“Vai
lavar-te na piscina de Siloé. O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (Jo 9,7)
Jesus afasta-se do Templo, fugindo dos fariseus que
queriam apedrejá-lo por ter dito: “Eu sou a luz do
mundo”.
Ele vai repetir isso e demonstrar com atos, dando ao cego a capacidade da visão.
Não conhecemos o nome deste cego. Só sabemos que é
um mendigo, cego de nascimento, que pede esmola nas proximidades do templo. Não
tem experiência da luz, não a conhece, nunca a viu. Estava sentado, não podia
caminhar nem orientar-se por si mesmo; estava imóvel, dependendo sempre dos
outros. Sua vida transcorria nas trevas. Nunca poderia conhecer uma vida digna.
Também não se menciona que era sábado, somente ao
longo da narração. Jesus não leva em conta essa circunstância à hora de fazer
bem ao ser humano. “Amassar barro” estava explicitamente proibido pela
interpretação farisaica da lei. O amassar o barro no sétimo dia, prolonga o
sexto dia da criação. Jesus termina a criação do ser humano.
Este ponto de partida é chave para
ressaltar o ponto de chegada. Jesus vai ativar no cego a mobilidade e a
independência, vai lhe devolver a capacidade de ver, vai reconstruí-lo como ser
humano por inteiro.
Jesus vê na cegueira uma ocasião
para a manifestação da atividade
salvífica de Deus. As obras que
Deus realiza consistem em libertar o ser humano de sua inatividade e dar-lhe
capacidade de ação.
"Enquanto é dia, temos de
realizar as obras d’Aquele que me enviou”.
Jesus não consulta ao cego se ele quer ficar
curado, pois sendo cego de nascimento não tem experiência da luz e não a pode
desejar de maneira especial.
Mas a cura não acontece
automaticamente; o cego tem de aceitar a luz
e optar livremente por ela. Jesus não lhe tira a liberdade: oferece-lhe a
oportunidade e coloca diante dos seus olhos o projeto de Deus sobre o
ser humano. A decisão de recuperar a vista fica nas mãos do cego: ela se
manifesta no fato de ir à piscina de Siloé por sua própria iniciativa, de caminhar livremente, de poder sair do seu lugar, lavar-se na piscina, para chegar a ser ele mesmo.
Jesus passa à ação. João usa dois
verbos para indicar a aplicação do barro nos olhos: aqui untar-ungir
tem relação com o título de Jesus “Messias” (que significa o “ungido”). Mais
adiante dirá simplesmente “aplicar”. Aquí está a chave de todo o relato. O cego
é agora um “ungido”, como Jesus. O homem ferido na sua cegueira foi
transformado pelo Espírito.
A reação das pessoas (parentes,
vizinhos...) sobre a identidade do cego manifesta a novidade que o Espírito
realiza. Sendo o mesmo, é outro. O que era cego revela a nova identidade de homem reconstruí-do pelo Espírito: ele agora é um
ungido, encontrou-se a si mesmo –
“Ele afirmava: sou eu”.
Ao “ungir-lhe os olhos”, Jesus
convida o cego a ser homem “acabado, reconstruído, restaurado...”
Os outros personagens continuam em sua
cegueira: fariseus, conterrâneos, pais… são símbolos da dificuldade de aceitar
a luz quando esta ilumina o que não se quer ver.
Há uma grande
diferença entre o cego sem iniciativa, sem liberdade no início da cena, e o
homem livre depois da cura. Daí que ele utilize as mesmas palavras que tantas
vezes, no evangelho de João, Jesus utili-zava para identificar-se: “Sou
eu”. Esta fórmula deixa transparecer a identidade do ser humano recriado
pelo Espírito; descobre a transformação que se realizou em sua pessoa e quer
que os outros a vejam.
O cego opta
livremente pela luz. Segue o caminho
apontado por Jesus e chega à meta indicada. Ele, que era só limitação, recupera sua autonomia
e deixa-se conduzir pelo Espírito.
O que de verdade importa é que este homem estava
limitado e carecia de toda liberdade antes de encontrar-se com Jesus. Agora
descobre o que significa ser pessoa e se sente completamente realizado. O
Espírito o capacitou para desatar todas as possibilidades de ser “humano”.
Sua vida, escondida e dependente, está agora cheia de
sentido. Perde o medo e começa a ser ele mesmo, não só em seu interior mas
diante dos outros. O horizonte que se abre para ele é indescritível. O mundo
mudou radicalmente; agora ele poderá dar orientação à própria
vida: não dependerá mais que os outros o conduzam.
O relato do evangelho de hoje é, sobretudo, uma
catequese cristológica. Como aparece Jesus
nele?
Em primeiro lugar, Jesus é Aquele que vê. Na cena do
“cego de nascença”, onde os discípulos viam um pecador, Jesus via um ser
humano. Seu olhar não se detinha na máscara, mas contemplava um rosto.
O “cego de nascença” encontra em Jesus um olhar
encorajador, compreensivo, que acredita nele e lhe inspira confiança; um olhar
que não se prende ao passado, mas abre uma nova possibilidade de vida. Um olhar
que ativa nele a capacidade de olhar a própria vida de maneira diferente.
Por isso, Jesus aparece também como Aquele
que faz ver. É o mestre que vai curando a cegueira e trazendo luz, para
que a pessoa, descobrindo sua identidade, possa dizer como o cego curado: “sou
eu”.
Neste tempo quaresmal, sentimos a urgência de uma
conversão do nosso olhar; é preciso purificar o olhar, cristificá-lo.
Olhar com os “olhos cristificados”. Não se trata de qualquer
olhar. É o olhar limpo, diáfano, gratuito e desinteressado, que destrava
e expande a vida do outro numa nova direção.
Contemplar o rosto do outro é
sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da
ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este
é o movimento da oração dos olhos.
O “olhar
contemplativo” está perdendo sua força criativa no contexto atual;
marcado pela ansiedade de querer “ver” tudo ao mesmo tempo, o ser humano já não
é mais capaz de fazer uma “pausa” para se deixar “ver” pela realidade. Sob o
peso do olhar do racionalismo, ele tudo examina, compara, esquadrinha, mede,
analisa, separa... mas nunca “exprime”. Daí o olhar reprimido, desviado,
insensível, frio, duro, ríspido...
Este é o pecado contra o olhar:
olhar supérfluo e imediatista, olhar esquizofrênico e narcisista, olhar
morno, sem vibração, sem brilho, sem assombro... Nesse olhar não há lugar para
a admiração, nem para a acolhida e a presença do outro. Só existe o olhar que
“fixa”, escraviza e aliena.
A arte de viver consiste,
fundamentalmente, em chegar a ver tudo com o coração. Só o coração descobre em
tudo as pegadas da Presença Última, que olha a partir do rosto de cada pessoa,
a partir da beleza de cada criatura. O amor nos abraça em tudo quanto vemos.
Texto bíblico: Jo 9,1-41
Na oração:
Ver mais além, a partir do coração, transcender, despertar nossa visão
interna e intuitiva das coisas e das pessoas, tirar as cataratas de nossos
olhos e abrir-nos a Deus.
- Abro os olhos para olhar de outra maneira.
- Quê há de fechamento, de intransigência, de superficialidade, de
rotina em minha vida, que não quero ver?
- Estou aberto a acolher a Luz da verdade, do amor, da justiça, da
gratuidade... venha de onde vier?
- Creio ter a posse da verdade ou me deixo questionar pelos outros?
- Em quê aspectos de minha vida pessoal e relacional preciso abrir-me à
luz do Evangelho?
- Sou luz que ajudo os outros a verem?