“Eu vi o
Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele” (João 1,32)
Estamos iniciando o tempo
litúrgico conhecido como “Tempo comum”;
tempo para um longo e demorado olhar centrado na pessoa de Jesus: “ver” e “mirar” nos conduzem a uma identificação com Ele. Do olhar
correspondido brota o seguimento.
Como seguidores (as) de
Jesus, também vivemos à luz do Espírito, não à sua sombra. Nossa existência, em
sintonia com o desejo de Deus para que vivamos em plenitude, é enriquecida
pelos nossos desejos profundos de nos constituir como seres livres, ou seja,
capacitados a tomar decisões oblativas, desafiados permanentemente por uma
pluralidade de opções abertas que se apresentam diante de nós. Não somos
escravos de nossa pobre condição mortal, mas o espaço livre por onde habita e
transita o Espírito.
No evangelho de hoje,
mais uma vez o autor do quarto Evangelho nos coloca diante da figura de João
Batista, relatando a experiência dele de encontro com Jesus e revelando-o como
aquele que “viu” e que “deu testemunho” de que Jesus é “o Filho de Deus”.
Daí sua insistência
no verbo “ver”. Não se trata de um
“ver” neutro, preso à exterioridade, mas de um olhar contemplativo, capaz de
distinguir e apontar quem de fato era o Messias.
João não recebeu o
encargo de divulgar uma ideia, uma doutrina... mas apontar uma pessoa.
Como nos evangelistas
sinóticos, também o evangelista João faz do batismo de Jesus o acontecimento fundante com o qual Ele inicia sua
atividade pública.
Quê é que João Batista
“viu”? Viu um homem cheio de Espírito.
Ou seja, Jesus é aquele que, habitado pelo Espírito, se deixa conduzir pelo mesmo
Espírito. Ele deixa “transparecer” esta presença do Espírito e só quem tem olhar
contemplativo é capaz de perceber quem O move.
Sempre quando temos a
sorte de encontrar uma pessoa “transparente” (não “perfeita”, mas humana),
torna-se mais fácil reconhecer, apreciar, “ver” o Mistério que a habita.
Mas não é suficiente
encontrar-nos com alguém assim; é preciso também desenvolver a própria
“capacidade de ver”, ou seja, um “saber olhar” que transcende para além das
aparências.
Os sábios sempre
foram conscientes de que existem diferentes níveis de realidade aos quais podemos
ter acesso através de diferentes órgãos de conhecimento. São Boaventura fala do
“olho
do espírito”, ou seja o “olho da contemplação”. Empobrecemo-nos quando
nos reduzimos ao “olho da carne” e também ao “olho da razão”. Precisamos ativar
o “olho do espírito” que nos capacita para “ver” a realidade em sua dimensão
mais profunda, para perceber o Mistério em tudo o que nos rodeia, nós
incluídos.
A qualidade humana, o
futuro da humanidade e do planeta depende de que saibamos “ver” deste modo.
Nossa
experiência do seguimento de Jesus brota da capacidade de fixar nosso olhar n’Ele. De fato, o olhar é o
primeiro sentido que nos faz sentir presentes junto ao outro. E, como João
Batista, ao fixar nosso olhar contemplativo na pessoa de Jesus, o que vemos é o
Espírito agindo n’Ele.
E
porque se deixa conduzir pelo Espírito, Jesus não suporta lugares fechados, rompe
com os “espaços sagrados”, com os esquemas fechados, com as estruturas
arcaicas... O Espírito é “movimento” e Jesus inicia um
movimento de vida e vida plena.
Jesus, cheio do
Espírito, sempre foi o homem das praças, ruas, caminhos e campos abertos... Não
foi o homem dos templos, dos lugares fechados, das cidades fortificadas, mas o
“homem em saída”, revelando sua mensagem e sua missão ao ar livre da vida.
A comunidade dos seus
seguidores, conduzida pelo Espírito, também não se deixa atrofiar pelos lugares
fechados, cheirando a incenso mofado, nem se prende a um ritualismo e
religiosidade alienante, mas é aquela que sai para os espaços públicos e ali
oferece o testemunho de Jesus.
Somos seguidores de
Jesus nos espaços amplos da vida, sem distinção de classes, sem hierarquias,
onde todos podem comunicar-se com todos, pois são habitados pelo mesmo
Espírito, a força da vida.
A
novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para
encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua
Presença.
Jesus,
na Galileia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas
poeirentas, nas margens...
Depois
do seu batismo e pleno do Espírito, Jesus se faz presente no lugar onde
se encontram aqueles que não tem “lugar”, os “deslocados”
e que são a razão de seu amor e do seu cuidado; faz-se solidário com os “sem
lugares” e os convida a caminhar para um novo lugar. Na Galileia, Jesus tem suas preferências e
escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles
que se fazem donos dos lugares.
O(a)
seguidor(a) de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é
aquele(a) que, movido(a) por uma radical compaixão, desce ao coração
da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que
é a Misericórdia.
Dessa forma, “habitado
pelo Espírito”, experimenta que a vida é forte e formosa e que vale a pena
acolhê-la e doá-la, como Jesus fez, sabendo que o tempo da opressão, da
enfermidade, da morte e da condenação... Não tem a última palavra.
Esse é o sentido da
expressão de João Batista aplicada a Jesus: “Aquele
que tira o pecado do mundo”.
Por isso, Jesus e os
primeiros cristãos não usaram modelos de poder centralizado para cultivar a
presença de Deus. Nem tiveram a preocupação de construir um novo templo, nem
formatar uma nova religião, mas descobriram o Templo de Deus na vida mesma, no diálogo e no encontro
das pessoas nos espaços públicos, onde sob o impulso do Espírito, buscaram
inspiração e sentido para suas existências.
E a vida não é um
templo já construído mas uma rede de conexões múltiplas que vão
se refazendo, recriando, de um modo incessante, por obra do Espírito de Cristo.
A presença provocativa e
o chamado exigente de Jesus colocam em questão nosso costume de nos refugiar no
mundo asséptico das doutrinas, na tranquilidade de uma vida ordenada e
legalista, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de
muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol,
dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza
de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo do Espírito que nos
faz romper nossos estreitos lugares e nos projeta em direção ao mundo dos
doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
Como Igreja, temos perdido
esse estilo itinerante que Jesus propõe. O caminhar dela é lento e pesado; não
acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para
deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas
que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o
Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho:
compromisso com a vida, sendo presença misericordiosa.
Texto
bíblico: João
1,29-34
Na oração: “Fazer caminho” com Jesus implica sair pelas estradas e encruzilhadas para escutar
o clamor das pessoas e para alargar a nossa vida no contato com elas. A
novidade do Espírito aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e
convencionais.
- Não
estaremos desperdiçando as nossas melhores forças para conservar atitudes
arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia?
- Não chegou, talvez, o momento de deixar de
repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós,
à novidade que o Espírito está criando?
Nenhum comentário:
Postar um comentário