“Este é o
meu filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o” (Mateus 17,5)
O
“mistério de Deus” sempre nos
supera. Parece que Ele se faz menos acessível pelos caminhos da razão. É na vida pessoal ou coletiva onde Deus se revela
presente e manifesta sua Voz. Esta foi a experiência do povo de Israel; esta
foi a experiência do próprio Jesus e dos seus primeiros discípulos.
Mateus,
no seu relato da Transfiguração,
quer transmitir algo da experiência original de poder conhecer a Jesus de uma
“outra” maneira e usa expressões intensas: “alta
montanha”, “seu rosto brilhou como sol”, “suas vestes ficaram brancas como a luz”, “Moisés e
Elias, conversando com Jesus”, “uma nuvem luminosa os cobriu”, e uma “voz”, saindo da nuvem, revelou a verdadeira identidade d’Ele: “Este é meu Filho amado,
escutai-o”.
São expressões vigorosas que comunicam a emoção de haver descoberto o “outro
rosto” de um amigo.
O
Evangelho de hoje nos propõe precisamente isso: uma atenção desperta capaz de
detectar o pulsar da vida e a presença do Senhor que a habita; uma teimosa
convicção de que toda realidade esconde em suas entranhas o poder de
resplandecer, de “revelar-se outra”; e uma escuta expectante que nos permite ouvir,
em meio o alvoroço de tantas vozes, a Voz
que se dirige a cada um de nós e nos sussurra as palavras que possuem o poder
de transfigurar-nos: “Tu
és meu (minha) filho (a) amado(a)”.
A experiência da Transfiguração é isso: Deus entra no
nosso espaço vital, no meio daqueles movimentos difíceis e repetitivos e nos
faz deslocar para o alto da montanha. Exatamente ali, naquela visão tão ampla,
acontece algo novo. Aqui não estamos no templo, nem num dia sagrado.
No grande silêncio da natureza, ouviremos
o sussurro de Sua voz, e nos daremos
conta d’Aquele que está passando, pois desde sempre já nos viu, nos conheceu,
nos amou e nos escolheu.
Aquela Voz amplia nossos olhos, abre nossa mente e alarga o nosso coração.
Sentimo-nos chamados pelo nome e compreendemos melhor a nós mesmos; sentimo-nos
envolvidos por uma Presença que nos faz únicos e re-descobrimos um sentido novo,
um significado inimaginável para nossa própria existência.
Voz mobilizadora, que
nos arranca de nossas tentativas de acomodação (“façamos
aqui três tendas...”)
e nos faz descer em direção ao vale do compromisso e do serviço.
O olhar e a voz de Deus nos atraem para a verdade da nossa própria vida:
mergulhados na Luz, descobriremos a luz
e compreenderemos para onde devemos ir.
Finalmente, não nos sentiremos mais
sozinhos.
Quaresma é
tempo para afinar nossos ouvidos e deixar-nos impactar pela Voz, única e original, que vem de Deus.
Voz que “toca” e desperta forças desconhecidas do nosso interior; Voz que ativa
nossa identidade; Voz que nos faz voltar ao nosso ser essencial; Voz que
reconstrói nossa dignidade e nos ajuda a conectar com o nosso ser mais
profundo.
Quanto aspira nosso coração escutar uma Voz que desate em nós forças
libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões, livres para amar sem
defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa relação nova com a
realidade, com os outros e com Aquele que continuamente sussurra sua Voz como
uma brisa reconfortante.
Quanto precisamos ouvir uma Voz que toque nossas superfícies endurecidas e atinja nossas fibras
mais profundas! Quanto desejamos uma voz que nos liberte de tantas ataduras que
não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem
considerar a beleza da diversidade e da diferença!
Presença e voz que nos arrancam do
nosso ambiente, da nossa rotina... e nos lançam em direção a novos desafios.
Tudo pode começar no alto da Montanha... um encontro.
Neste tempo Quaresmal, “subir a Montanha” requer um ritmo
pessoal, fazer o próprio caminho, vencer os obstáculos,
vivenciar o silêncio, apurar a escuta interior para captar as “vozes”
do coração.
É no silêncio
que a Voz de Deus ressoa com mais intensidade. Voz que desperta as “cordas” do
coração para podermos entrar em “sintonia” com o próprio Criador. Voz que
integra e pacifica nosso ser dividido, estabelecendo uma harmonia em meio aos
sons dissonantes do nosso interior.
Dizem que há pessoas capazes de serem curadas por
uma voz, pela sonoridade de uma voz
determinada. São vozes que “tocam” e despertam forças desconhecidas. Certas
vozes nos devolvem ao nosso “eu original”, ativam recursos ainda latentes.
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncio.
Neste mundo de “palavreado crônico” temos esvaziado o dom da palavra e as vozes
se fazem estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no
calor do silêncio, porque só o silêncio restaura a força mobilizadora de toda
voz. Só assim nossa voz poderá curar, elevar, comunicar vida... Voz que realça
a dignidade a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar-se com
o que há de melhor em seu interior.
Todos os grandes personagens bíblicos
fizeram uma experiência de montanha
(lugar
de intimidade com Deus; lugar onde a Voz divina ressoou com
mais intensidade; lugar da bênção e do envio...). Foi no alto da montanha que Deus se revelou no meio
das nuvens e somente aqueles que se fizeram “simples e despojados” puderam
encontrá-Lo e escutar sua Voz. Sentiram-se transfigurados.
A partir do impacto interior da Voz de Deus,
tais personagens educaram suas vozes para que elas fossem portadoras de vida,
vozes que fizeram emergir a nobreza original das pessoas.
A Montanha é o lugar do encontro íntimo com o Senhor e encontro com o
melhor de nós mesmos (nossa identidade); o silêncio da Montanha
nos des-vela e nos re-vela quem “somos nós”.
A experiência de Montanha significa experiência de “transfiguração”,
ou seja, nos revela nosso ser essencial, nos faz ir além de nossa aparência
para captar nossa riqueza interior, nosso “eu original”.
Além disso, os “momentos” de Montanha nos fazem perceber qual é a direção
de nossa vida, nos apontam qual é o caminho a seguir, qual é a opção
a viver...
Caminhando por trilhas desconhecidas, poderemos
atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer “vozes novas” que nos incitam a
peregrinar para as regiões ainda desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim
poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes que dão sentido e
consis-tência ao nosso viver.
Texto
bíblico: Mateus 17, 1-9
Na
oração:
O
que aconteceu a Viktor Flankl depois de sua libertação em Auschwitz pode também acontecer
conosco: “Em
primeiro lugar se soltava a língua e vários dias depois estalava algo que se
escondia no fundo de nós mesmos”.
-
A escuta da Voz divina no mais profundo de nosso ser é o meio para
transformar-nos e descobrir nossa verdadeira identidade de filhos (as) de Deus.
- No fundo do nosso coração é aí que o
Senhor passa... e com sua Voz
provocante nos acorda para uma ousadia maior. Compete a cada um dar-lhe
acolhida e entrar no movimento expansivo do próprio Deus.
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