domingo, 25 de setembro de 2016

Uma Porta e um Grande Abismo

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, ficava sentado no chão junto à porta do rico” (Lucas 16,20)

Lucas, mais uma vez, nos introduz no tema de ricos e pobres, que, com esta parábola, alcança sua altura suprema. Trata-se de uma parábola forte, clara e inquietante, que corta a respiração e nos situa, a partir de Deus, na dinâmica das relações humanas. Deixar que a parábola se explique, que nos fale, que nos questi-one e que ilumine nossa vida, essa é a melhor atitude diante dela.
Este é o tema: um rico petrificado e fechado em sua riqueza, se apodrece com ela, ou seja, perde sua humanidade e se condena, não porque tenha feito coisas más, senão porque estava cego e não viu o pobre à sua porta. É, sem dúvida, uma parábola de nossa sociedade. Aqui é claro: há um “Mundo Epulón” que esbanja os bens reais da vida, enquanto à porta da casa se amontoam pobres e mais pobres.
Nesta parábola Jesus desmascara e denuncia, com olhar penetrante, a realidade cruel da Galileia e também a de nosso mundo atual.

A primeira parte da narração fala de um “rico” poderoso. Suas “vestes finas e elegantes”, indica luxo e ostentação. Só pensa em banquetes suntuosos todos os dias.
O rico não tem nome, pois não tem identidade humana. Não é ninguém. “Era tão pobre que só tinha riqueza”. Sua vida, vazia de amor solidário, é um fracasso.
Muito perto, junto à porta de sua mansão, está estendido um “mendigo”. Não está coberto de linho e púrpura, mas de feridas repugnantes. Não sabe o que é um festim; não lhe dão nem do que cai da mesa do rico para saciar sua fome. Só alguns cachorros de rua se aproximam para lamber suas feridas. Não tem ninguém. Não possui nada. Só um nome cheio de promessas: “Lázaro”, que significa “Deus é ajuda”.
O pobre está fora da porta, rodeado pelos cachorros da rua, mas só a uns passos da mesa do rico, que desperdiça comida em sua casa. O rico está dentro de casa, poucos metros os separam, mas há um abismo entre eles; não há palavras, não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Estão muito próximos, só os separa uma frágil porta, mas o rico não “vê” o pobre, não lhe interessa sua pobreza, não o olha, não o escuta...

A cena é insuportável. O rico tem tudo, sente-se seguro, não parece necessitar de ninguém. Vive fechado em si mesmo. Não vê o pobre que morre de fome junto à sua porta.
Lázaro, por sua parte, vive em extrema necessidade, faminto, enfermo, excluído, ignorado por aqueles que lhe podiam ajudar. Sua única esperança é Deus.
Jesus não pronuncia diretamente nenhuma palavra de condenação. Seu olhar penetrante está desmascarando a cruel injustiça daquela sociedade. As classes mais poderosas e os estratos mais oprimidos parecem pertencer à mesma sociedade, mas estão separados por uma barreira invisível: essa porta que o rico não atravessa nunca para aproximar-se de Lázaro. Deus, que é Pai de todos, não pode aceitar essa cruel separação entre seus filhos.

A segunda parte da narração nos situa diante de uma grande mudança de perspectiva. A reviravolta é total. Ambos morrem, a morte os iguala, de maneira que o tema das riquezas passa a um segundo plano. Só permanecem eles, suas vidas..., perduráveis, de formas diferentes.
O pobre se salva porque foi simplesmente pobre. Salva-se pela misericórdia de Deus, ou seja, por graça (porque Deus é Deus). Por isso, a salvação é dom, pura graça.
O rico se condena por si mesmo, porque ele escolheu, porque não foi capaz de ver/descobrir/ajudar os pobres que estavam ao seu lado. Nessa linha, a condenação é a rejeição da graça da vida: não ter descoberto o outro.
A conclusão que se deduz da parábola não é que os pobres do mundo devem manter-se como estão, já que esperam a glória futura depois da morte, mas que se abra a porta que separa o pobre do rico, de forma que possam comunicar-se.
Este relato não fala da condenação e salvação futura, mas da nova forma de vida compartilhada que deve se estabelecer neste mundo. O relato não quer que o pobre e o rico continuem vivendo simplesmente em mundos que se encontram hermeticamente selados, afastados um de outro, senão que se encontrem, que o rico abra a porta e ofereça ao pobre um lugar em sua mesa.
Durante o tempo de sua vida, o pobre mendigo e o rico fechado em seu “banquete” egoísta e em seu luxo não se relacionavam entre si, mas poderiam tê-lo feito, pois Lázaro jazia diante da porta da casa do rico: uma porta evoca a possibilidade de comunicação.
Depois da morte não tem como mudar as coisas. O tempo de mudança é este, esta vida.
Aquela barreira invisível na terra se converte agora em um abismo intransponível. O objetivo da parábola não é descrever o céu nem o inferno, mas condenar a indiferença dos ricos e poderosos.

Deus é o primeiro que deseja que vivamos bem, que sentemos à mesa e tenhamos o que comer, que nos vistamos com dignidade. Deus se alegra quando vê a mesa cheia de alimentos e todas as cadeiras ocupadas, todos com bom apetite, vivendo a partilha com o coração pleno de alegria e fraternidade.
Onde está então o problema? Está numa porta.  Cresce cada vez mais o número de portas que nos impedem ver, portas que nos distanciam da fome, do sofrimento, da pobreza, da desnudez que há do outro lado. A grande tragédia está no fato de levantar muros, cercas de proteção, portões eletrônicos, que nos impedem ver os rostos dos outros, que nos isolam dos outros, que nos fecham sobre nós mesmos como se ninguém mais existisse.
Diz o ditado que “comer demasiado mel nos faz perder o sabor”; o demasiado bem-estar nos impede ver o mal-estar dos outros; o fato de não carecer de nada, nos faz insensíveis diante daqueles que carecem de tudo; a abundância pode ser um obstáculo para sensibilizar-nos frente à carência dos demais.
Ao ler o Evangelho, nos damos conta de que Jesus, que não tinha nada, era muito sensível àqueles que careciam de tudo; em sua vida não havia nada que lhe impedisse ver a pobreza e o sofrimento dos outros. Isso despertava n’Ele a compaixão, o “sentir-com” os outros. O que os olhos não veem não chega aos nossos sentimentos. O que os olhos não veem não chega ao nosso coração.

Claro que não basta ver. É preciso que o coração seja impactado. É preciso que a realidade nos doa no coração. É preciso que a realidade nos comova.
Não basta saber que existem os pobres; não bastam as estatísticas sobre a pobreza no mundo. É preciso dar um rosto ao enfermo, ao desnudo, ao faminto. A dor sem rosto não nos diz nada. A nudez sem rosto não nos afeta; a fome sem rosto não nos impacta.
É preciso escancarar as portas dos nossos preconceitos, da nossa insensibilidade, dos nossos pré-juízos..., portas que nos fazem acostumar a ver famintos, necessitados, explorados...
Tudo isso pode nos tornar insensíveis. O que Jesus lamenta é nossa insensibilidade e nossa indiferença frente àqueles que passam penúria. Esta é sua condenação radical: uma barreira de indiferença, cegueira e crueldade separa o mundo dos ricos do mundo dos famintos. A riqueza pode ser um grande estorvo no coração; a púrpura e o linho podem ser um escândalo em um mundo de pobreza; os grandes banquetes podem ser um insulto em um mundo onde impera a fome.

Texto bíblicoLucas 16,19-31

Na oração:
- Quê impactos tem no seu coração o mundo da exclusão e da violência?

- Quê atitudes você assume para diminuir a insultante riqueza de uns poucos e a escandalosa miséria de muitos?

sábado, 17 de setembro de 2016

Operação Futuro

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 25º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

“Os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lucas 16,8)

Um dos piores vírus que ameaça e mina as forças de nossas comunidades cristãs é a falta de iniciativas, é a atitude de acomodar-se com o de sempre, seguir os caminhos trilhados da rotina e da repetição. Rebanho “dócil”, sujeito a manipulações legalistas, sem maiores pretensões e sem criatividade no anúncio da Boa Nova do Evangelho.
Enquanto “dormimos” em nossa apatia e acomodação, outros (a partir de seus interesses próprios ou de grupos) aguçam sua inteligência e afinam novas estratégias, saem pelos caminhos e fazem ouvir sua voz.
Os “filhos deste mundo” tem mais “iniciativas” e ideias que os chamados filhos da luz. Até parece que a luz nos faz adormecer e nos acomodamos em um modo “normótico” de viver.
A parábola do evangelho deste domingo não pretende se referir em absoluto à corrupção e ao roubo, mas ela está centrada numa questão radical: “Os filhos das trevas são mais astutos que os filhos da luz”.
Em cada um de nós convivem a luz e as trevas. A parábola parece conter uma profunda ironia, ao confrontar-nos conosco mesmos e perguntar-nos de que maneira procedemos nos assuntos que concernem às “trevas” (ego) e naqueles que potenciariam a luz que somos.
A experiência nos diz que, quando é nosso ego que toma iniciativa, ele ativa meios, recursos, táticas, estratagemas..., com a finalidade de sobressair vaidoso e assegurar sua sobrevivência (como faz o empregado da parábola, que representa, justamente, o nosso próprio ego e seu mundo de interesses).
O que ocorre com a luz que é a nossa verdadeira identidade? Quê fazemos com o melhor de nós mesmos? Se empregássemos tanta motivação e tantos meios para que nossa verdadeira identidade se manifestasse e deixasse sua marca, nosso mundo seria bem diferente.

Jesus, na parábola, não louva o mal administrador por sua péssima administração e roubos. O que Jesus quer destacar é sua “inteligência” e “esperteza” para garantir seu futuro, a astúcia com que atua para atrair a benevolência dos credores de seu amo.
E aqui começa a “operação futuro” daquele administrador. Astuto e vivo, ele, antes de apresentar o balanço final, consegue fazer reduções nas dívidas dos credores. Objetivo? Fazer “amigos” para que quando fosse despedido do trabalho pudesse ser socorrido por eles em momentos de penúria.
Estamos falando do astuto a serviço de si mesmo (quer que os devedores o ajudem...; está comprando a solidariedade e a colaboração deles). Certamente, este administrador inicia uma subversão, mas o faz em favor de si mesmo, dentro do grande “clube” daqueles que se aproveitam roubando dinheiro. Não lhe interessam os bens do amo (nem a vida dos pobres), mas sua própria subsistência, em um mundo de ladrões que se sustentam a si mesmos, roubando do grande capital para benefício próprio.
Assim como alguns usam sua inteligência e sua astúcia para causar morte (tráfico de drogas e construção de armas, máfias de tráfico de pessoas e de prostituição, corrupção na administração pública...), porque não podemos ativá-la para buscar caminhos de justiça, criar pontes de reconciliação, despoluir o ambiente hediondo que nos envolve?

Subitamente, o relato de hoje dá um salto e nos leva do administrador injusto (que atua astutamente no interesse próprio) à exigência e possibilidade de converter o “dinheiro da iniquidade” (dinheiro que mata) em fonte de justiça e de amizade.
O dinheiro, enquanto mediação necessária, entra na categoria dos meios humanos a serviço de um fim.
Trata-se de fazer com que ele seja transparente, na linha da fraternidade e do Reino, ou seja, converter o dinheiro naquilo que deve ser: um meio de “relação transparente entre pessoas”, um meio de justiça e solidariedade amorosa, para que o ser humano atinja a meta de sua vida.

O dinheiro, portanto, aparece como algo funcional, mas facilmente pode se converter em senhor e dono da vida. Por sua própria natureza, ele confere uma segurança e uma autossuficiência que nenhum outro objeto pode fornecer.
Jesus tinha consciência dos riscos e perigos de uma vida enredada no dinheiro. Ele sabia da força de sedução que a riqueza exerce e da capacidade que ela tem de obscurecer a percepção correta da realidade. Jesus expressa isso dizendo: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Com estas palavras, Ele não só  desvela nossa tendência a divinizar o dinheiro, mas volta a insistir no dilema anterior: na prática, o que nos interessa mais, o dinheiro ou Deus? Quem, na verdade, ocupa o centro de nossa vida?


Entre as coisas que podem desordenar a pessoa, o dinheiro, sem dúvida, tem um poder de sedução todo especial. Ele revela o risco de gerar uma dinâmica de ganância, sem freio, que a pessoa não controla, endurecendo seu coração e conduzindo-a à presunção de autossuficiência, de se bastar a si mesma e de não precisar de mais ninguém.
Além disso, existem outras manifestações ligadas à ânsia de fazer do dinheiro o centro da vida: o desejo de prestígio, a ilusão de onipotência, de poder, de mando, o anseio de títulos, da aparência, de ciência, de status. E a vida não se ordena enquanto o fator dinheiro, desestabilizador por seu caráter “pegajoso”, não se situa no seu devido lugar.
De fato, o dinheiro, ao se tornar um fim em si mesmo, longe de pacificar, gera sempre novos temores, ansiedades e inseguranças: medo de perder o que foi conquistado, medo de que um rival consiga um bem cobiçado, ou ainda de ser superado na escala social, tornando vãos todos os esforços de uma vida...
Outro sentimento típico do avarento é a tristeza, ligada à frustração de não poder nunca encontrar algo que o satisfaça, fazendo-o sentir-se cada vez mais indigente. Torna-se tão pobre que só tem dinheiro.

Aquele que põe seu tesouro no dinheiro, põe ali o seu coração, seu interesse, sua força e sua afetividade. O dinheiro tem um tal poder de absorção, que ele se torna rival de Deus.
Quando uma pessoa faz do dinheiro a orientação fundamental de sua vida, quando o dinheiro é seu único ponto de apoio na vida e sua única meta, então a relação com o Deus e com os outro se dilui.
A razão é bem simples. Porque o coração do indivíduo afeiçoado ao dinheiro se esfria e se petrifica, distanciando-se das pessoas. Tende a buscar somente seu próprio interesse, não pensa no sofrimento, não vê as necessidades nem as injustiças que os outros sofrem. O coração enredado pelo dinheiro corre o risco de matar o espírito solidário, pois já não há mais lugar para o amor desinteressado, nem para a fraternidade. Só vive para acumular coisas e para fazer dos outros seus dependentes. E, por isso mesmo, nele não há lugar para o Deus que é Pai de todos. Assim, não pode acolher a Aquele que é Amor, Gratuidade.
A verdadeira riqueza, que de fato nos pertence, é aquela que recebemos ao partilhar o melhor que há em nós mesmos, tornando-nos assim participantes da generosidade abundante de Deus.

Texto bíblicoLucas 16,1-13

Na oração: A quem sirvo? Quem é o “senhor” que comanda o meu coração?
Deus pôs em minhas mãos tantos dons, tantas possibilidades... E quê estou eu fazendo com tanta “riqueza” que o Senhor me confiou?

Sou um administrador fiel e solícito, ou vou desperdiçando pela vida os “bens” (talentos e oportunidades) que o Senhor me deu e continua me cumulando?

domingo, 4 de setembro de 2016

Misericórdia humanizadora

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver”… (Lucas15,24)

Revelar o rosto do Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade. O “princípio misericórdia”, portanto, é o núcleo do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”.
Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nossa vida e nos abre em direção a um amplo horizonte de sentido.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir  nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria interioridade. A força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova ainda não ativada.
A misericórdia nos configura à imagem de Deus; é onde nós somos mais semelhantes a Ele.
A misericórdia, portanto,  é não só a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.

No evangelho deste domingo encontramos, mais uma vez, o eterno conflito entre “Misericórdia” e “Lei”, entre “perfeccionismo” e “compaixão”. “Legalismo” e “perfeccionismo” andam sempre juntos; onde eles imperam, ali não há possibilidade de futuro, nem de vida nova; quem tem a lei na mão torna-se um juiz implacável, insensível, duro, frio… “Onde há misericórdia, ali está o Espírito de Deus; onde há lei, ali estão seus ministros” (papa Francisco).
Na parábola de hoje, Jesus “pinta” o rosto misericordioso do Pai; ele descreve a tipologia de dois comportamentos em relação ao fracasso do “filho mais moço”.
Em 1º lugar, o coração terno do Pai manifesta-se aberto; seu modo de proceder se exprime nessas cinco ações carregadas de sentimentos, afeto e ternura: ver, comover-se, correr, abraçar e beijar.
Em vez de julgar o filho e fazer com que ele se afunde em culpa, o pai o acolhe plenamente. O perdão devolve ao filho mais moço a sua dignidade de homem livre, a auto-estima e o sentido de pertença à família. O pai não aproveita a ocasião para praticar a pedagogia da culpa ou para tornar o filho dependente do seu perdão. O encontro não termina com o perdão. Há uma grande festa.

A festa sela o perdão no coração de quem rompeu a aliança.
Portanto, a festa não é o prêmio do erro; ela é a expressão tangível, clara, do perdão realizado. O perdão é total: oferece uma inédita possibilidade de vida para o coração de quem viveu a fundo a experiência do próprio fracasso.
O pai revela-se exagerado no perdão diante de quem errou. Ele tem tolerância e paciência com relação ao processo que se abre interiormente no filho que se arrependeu. O processo permanece aberto de maneira que o filho possa amadurecer e o erro possa trazer um ensinamento; em outras palavras, possa dar lugar a uma experiência construtiva para ele. O re-orientamento que o pai provoca no filho mais jovem, com o seu perdão e a festa, é tão forte, que o jovem será capaz de tirar proveito da sua experiência negativa.
A festa vem revelar que ele é amado incondicionalmente.

Ao contrário do pai, o filho mais velho revela um esquema mental fechado ao fracasso do seu irmão por estar ocupado com um “conteúdo perfeccionista”.
Por ocasião do encontro entre o filho mais moço e o pai, o “filho mais velho estava no campo”; isto já indica uma característica da sua personalidade: o dever antes de mais nada.
Ele havia perdido toda e qualquer orientação para consigo mesmo a fim de perseguir a perfeição.
Queria ser irrepreensível aos olhos do pai sem jamais desobedecer a uma única ordem sua.
Ao ouvir “músicas e danças”, perguntou a um servo a razão daquilo; este fato sublinha o quanto estava afastado dos acontecimentos familiares. Enche-se de cólera e não quer entrar para a festa.
Mesmo no plano afectivo, ele se encontra completamente longe da família. Ele mostra em suas palavras a sua total solidão. Talvez fosse um homem sem amigos.
Tinha uma relação com o mundo das coisas, dos deveres e dos princípios, não das pessoas.


O perfeccionista é um ser muito frio. Vive com a chama do sentimento no nível “baixo”.
O sentimento torna as pessoas mais humanas, ou seja, mais vulneráveis, mais frágeis.
A perfeição tinha deixado o filho mais velho vazio de sentimentos. Seu comportamento é de incompreen-são e de julgamento. Ele não se comove nem diante do destino do irmão nem tampouco diante da revela-ção da ternura paterna. A perfeição o deixou desumano.
Seguiu o “evangelho da perfeição”, não o da misericórdia.
O pai precisou sair da festa para procurar convencê-lo a entrar. Trata-se de uma alegria que o filho mais velho não é capaz de compartilhar.
Aos esforços paternos para fazer com que participasse daquele evento, ele responde não com a compaixão, mas com o argumento da obediência às obrigações e às proibições: “Já faz tantos anos que eu te sirvo sem ter jamais desobedecido às tuas ordens”. Nenhuma referência à vida de família, ao afeto, às relações...
O filho mais novo teve a coragem de pedir a sua parte, de arriscar, de viver a própria vida, de fazer as suas opções. Ele honrou a vida. O filho mais velho honrou os princípios, as normas... Nem passou por sua cabeça pedir a parte que lhe cabia. Se não consegue perdoar ao irmão é porque sabe que não é capaz de correr riscos. É um ser “autoblindado”.

A experiência de misericórdia gera em nós uma atitude correspondente de misericórdia. O Deus miseri-cordioso cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia (“bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”). É exatamente este o maior sinal da sua Misericórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de Sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.
A misericórdia presente em nós é modelada e alimentada pela Misericórdia divina.
Como estilo-de-vida cristã a misericórdia nos descentra de nós mesmos e nos faz descer em direção ao outro, numa atitude de pura gratuidade. A vivência da misericórdia nos torna  realmente livres, e isso nos proporciona profunda alegria interior.
A misericórdia é humilde e não humilha, porque é discreta e silenciosa. Ser presença misericordiosa não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça seus erros; ela nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do próximo, de abrir-lhe novamente a esperança...
"Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, não como justos”.

Texto bíblico:   Lucas 15,1-32   

Na oração: Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor misericordioso em favor dos outros.

- Recordar experiências onde você  se sentiu cha-mado a exercer o “ofício da misericórdia”.  

As ridículas torres e guerras de nossa vida

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

“...qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo”. (Lucas 14,33)

Trata-se de uma atitude, uma postura, uma entrega.
E a palavra é “tudo”. O discípulo pela metade não pode ser discípulo de Jesus. O seguimento pede  sinceridade na vontade e verdade no coração. Jesus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida. Não servem as entregas pela metade.  
A entrega parcial não é entrega. O apego a algo ou alguém, que divide a afeição com Deus, anula o resto da entrega e torna impossível que nossa relação com Ele cresça, se desenvolva e plenifique nossa vida.
Deus não pode compartilhar nosso coração com ninguém. Ele é o Senhor absoluto de nossa vida. A entrega total ativa todos os nossos recursos, desperta nossas faculdades e incendeia nossa fé.
A fé, se é verdadeira, lança-se por inteira, sem dúvidas e sem reservas.
Esta é a atitude genuína e verdadeira diante da vida. Esta determinação é a que abre caminho, nos faz avançar em direção à meta do Reino.

Na experiência humana ressoa, desde sempre, a marca ou o chamado a transcender-se, a ir além de si mesmo. O seguimento de Jesus pressupõe a pessoa capaz de sair de si mesma, de descentrar-se. Deixar ressoar a voz do chamado no próprio interior implica um investimento de toda a pessoa.
Estamos inseridos numa cultura onde as entregas são vividas pela metade, as opções são de fôlego curto e os projetos não tem consistência.
Vivemos a chamada “cultura líquida” onde tudo parece que nos escapa das mãos. Não há solidez nas decisões ou as decisões são apressadas e superficiais, porque o horizonte está obscuro.

As duas breves parábolas, no evangelho de hoje, constituem um toque de realismo: “calcula tuas forças porque só poderás chegar à meta se te entregares com determinação”.
Jesus não impõe nenhuma condição, não quer gente que busque carreiras ilustres (para construir torres, para ganhar guerras...). Quer pessoas que sejam capazes de descentrar-se, de renunciar ao próprio ego, de desapegar-se daquilo que as atrofia e as limita, para investir numa proposta de vida que dá direção e sentido à sua própria existência.
Este é o lema de Jesus: renunciar a tudo para partilhar tudo.
O mundo está cheio de homens e mulheres que querem construir suas próprias torres, à custa dos outros, para isolar-se nelas; e de outros que querem jogá-las abaixo para poder construir as suas torres. Pura competição de torres (competição de egos). O mundo está cheios de “reis”, de “egos inflados” que querem ganhar guerras, que compactuam com o poder, a vaidade, a riqueza... Quantas guerras são realizadas em nome da religião, pensando servir a Deus! Quanto “poder religioso” que se impõe às consciências das pessoas, alimentando sentimentos de culpa e desumanizando-as! Quanto investimento pesado em “guerras internas” que desgastam e afundam num combate estéril.

Mas Jesus não precisa de torres, não tem que ganhar nenhuma guerra. Nós também não. Mas queremos segui-lo. Pois bem, para estar com Ele temos de “renunciar a tudo”, para poder “ter tudo”, de outra maneira, em gratuidade. Sobram-nos muitas coisas, muitos planos; sobra-nos o desejo de segurança e de viver à custa dos outros. Por isso nos falta comunhão, gratuidade e vida fraterna.
Somos construtores de torres desde o grande relato de Babel. Cada um faz sua torre, todos juntos queremos fazer a grande torre da cultura mundial capitalista e neo-liberal, que é contada e medida com muito dinheiro e poder
Mas, temos “dinheiro” suficiente para fazer uma torre onde nos resguardamos e nos protegemos para sempre? A terra está cheia de ruinas de torres caídas. Entre elas caminhamos, sem nos dar conta de que logo também nossa torre cairá. Investimos em torres e guerras ridículas com a ilusão de alimentar nosso ego: auto-imagem, vaidade, aparência... Tudo ilusão, a queda será retumbante.
Todas as torres cairão; não temos refúgio e segurança definitiva neste mundo. No “descampado” estamos, junto com os outros, vivendo a comunhão em gratuidade; assim viveremos, assim morreremos, assim esperamos ressuscitar.

A perseverança tenaz para conservar o rumo nos desertos da vida é necessária para chegar ao oásis final.
Este é o caminho do Seguimento. Jesus quer seguidores com liberdade, com decisão e responsabilidade.
Para isso é preciso “renunciar a tudo” para ser pessoas, em amor e partilha. “Renunciar a tudo” para que todos possam ter, para que todos possam compartilhar fraternalmente tudo.

O que significa “renunciar a tudo” e desapegar-se dos seres mais queridos? Significa sair da visão egocentrada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma: “Deixa de crer que és o eu separado (e fechado na torre) e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; não vejas nem sequer a tua família a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-os a partir de tua verdadeira identidade, onde todos sois um, mas sem apego nem comparações”.
Não é a renúncia o que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.
A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando se faz por algo melhor. O apego às coisas ou às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”. Na vida cristã, o seguimento é questão de sedução, de paixão, de atração, de coração...; isso significa que Jesus Cristo é de fato o “amor primeiro”, aquele que antecede a qualquer outro, de maneira especial o amor aos familiares. Daí nasce a harmonia interior. Quando o seguimento torna-se o eixo central, todos os elementos de nossa vida, todas as afeições, todas as potencialidades do espírito, encontram-se em “seus lugares”, estabelecendo uma deliciosa experiência de paz. Os afetos “orientados” e “ordenados” à pessoa de Jesus, cria um novo referencial, um novo centro afetivo.
            “É necessário ter um importante objeto de amor para abandonar antigos amores”.
Em resumo, trata-se de ordenar o amor, para que amemos com um amor operativo, oblativo...


Portanto, para que haja “modificação afetiva” é necessário investir numa relação personalizante, alicerçada na pessoa de Jesus Cristo e nos valores do Reino. Só há transformação efetiva se houver impacto no mundo afetivo. Para mudar afetivamente é necessário “alguém” que possa despertar em nós um impacto afetivo. Existem dinamismos interiores que podem atrofiar ou expandir o seguimento de Jesus.
Se seguimos Jesus que nos seduz por sua verdade, sua personalidade, sua ternura, suas atitudes perante as pessoas e instituições, sua liberdade, sua presença compassiva, sua coerência na verdade e no amor..., seremos “afetivamente impactados”. E a afetividade ordenada nos fará livres; a liberdade, por sua vez, possibilitará uma abertura a um horizonte de sentido; será movimento para..., nos fará ir além de nós mesmos.
Nesse sentido, no processo de seguimento, a pessoa inteira é mobilizada: corpo, mente, afetividade, coração, sensibilidade...

Texto bíblico:  Lucas 14,25-33

Na oração: Escolhe e decide. Escolhe teu Senhor e serve-o fielmente.
                     Não duvides, não adies, não esperes. Desterra as meias-medidas de tua vida e decide-te fazer as coisas com plenitude, sobretudo as coisas de Deus. É isto que Ele espera.
- quais são seus “amores” (afetos desordenados que exigem alto investimento) que fragilizam e atrofiam o seguimento de Jesus?