sobre como viver a santidade - um chamado que é para todos - em um mundo que apresenta tantos desafios à fé.

A reflexão seguirá a divisão do texto da exortação em capítulos. Nessa primeira reunião, refletimos e partilhamos o Capítulo 1 - O chamado à Santidade. Esse capítulo apresenta os seguintes subtemas:
Os santos que nos encorajam e acompanham [3-5]
Os santos ao pé da porta [6-9]
O Senhor chama [10-13]
A ti também [14-18]
A tua missão em Cristo [19-24]
A atividade que santifica [25-31]
Mais vivos, mais humanos [32-34]

Foram destacados os seguintes pontos fortes na reflexão:

-- A comunidade deve ser vista e vivida como um caminho para a santidade: “O Senhor, na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar numa dinâmica popular, na dinâmica dum povo” (GE, 6)

-- O chamado à santidade é universal: “Mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita ‘sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo’. E o ‘testemunho, dado por Cristo até ao derramamento do sangue, tornou-se patrimônio comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes’. (GE, 9)”

-- Não focar nos ideais inatingíveis de santidade: “Há testemunhos que são úteis para nos estimular e motivar, mas não para procurarmos copiá-los, porque isso poderia até afastar-nos do caminho, único e específico, que o Senhor predispôs para nós. Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de muito pessoal” (GE, 11)

-- A santidade é um caminho singular, cada pessoa traça o seu itinerário a partir de um chamado particular que recebe de Deus: “Não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele [...] Há muitas formas existenciais de testemunho” (GE, 11)

-- Santificar-se na missão, na profissão, na vocação, nas ocupações: “Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (GE, 14)

-- Entregar-se por amor nas pequenas coisas, santifica-se nas vivências diárias: “Deixa que a graça do teu Batismo frutifique num caminho de santidade. Deixa que tudo esteja aberto a Deus e, para isso, opta por Ele, escolhe Deus sem cessar” (GE, 15)

-- A missão é o caminho para a santidade: “Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra, sem a conceber como um caminho de santidade” (GE, 19) E esse caminho faz-se no seguimento do Cristo.

-- Reproduzir na sua existência os traços do Cristo: “A medida da santidade é dada pela estatura que Cristo alcança em nós, desde quando, com a força do Espírito Santo, modelamos toda a nossa vida sobre a Sua” (GE, 21)

-- Santidade sim, perfeccionismo não: “Nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto da sua vida” (GE, 22)

-- Vida e missão a serviço do Reino: “A tua identificação com Cristo e os seus desígnios requer o compromisso de construíres, com Ele, este Reino de amor, justiça e paz para todos” (GE, 25) ‘Não é que a vida tenha uma missão, mas a vida é uma missão’ (27)

-- Equilíbrio no uso das coisas para que haja espaço para Deus: “As novidades contínuas dos meios tecnológicos, o fascínio de viajar, as inúmeras ofertas de consumo, às vezes, não deixam espaços vazios onde ressoe a voz de Deus” (GE, 29)

-- Resumo: “Precisamos dum espírito de santidade que impregne tanto a solidão como o serviço, tanto a intimidade como a tarefa evangelizadora, para que cada instante seja expressão de amor doado sob o olhar do Senhor” (GE, 31); ‘A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça’ (GE, 34)

Os demais capítulos da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate serão refletidos nas reuniões subsequentes, a partir das seguintes temáticas:
Capítulo 2 - Dois Inimigos sutis da santidade
Capítulo 3 - À luz do Mestre
Capítulo 4 - Algumas caraterísticas da santidade no mundo atual
Capítulo 5 - Luta, Vigilância e Discernimento

A Intransigência que nos Petrifica

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 9º Domingo do Tempo Comum. Depois da vivência quaresmal e pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecido como "Tempo Comum", seguindo o Evangelista Marcos (Ano B).

“...os fariseus, com os herodianos, tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo”

No Evangelho deste domingo, Jesus desmascara uma patologia do espírito, uma enfermidade da alma, uma espécie de tumor social: trata-se da intransigência, que se expressa nas atitudes de preconceito, intolerância, fanatismo, racismo, indiferença, legalismo, moralismo..., matando na raiz toda possibilidade de encontros humanizadores, sobretudo com os “diferentes”.
O intransigente, precisamente porque é vazio de humanismo, deixa transparecer uma visão hermética e fechada da realidade. Esta visão atrofiada, a partir do lugar e da posição social ou religiosa que ocupam, os leva a um enfrentamento com outros por razões ideológicas, políticas ou religiosas, em lugar de compreender a perspectiva do outro e as verdades latentes que há em todo ser humano.
O roteiro que rege todo intransigente é sumamente simples: consciente ou inconscientemente, divide a humanidade em dois grupos que considera radicalmente opostos. De uma parte, estamos “nós”, que nos encontramos na verdade e somos merecedores de atenção e cuidado, de respeito e inclusive admiração; de outra, se encontram “os outros”, aqueles que estão forçosamente equivocados porque pertencem a um grupo que pensa, sente, age... de maneira diferente. Só resta eliminá-los, ou afastá-los da presença para que não “contaminem” o ambiente com ideias e atitudes subversivas. Em outras palavras, o que transparece é isto: “nós” temos a verdade, “eles” estão no erro.

Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, o intransigente pode ser profundamente cruel para com os outros; com a lei na mão e no coração, ele alimenta um tribunal interior que julga, emite pareceres, condena..., acreditando ser fiel a Deus.
Os obsessivos e os intransigentes sempre criam problemas; e os intransigentes religiosos mais ainda, porque fundamentam sua intransigência em Deus.
A intransigência edifica uma barreira instransponível entre o “nós” e os “outros”. Ao negar sua condição criatural de com-viver junto aos diferentes, seus semelhantes, o intransigente torna-se uma ilha sem vida e triste. Sua intransigência é sintoma de desumanização. E essa desumanização afeta e é prejudicial a todos. Todo mundo perde. Aos poucos, as pessoas se recolhem em seus medos, em suas inseguranças e começam a acreditar que os diferentes são seus inimigos. Da intransigência passa aos sentimentos hostis, aos discursos fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação...

O princípio da diversidade nos diz que no outro há verdade e que esta verdade deve ser reconhecida e entendida. Considerado sob o enfoque do ouvir sem preconceitos, do conhecer a diferença e do amar a verdade presente no outro, a “diversidade reconciliadora” supõe o diálogo fundado no amor.
Para que haja amor é preciso que haja diferenciação. No amor respeitamos a diferença do outro, amamos a diferença do outro. Diferenciar não é separar; a unidade não é a uniformidade. A diferença não dispersa nem divide, mas provoca convergência crítica e favorece a unificação na diversidade.
Ao tornarem absoluta uma verdade, os intransigentes se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
A intolerância é uma expressão de atrofia espiritual que tem graves consequências na vida social e no desenvolvimento dos povos. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível a coesão e a correta interação entre pessoas e grupos humanos. No fundo, tudo isso é expressão de um avassalador vazio existencial.
A vida fanática e intolerante é uma vida sem sentido, carente de interesse e de originalidade,

Em um mundo polarizado por fanatismos de caráter muito diverso, tensionado por forças irracionais, tanto de origem religiosa como política, a educação do “sentido espiritual” da vida constitui uma urgência, frente a uma insistência mecânica de padrões de conduta e de modelos impostos pelos grandes meios de comunicação de massa.
A vida espiritual é abertura, receptividade e movimento. As grandes figuras da história espiritual nunca sucumbiram ao fanatismo e à intransigência. Foram benevolentes, compassivos e receptivos. Praticaram o diálogo com todos, sem discriminação alguma.
Há demasiadas divisões entre nós; há demasiadas condenações e violências (verbal e física); há demasiadas exclusões e marginalizações. E tudo simplesmente “porque não é dos nossos”, “porque não pensa como nós”... Podemos pensar diferente, mas nem por isso temos de nos excluir; não somos donos da verdade;
também os outros pensam e tem uma percepção diferente da realidade. Podemos ter critérios diferentes, mas nem por isso temos que criar muros que nos separam. O diferente não deve excluir ninguém; o diferente pode ser uma fonte de enriquecimento mútuo.

O evangelho deste domingo nos revela que o intransigente nunca se põe no lugar do outro; só ele tem razão. Isso porque ele pensa a partir da lei, mas não pensa a partir da situação e das necessidades dos outros. E com isso ele faz um triste favor a Deus, porque dá a impressão de que Deus prefere suas leis ou suas interpretações e não as carências dos outros.
O intransigente se converte em centro de sua fidelidade à lei; mas prescinde do ser humano.
Ao intransigente não lhe importa que o outro tenha fome no sábado, como tampouco lhe importa que esteja enfermo. O importante é o sábado e não a pessoa.
Mas Jesus pensa e age de outra maneira; primeiro é o ser humano e depois a lei; esta deve estar a serviço do ser humano.
Por isso, a presença de Jesus na sinagoga revela-se como um apelo e uma ocasião privilegiada para pôr em questão nosso confinamento religioso, nossas posturas fechadas, nossas visões sociais estreitas e preconceituosas... e abrir-nos à diversidade e ao diferente. Sem alteridade regenerante caímos no confinamento de uma pureza de ortodoxia, de uma ideologia segregadora, de um legalismo estéril, de uma doutrina impositiva. Confinamento que nos torna cegos aos valores e riquezas que vem de outras expressões humanas e religiosas. O modo de proceder de Jesus nos instiga a acolher a diversidade como expressão da inesgotável criatividade divina.
A diferença promove a unidade lúcida e criativa; por isso é valor a ser preservado e a ser desenvolvido, é potencial a ser ativado.
“O Espírito Santo cria a diversidade na Igreja. A diversidade é bela, mas o mesmo Espírito Santo faz também a unidade, para que a Igreja esteja unida na diversidade; para usar uma expressão bela: uma diversidade reconciliadora” (Papa Francisco).


Texto bíblico:   Mc 2,23-3,6

Na oração:
- A intransigência impede a pessoa de viver, de se abrir ao mundo, de ser espontânea e de viver mais intensamente;
- A impiedade da intolerância frente ao “diferente” e o descalabro dos racismos envenenam corações e fomentam as dinâmicas excludentes que envergonham a humanidade e não podem ser aceitas, pacificamente, pelos(as) seguidores(as) de Jesus;
- O racismo é sutil; está presente lá no fundo; é uma grande praga que exige grande esforço para dela se livrar; vira sentimento que se justifica e dá forma a modos de falar, define posturas e cria as distâncias, rompendo a comunhão.

- Como você se posiciona diante das diferenças religiosas, políticas, raciais, de gênero, de cultura...?