quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Jesus não era de “sangue azul”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, que encerra o Ano Litúrgico.

“Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37) 

Com a festa de “Cristo Rei” encerramos mais um ano litúrgico. O Evangelho indicado para esta festa nos introduz numa cena muito constrangedora da vida de Jesus. O contexto no qual ela se desenvolve é o processo de julgamento político ao qual Ele foi submetido, denunciado pelas autoridades judaicas. Como podemos observar, não estamos diante de um diálogo distendido entre dois iguais; é um procurador romano frente a um acusado que deve responder e dar razão daquilo que o levou a esta situação.

Condição mais inapropriada para Jesus se declarar “rei”.

Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...

Jesus, rei atípico. Qualquer conotação que o título tenha com o poder, deturpa a mensagem evangélica. Uma coroa de ouro na cabeça e um cetro de brilhantes nas mãos é uma ofensa ao mesmo Jesus.

Jesus não se apoia na força das armas, nem se move no interior do sistema que se sustenta na injustiça e na mentira. Sua realeza tem um fundamento completamente diferente; ela provém do amor de Deus ao mundo. Ele reina entregando sua vida.  Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.

Jesus reina perdoando, amando, a partir de uma situação de humilhação e impotência. João nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até a morte. Um rei crucificado é uma contradição. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de verdade, de solidariedade e de misericórdia.

Jesus é rei desta forma e não da forma triunfalista como querem muitos cristãos “fundamentalistas”.

Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos das nações.

Um rei que lava os pés dos seus, um rei despojado de poder, de riqueza e que não pode se defender.

Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Não tem exército, nem armas. Até os seus o abandonaram. Mísero rei!

Jesus não quis fazer-se rei militar, pois a violência pertence ao nível dos poderes de um mundo onde a verdade se encontra pervertida pela mentira dos poderosos. Jesus quis ser Rei, mas de maneira que todos pudessem ser reis, “testemunhas da verdade”. Assim respondeu a Pilatos dizendo-lhe que “seu reino não era deste mundo”. Pilatos só conhecia um tipo de reino, aquele que se fundamentava na espada do império, que se apoiava e se defendia com as armas, de maneira que a verdade como tal tornou-se secundária.

Meu Reino está em “ser testemunho da verdade”. Como Pilatos vai entender isso se está acostumado a fazer da verdade o que a ele lhe interessa e lhe convém?

Esta é a proposta: ser Rei sem tomar o poder, sem exercê-lo com a força das armas, nem por algum tipo de justiça legal, nem por dinheiro... Esta é a tarefa da nova humanidade, a promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade, da fraternidade e não violência... para que todos sejam “reis”, no sentido radical da palavra.

Portanto, a festa de “Cristo Rei” revela-se como uma boa oportunidade para o encontro com a nossa verdade: n’Ele, todos somos “reis”, ou seja, quando nos identificamos com Ele, também somos reis. Reis servidores devemos ser todos.

Comprometemo-nos com o “Reinado de Deus” porque, como reis, estamos todos a serviço de todos.

“Sou rei..., e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. É neste mundo que Jesus quer exercer sua realeza, mas de uma forma surpreendente: veio ser “testemunha da verdade”, introduzindo o amor e a justiça de Deus na história humana.

Esta verdade que Jesus deixa transparecer não é uma doutrina teórica. É um chamado que pode transformar a vida das pessoas. Ele já tinha afirmado antes: “Se permanecerdes na minha palavra... conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Ser fiéis ao Evangelho de Jesus é uma experiência única pois nos leva a conhecer uma verdade libertadora, capaz de tornar nossa vida mais humana.

Diante de Pilatos, mais uma vez aparece a palavra “verdade” (“aletheia”), que Jesus considera como a razão de seu ser e de sua missão. A verdade da qual Ele fala não é um argumento carregado de afirmações fechadas para ter razão. Não se trata de possuir a verdade ou estar na verdade, de ter direitos sobre os outros, de se impor sobre alguém. Longe disso.

Jesus fala da “verdade” no sentido de uma atitude diante da vida, de uma opção de vida: viver na verdade é buscar a verdadeira essência que somos, nossa possibilidade de plenitude, nossas raízes mais profundas; é conectar-nos com esse Reino que traz à luz a bondade humana como imagem da bondade divina.

Só tomamos consciência de nossa realeza quando acessamos à nossa verdade mais profunda. Enquanto isso não ocorra, viveremos como mendigos, buscando nos apropriar e nos identificar com tudo aquilo que possa nos conferir certa sensação de identidade. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto “mendigo” se descobre “rei”.

Verdade é a realidade existente; ela salienta a dignidade de cada pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.

A verdade des-cobre o que está encoberto, des-vela o que está velado, des-oculta o que está escondido, des-lumbra o que está ensombrado, des-mascara o que está camuflado, des-emudece o que está calado, des-cativa o que está algemado.

A verdade retira o mundo (interno e externo) da escuridão. Quando a verdade habita a consciência, o ser humano ilumina-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante.

Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada.

Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade”. Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, transparente, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade.

É significativo que os antigos gregos entendessem a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos, a nossa essência. Importa “des-velar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.

Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egóica, tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem des-velou e viu o “segredo” último de sua vida. É aqui que se revela como Rei.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 18,33-37

Na oração:

Revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida.

- A verdade que somos nunca pode ser algo que temos e possamos transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.

- Sua vida está centrada no des-velamento de sua verdade, de sua essência? Ou ela se deixa determinar pela cultura da aparência, da vaidade, da mentira...?

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Brotos que alimentam a esperança

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 33º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Quando os ramos da figueira ficam tenros e as folhas brotam, sabeis que a primavera está próxima”

 

A natureza se renova continuamente através dos brotos; muitas vezes nos fixamos na velha árvore e temos a sensação de que ela está morta. Mas, de repente, das profundezas das raízes, uma nova seiva vai emergindo, fazendo aparecer novos brotos que apontam para os frutos vindouros.

O que a vida cristã precisa claramente, neste momento de desânimo e de abatimento, não é resignação diante do contexto no qual vivemos, mas de vida e vitalidade. Precisamos alimentar a esperança para empreender novos caminhos com entusiasmo renovado e sem temor.

O seguimento de Jesus, mais que prudência, conformidade ou conservadorismo que pretende preservar as coisas do passado em lugar de sua sabedoria, requer audácia, precisa de membros adultos que resistam ao envelhecimento da vida, e jovens que resistam ao envelhecimento da alma.

Muitas vezes, onde deveria reinar a ousadia, reina a resignação e a passividade, onde deveria reinar a criatividade, reina a repetição doentia, onde deveria reinar a “narrativa” da vida de Jesus, reina a doutrina pesada e o legalismo estéril. A tentação consiste em fazer da sobrevivência a nossa máxima aspiração, em vez de vivermos a vida plenamente, com toda profundidade e o entusiasmo que nossa vocação cristã exige.

A capacidade de arriscar situa a vida cristã deste tempo perante o desafio de confiar ao máximo em Deus. A capacidade de arriscar é a virtude que fará a ponte entre a vida cristã atual e a que está para vir.

Pertencer a uma antiga instituição não é desculpa para não ter ideias jovens e não fazer coisas novas.

Ao contrário, é precisamente a idade da instituição que exige isso. É a virtude de viver plenamente até a morte que se exige da vida cristã atual, se quisermos que os brotos voltem a surgir.

É a virtude do risco que precisamos alimentar de novo: risco nos mais velhos que acreditam que os grandes riscos de sua vida já tinham passado; e risco nos novos membros que pensam que uma vida fundada no seguimento de Jesus e no serviço é uma vida sem nenhum risco.

A revitalização do seguimento de Jesus não consiste em redefinir suas formas, sua doutrina, seus dogmas, seus ritos... senão em reavivar seu significado, seu direito a continuar tendo sentido diante das novas inquietudes e das realidades atuais.

O mundo que está mudando ao nosso redor provoca mudanças em nós também. O importante é que cheguemos a “ser” o que devemos ser num mundo que nos arrasta com ele.

         “Eu não teria gostado de viver sem haver inquietado alguém alguma vez” (Catherine de H. Doherty)

A questão é se a vida cristã provoca e inquieta o suficiente em nosso atual momento. A verdadeira questão é esta: na velha árvore do cristianismo, ainda surgem brotos para suscitar a energia necessária a fim de tornar mais autêntico o nosso compromisso com o Reino?

Estamos num tempo de mudança, mas também emocionante e santo, para a vida cristã.

Há uma poderosa seiva presente por debaixo das raízes.  O único que temos a fazer é não impedir o seu deslocamento em direção aos ramos, para que novos brotos de vida possam aparecer. A impressão que temos é que a vida cristã parece ter muito mais “galhos secos e sem vida” do que folhagem e frutos novos.

Por isso, de tempos em tempos precisamos passar por “abalos sísmicos”, tanto no nível interno de nossas vidas quanto na instituição eclesial, para derrubar o que está seco e caduco e deixar emergir o broto vital, que alimenta nossa esperança e abre um horizonte de sentido.

O “sol” do ego inflado precisa se esvaziar no escurecimento; a “lua” da vaidade precisa deixar de brilhar para si mesma; as “estrelas” do auto-brilho precisam cair... É do meio do “cosmos”, interno e institucional, renascido e reordenado, que poderá emergir o “Filho do Homem”.

Sabemos que o ciclone tem uma violência enorme e gira velozmente, mas seu centro é calmo, imóvel.

É preciso retornar ao centro do ciclone onde está o “Filho do Homem”, onde está o coração, onde está o Cordeiro. Esta vida nova está no centro da situação que vivemos, no centro desse mundo que é o nosso.

É a partir do interior que algo pode mudar.

O evangelho deste domingo tem profundas ressonâncias apocalípticas, ou seja, uma revelação, um des-velamento, um des-nudamento dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encenação do drama humano, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.

Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apokalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “des-velar”, ou seja, “re-velação”.

Assim pois, etimologicamente, “apocalipse” equivale a “verdade” (“aletheia” = sem véu). E, como consequência, o escrito apocalíptico pretende “retirar o véu” que nos impede reconhecer as coisas como são, ou seja, revelar-nos o que se encontra por debaixo da superfície, em um nível mais profundo. É como se o autor do evangelho quisesse nos dizer: “as coisas não são o que parecem ser”.

Em cada momento histórico o texto do Apocalipse é lido e interpretado em função dos acontecimentos. Este gênero literário é uma luz que nos ajuda a “ler” a realidade (interior e exterior), desvelando tudo o que acontece nela e assim poder assumir uma atitude mais coerente com a proposta do Evangelho.

Nesse sentido, podemos “ler” o texto do evangelho como se escutasse um sonho revelador.

O Apocalipse, portanto, é um empenho da comunidade cristã em dar sentido a tudo o que está acontecendo, reencontrando sua dignidade no coração das situações mais difíceis.

A revelação que ocorre no interior de cada um e na realidade que nos envolve é o des-velar (tirar o véu) de uma Presença. No centro de nossa solidão e de nosso exílio não estamos sozinhos, mas temos a visão de Alguém, que vem ao nosso encontro.

A partir de um imaginário “catastrofista”, o evangelho aponta à esperança, exige atenção e responsabilidade com os sinais menores e cotidianos para indicar que o presente tem futuro, porque Deus não abandona a criação e a humanidade mais ferida; Ele está enraizado no mais profundo dela como uma potência surpreendente que pede nossa responsabilidade e ousadia.

Na verdade, os discursos escatológicos e os anúncios apocalípticos, apesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”.

A autêntica esperança, no entanto, não só não nos afasta do presente, senão nos enraíza nele. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Agora”. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele. Presente carregado de uma Presença providente.

Texto bíblico:  Evangelho segundo Marcos 13,24-32

 

Na oração: Como muitos mestres e mestras, cujas vidas são testemunhas da esperança, nos perguntamos:

- É possível “esperançar” quando sinto que a realidade é um “beco sem saída”?

- Como “esperançar” em meio a tanta violência, destruição, preconceito, indiferença?

- Qual tem sido meu suporte e ajuda nesses momentos da vida e como posso oferecê-lo aos outros?

- Quê ou quem me ajudou a despertar a esperança nos momentos mais obscuros?

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A carência de interioridade nos desumaniza

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 32º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Tomai cuidado com os mestres da Lei! Eles gostam de andar com roupas vistosas...” (Mc 12,38)

 

No evangelho deste domingo, os mestres da Lei (escribas) e a viúva constituem dois símbolos que encarnam maneiras de viver diametralmente opostos. Os primeiros se movem sob o impulso do poder e da vaidade, querendo oferecer uma imagem ostentosa e buscando reconhecimento, privilégios e dinheiro através de qualquer meio, inclusive usando da religião. Jesus denuncia as “largas túnicas” que costumam utilizar, nos ambientes mais diferentes, como sinal distintivo de superioridade.

No nível mais profundo, podemos considerar os “mestres da Lei” como símbolos do ego (religioso) que, carentes de interioridade, vivem em função de suas próprias necessidades e interesses narcisistas.

Por outro lado, a imagem da viúva representa a pessoa capaz de doar e de entregar-se (“tudo o que possuía para viver”), de maneira generosa e desapegada.

O contraste que o relato realça deixa transparecer o que cada um de nós vive em nosso interior. Em nós convivem o melhor e o pior, e em diferentes “doses”, tanto o “escriba” (o ego que gira constantemente em tono a si mesmo), como a “viúva” (a dimensão profunda que vive na compreensão e se expressa no amor que se entrega).

O evangelista Marcos só precisou de sete versículos para mostrar duas realidades de alto contraste e que põem em evidência duas formas de situar-se na vida e na religiosidade.

O relato deste domingo começa situando Jesus em seu ministério pedagógico. Como verdadeiro Mestre, ensinava às pessoas, ensinava com transparência e a partir da liberdade que o caracterizava. Nesta ocasião, seu ensinamento se converte em um conselho imperativo: “tomai cuidado com os mestres da Lei”. E dá razões pelas quais é preciso proteger-se das atitudes deles.

Certamente os escribas eram os “experts” e intérpretes oficiais e lícitos da Escritura. Gozavam de grande autoridade; buscavam sempre serem vistos e admirados; vestiam de forma especial; Jesus os denuncia porque eles gostavam de andar pelas praças com vestes exuberantes. Não é casualidade que também os denuncie como aqueles que “devoravam os bens das viúvas”, pois costumavam persuadi-las demonstrando serem muito devotos para administrar seus bens e aproveitar-se delas.

Eles são justamente o contrário daquilo que Jesus vem pregando; o conflito está armado. Estes líderes religiosos revelam a superficialidade na vivência e no compromisso de sua fé. Uma religiosidade baseada na aparência, na conservação de uma posição sociocultural, em manter um lugar visível e hierárquico, em alimentar um ego inflado e enaltecido que os conduz a viver de modo ego-cêntrico e ego-ista.

O seguimento de Jesus, no entanto, é um modo de viver descentrado, um compromisso existencial, onde não prevalece a ambição do ego, mas o esvaziamento e a saída de si mesmo para centrar-se no cuidado e no serviço aos demais.

A ambição e a atitude dos “mestres da Lei” não se extinguirão nunca, nem sequer nas comunidades cristãs. Ainda hoje, a figura do “mestre da lei” continua atuante, sobretudo quando os “ministros” (ordenados e não-ordenados) insistem no uso exagerado de vestimentas exóticas que tem sua origem no modo de vestir dos poderosos do império romano. Tal insistência parece indicar a necessidade, consciente ou inconsciente, de manifestar posição de poder ou uma carência de interioridade. A “cultura da exterioridade” e da busca do reconhecimento revelam o “complexo de pavão”, quando predomina a preocupação com as aparências, o espetáculo visual, a insistência em ser o centro das atenções nas celebrações, em buscar o elogio e serem admirados por todos.

Diante do espetáculo visual dos “mestres da lei”, o evangelista Marcos apresenta uma nova situação: a viúva que colocou duas moedinhas no cesto das ofertas e que servirá de contraste para compreender a mensagem de Jesus. Esta mulher é muito mais que uma viúva que depositou uma insignificância no cesto. Jesus realça esta figura simbólica que rompeu os esquemas patriarcais e religiosos dos poderosos judeus e, neste caso, dos escribas. Um simples gesto recuperou a dignidade de uma mulher que, por ser mulher, não tinha nenhuma visibilidade e, por ser viúva, estava numa posição de indigência absoluta, segundo a visão judaica.

O gesto dela des-vela a essência do coração da nova comunidade de Jesus: um abandono e confiança em Deus, uma gratuidade plena, um amor solidário, generosidade. Ela não tem poder algum, nem cargos, nem possui “dignidade eclesiástica” alguma; a única coisa que possui é um coração generoso, mas isso conta pouco nas instituições de poder. Para Jesus, o centro da comunidade cristã não é o poder e nem são os poderosos, mas as pessoas simples, a fé e o bom coração dos humildes e misericordiosos.

Jesus admira a pobre viúva. Eles não se conheciam; ela não é discípula, nem cristã..., ela é uma mulher, dos pés à cabeça, que fiel à sua consciência, deposita tudo no Templo, cujo “deus”, manipulado pelas autoridades religiosas, a exclui de quase tudo por ser mulher; no entanto, ela sabe, no fundo de suas entranhas, que Deus não é como propagam aqueles que a oprimem e alimentam uma vaidade vazia, mas é Aquele revelado pelos profetas e salmos, e a Ele se entrega e confia totalmente.

A generosidade desta mulher não está baseada numa obrigação moral, nem em um gesto público para ser aplaudido, mas se apoia na consciência de sua dignidade que a mobiliza a entregar tudo o que ela considera que deve doar.

Jesus já tinha estado no Templo, purificando-o e expulsando aqueles que ocupavam o lugar de Deus. No relato de hoje tudo é diferente; Ele não está irado e tenso, mas se admira da viúva despojada; isso lhe dá força e convoca os seus discípulos para clarear as ideias deles e dizer-lhes onde está o verdadeiro amor e a autenticidade de vida cristã; e que não se enganem, porque o discípulo e a discípula devem ter em Deus seu tesouro.

Ao contemplar a pobre viúva, talvez Jesus pensasse em sua mãe, em todas as mulheres pobres que, ao longo da história, mantém os lares, as comunidades cristãs, visitam os doentes, partilham o pão com famintos e, sempre com um detalhe nobre: com ternura, com dignidade, com compaixão. Esta viúva, contemplada por Jesus, continua caminhando por nossas ruas e paróquias, anônimas, mas com um coração generoso. Porque é essa capacidade de entregar tudo sem medida que converte uma pessoa em discípula de Jesus.

Jesus nos convida a olhar este exemplo vivo para ilustrar o modo de nos situar no seu seguimento, em contraste com os escribas e fariseus. Critica estes personagens, certamente, mas propõe uma alternativa: a de uma vida conectada à dignidade e que tem como consequência gestos de entrega, de simplicidade e liberdade. O modo de viver a vida e a fé não é questão de quantidade, das vezes que repetimos os ritos, das vezes que fazemos gestos generosos, do dinheiro que doamos ou outros atos repetitivos que vão se esvaziando de sentido. É muito mais uma questão de qualidade, de uma auto-consciência de nos percebermos enraizados numa Presença Providente que nos mobiliza a colocar toda a nossa realidade humana sob a influência da sua energia criadora.

Texto bíblico:  Evangelho segundo Marcos 12,38-44

Na oração:

O Evangelho desvela dois personagens que habitam nosso interior; o doutor da lei, centrado em si mesmo, vive da aparência, usa da religião para se projetar, para brilhar... É a cultura da vaidade, da exterioridade... Por outro lado, a pobre viúva representa aquilo que em nosso interior não valorizamos ou rejeitamos, mas que, na sua pobreza e humildade, des-vela-se diante de Deus com um coração generoso. Não pensa em si, mas nos outros; partilha tudo o que tem. Não busca a glória e o elogio.

- Qual dos dois personagens eu alimento? Vivo da aparência e da vaidade ou do descentramento e serviço?

- O que em mim é “doutor da lei”? O que em mim é “pobre viúva”?

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

"Todos os Santos" ou "todos santos"?

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade de Todos os Santos e Santas.

“Bem-aventurados sois...”

A inspirada festividade deste domingo nos convida a deixar aflorar uma verdade referente à santidade que celebramos. No “Glória” da Missa católica professamos, referindo-nos a Deus: “Só Vós sois o Santo...”; estamos proclamando um atributo divino que nos afeta a todos, não de uma rica joia que só os privilegiados herdarão. Fomos criados à imagem e semelhança do “Deus Santo” e trazemos em nós a “faísca da santidade divina”, que quer se expandir.

Nós nos tornamos santos(as) à medida que abrimos espaço em nossas vidas para Deus se manifestar em sua santidade. A verdade última, a mais consistente e sólida, é que não somos santos(as) por nós mesmos, mesmo que derramemos todo nosso sangue por defender nossa fé e gastemos nossas vidas em benefício de nossos irmãos, mas porque em nossa vida, Deus deixa transparecer seu rosto, impregnando-nos de sua santidade. Não conquistamos nossa santidade por meritocracia, por esforço pessoal, mas por pura gratuidade. Ser transparência da santidade de Deus é a suprema vocação de todos nós.

Em outras palavras, somos santos(as) porque é Deus mesmo quem nos criou e nos colocou, com muito carinho, neste mundo, para sermos presenças visíveis da sua eterna santidade.

Na festividade de “Todos os Santos” cabem todos(as); aqueles(as) que, na glória eterna, já estão no coração de Deus; e todos nós que, durante este percurso de vida, fazemos das Bem-aventuranças a pauta de nossa conduta cristã.

Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da situação presente, cuja atuação se dá no mundo em que está encarnado. O(a) santo(a) é aquele que, na “loucura santa”, revela uma pulsação de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo da vida); é um(a) co-operador(a), agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação cotidiana.

Não é o trivial ou o excepcional que distingue a santidade de cada pessoa: o que importa é sua correspondência à Vontade de Deus expressa na situação concreta de cada dia.

Ser santo(a), portanto, é sermos dóceis para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.

Assim, nós cristãos honramos a santidade universal, sem fronteiras de raça, de credo, de cultura... Nesse sentido, a santidade excede os limites da Igreja católica, porque o Espírito derrama seus dons sem medida e suscita sinais de sua presença em todos e em tudo. E, que sinais da presença do Deus Santo é mais eloquente que a vida, o amor, a plenitude ou a felicidade? E, talvez, deixar ressoar em nós o “somos todos santos(as)”, como um apelo a ser vivido no presente e não como uma promessa de futuro.

Diante disto, vamos nos deixar surpreender mais uma vez pelo evangelho indicado para a festa deste domingo e descobrir-nos “bem-aventurados(as)”, chamados(as) a ser felizes, a abrir espaço para que cada bem-aventurança fique gravada no mais profundo de nosso ser, iluminando nossa existência e deixando transparecer o rosto santo de Deus.

Como podemos viver diariamente as bem-aventuranças proclamadas por Jesus? Quem se encontra frequentemente com elas tem consciência de que seu conteúdo é inesgotável; sempre tem ressonâncias novas; sempre encontramos nelas uma luz diferente para o momento que estamos vivendo; elas se revelam sempre inspiradoras para o nosso modo de ser e viver.

As bem-aventuranças não são uma teoria, nem leis mais sofisticadas ou um plano que brota de nossa mente; em primeiro lugar, elas são a melhor descrição de quem foi Jesus e como Ele viveu; ao mesmo tempo, elas são a revelação do que há de melhor em nosso interior. Elas des-velam nossa verdadeira identidade, nossa essência humana.

“As bem-aventuranças são a carteira de identidade do cristão, que o identifica como o seguidor de Jesus”, afirma o papa Francisco. Se quisermos saber o que Jesus nos propõe para sermos felizes, para vivermos com mais intensidade e sentido, para realizarmos o sonho que Deus Pai-Mãe teve ao nos criar, encontraremos nas bem-aventuranças o manual de instruções. Se as seguirmos, seremos ditosos, benditos e iremos nos aproximando de nossa plenitude humana e divina.

A proclamação das bem-aventuranças é o prelúdio, a essência do estilo de vida que Jesus, o Bem-aventurando por excelência, que propõe o mesmo para toda a humanidade, independente de credo, raça, condição social... É a síntese da proposta vital que Jesus oferece à humanidade sedenta de sentido e necessitada de um projeto inspirador para orientar suas aspirações existenciais e a vivência da felicidade (plenitude) que tanto busca. O que Jesus oferece é um modo de ser e viver para ser feliz. Isso é justamente aquilo que a humanidade, em todo momento e lugar, tanto deseja.

Jesus é para nós o revelador de Deus e o revelador do ser humano. Nas bem-aventuranças Ele nos revela o plano de salvação (libertação, felicidade, plenitude) que Deus propõe para a humanidade inteira, em todo tempo e lugar. Deus nos criou a todos para que sejamos felizes, aspiração latente no interior de cada pessoa. Jesus, nas bem-aventuranças, nos mostra o caminho para viver com mais intensidade e plenitude.

O evangelista Mateus situa a proclamação das bem-aventuranças como abertura do “discurso evangélico” (caps 5; 6 e 7). E a primeira coisa que ele faz é descrever com detalhes o cenário onde se situa este discurso. Com isso, o que ele pretende é preparar-nos para escutar algo muito solene e muito importante: a multidão numerosa, a subida ao monte, Jesus sentado como o Mestre, os discípulos que se aproximam para não perder nada do que vai ser dito, o início solene da proclamação do discurso. Como bom mestre, Jesus apresenta o programa que Ele vai desenvolver ao longo de toda sua vida. Ao mesmo tempo, o programa de vida de todo(a) seguidor(a) seu(sua).

As bem-aventuranças são um retrato, um perfil do estilo de vida que Jesus assumiu e deseja que todos o assumam da mesma maneira. Como perfil, elas concretizam as características desse estilo de vida: partilha, mansidão, compaixão, justiça, misericórdia, humildade, coerência, abertura, proximidade, serviço... Em suma, as bem-aventuranças descrevem o perfil de uma “pessoa integrada”, de uma pessoa “muito humana”, pois elas revelam aquilo que é mais humano, e que está presente no mais profundo de cada um. Quem vive este perfil é feliz, ditoso, bem-aventurado. E a razão desta felicidade é porque nisso encontramos a Deus e fazemos parte de seu Reino.

Neste tempo de profundas divisões e conflitos entre as pessoas, neste tempo de dor e de ódio, neste tempo de desesperança e solidão, as bem-aventuranças nos ajudam a semear sementes de alegria, de paz, de mansidão, de compaixão..., porque são a grande força que temos para transformar a Igreja e o mundo.

As bem-aventuranças nos fazem ver que, mais que ciência e tecnologia, precisamos de mais humanidade, ternura, bondade, compaixão..., pois sem esses valores a vida se desumaniza. Por isso, as bem-aventuranças nos ajudam a viver com as mãos abertas e o coração solidário e nos anima a rejeitar o cinismo que reina em nossa vida ecológica, política, econômica e social.

As bem-aventuranças, portanto, vão muito mais além de tudo o que os mandamentos significam; elas não se fixam em alguns limites que não podem ser transgredidos, mas marcam algumas metas que nunca chegaremos a alcançar em plenitude. Não são a negação que estabelece o que não se pode fazer, mas a afirmação que nos dá vida e nos deixa profundamente felizes.

Por não serem leis, nem mandamentos, as bem-aventuranças não despertam sentimento de culpa. Pelo contrário, são fonte da perene alegria: alegria oblativa, carregada de compaixão, des-centrada...

Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 5,1-12


Na oração:

Repassar, pausadamente, cada uma das bem-aventuranças, contemplando o significado de cada palavra nascida do coração de Jesus.

- Em que medida elas se fazem presentes em sua vida? Há alguma bem-aventurança ainda “escondida” em seu interior, e que precisa ser ativada, para crescer na identificação com Jesus Cristo?

- Sua vida está centrada na vivência das bem-aventuranças (essência da vida cristã), ou ela se reduz a um mero cumprir alguns ritos vazios, algumas devoções egóicas, algumas práticas penitenciais estéreis...?

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

CEGO DE JERICÓ: olhos abertos às surpresas da vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 30º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“O cego jogou o manto, deu um salto e foi até Jesus” (Mc. 10,50)

 

Bar-Timeu: “bar”, em aramaico, significa “filho de”. Ele é um homem sem nome, conhecido simplesmente como filho de Timeu. Está sentado num ponto estratégico, mendigando às margens da estrada. Todos os peregrinos passam por ali para ir a Jerusalém. Marcos nos fala da “marcha decidida”, encabeçada por Jesus, em direção à Cidade Santa. Esta marcha estremece, dá medo, pois não se realiza nas melhores condições. Em três ocasiões anteriores Jesus já tinha predito sua paixão e morte em Jerusalém, nas mãos das autoridades, civis e religiosas. Os discípulos, também com medo, o seguiam; pouco a pouco muitas pessoas vão se somando à peregrinação: uma “multidão considerável”, nos diz o evangelista.

É o caminho da fidelidade no seguimento de Jesus. Identificar-se com Ele é levar até as últimas consequências o compromisso em favor da vida e dos mais excluídos.

À beira deste caminho, um cego está atento, pois é difícil que alguém passe por este ponto sem perceber a presença dele. Só ele sabe o incômodo que é estar cego, esmolar, vivendo fora da cidade, à margem do caminho.

A hora é agora e não há tempo a perder diante de tamanha oportunidade: a passagem do “Filho de Davi”.

Aquele que não via, vê Alguém muito especial que passa; e Aquele que passa é o Filho de Davi, o Messias aguardado por tantas gerações.

Ao mesmo tempo, o cego reconhece que Ele tem poderes terapêuticos e que pode curá-lo de sua cegueira.

Assim, do meio do barulho dos passos, da balbúrdia e do vozerio das pessoas, brota, da boca do cego, uma invocação incontrolável, cada vez mais persistente; uma oração, um ato de fé:

                                      “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim”.

Surpreende-nos a variedade de nomes e qualificativos em sua maneira de dirigir-se a Jesus. Certamente já ouvira falar sobre Ele e reconhece que Ele vem da parte de Deus e que age com autoridade.

Soa o primeiro “kyrie eleison”, que depois repetiremos constantemente nas comunidades cristãs.

Os “guardiões da ordem” o repreendem para que se cale esta voz incômoda que vem da margem.

Aqueles que acompanham a Jesus não querem saber nada dos problemas do cego. É como se dissesse: “na situação em que te encontras não tens direito a protestar nem a gritar. Aguenta e cala-te!”.  São “muitos” que fazem caminho com Jesus, mas não têm a sensibilidade de descobrir a necessidade dos outros.

Mas a voz suplicante chega aos ouvidos de Jesus; este deixa-se afetar por ela e “se detém” no caminho.

Jesus interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Ele ouve e pede para chamar justamente aquele cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia.

O relato deste domingo tem pouco a ver com outros relatos de cura em Marcos.

É Jesus que chama o cego, pergunta o que ele quer, admite o título de “Filho de Davi”, não o afasta da multidão, a cura não é acompanhada de nenhum gesto, não o manda guardar silêncio a respeito da cura...

Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.

Aquele que vê com os olhos da fé, quer ver com os olhos físicos. O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua riqueza, sua segurança, seu teto... e entra na luz do olhar de Jesus.

Bartimeu não está mais excluído, às margens da estrada. Agora, ele se encontra no centro da cena: face a face com o “Filho de Davi”. Na verdadeira fé a luz interior envolve todo o seu corpo. Jesus acende os sentidos do cego e este recupera sua visão. Curado, ele se incorpora à marcha e segue alegremente Àquele que vai na frente.

A partir de agora ele poderá ver, não apenas o rosto das pessoas, a cor de uma flor, o sorriso de uma criança, o encanto da aurora ou o pôr-do-sol, mas, sobretudo, poderá ver a própria existência, o sentido das coisas, da história, dos acontecimentos humanos e da vida...

Finalmente, Bartimeu poderá decidir aonde ir, o que fazer da própria vida e como dirigir-se ao próprio Deus. Jesus não o segura; não o convida a segui-lo, mas oferece a capacidade de ver na direção certa; oferece-lhe a liberdade; ajuda-o a descobrir que, o desejo de viver, de caminhar, de gritar, nasce da fé.

E, naquela liberdade total, interior, faz a sua opção decidida: “...e seguia-o pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...

Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; a estraneidade se tornou familiaridade; a liberdade se tornou gratidão; a solidão se tornou seguimento...

E tudo isso começou de um grito... e de um salto.

A capa, que antes o acompanhava e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representava é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor...

Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo ver, salta ainda mais para um novo ser.

Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.

O relato evangélico deste domingo também nos ajuda a recuperar o sentido de nossa visão, normalmente possessiva, estreita e interesseira. Nossa maneira de ver, nesta cultura da imagem, está muito condicionada pelos grandes meios de comunicação, que constantemente nos transmitem informações sobre a realidade, segundo a visão e o interesse dos donos. Gerou-se nas sociedades atuais uma maneira “comprada de ver”.

Por isso temos de libertar nossos olhares, tanto para olharmos a nós mesmos como para não entrarmos nas expectativas daqueles que nos olham com olhos que não respeitam nossa própria realidade pessoal.

É preciso olhar de outra maneira para ver e oferecer uma visão alternativa da realidade, para saber o que vivemos e a partir de onde o vivemos. Mas isso supõe um longo processo contemplativo que é inseparavelmente ascético e místico, íntimo e social, pessoal e comunitário.

Todos participamos de algum jeito das diferentes cegueiras deste mundo. Necessitamos de colírios que nos devolvam a vista, como a Igreja de Laodicéia (Ap 3,18).

Todos precisamos libertar o olhar de nossas cegueiras para contemplar a realidade como Deus a olha.

Precisamos voltar a receber, muitas e muitas vezes, esse olhar primeiro e originante de Deus, que pôs seus olhos sobre a criação, sobre cada criatura, fixa-se nela e a vê como boa e preciosa.

Nossa presença consiste em recuperar esse olhar de benção sobre nós e sobre o mundo. Com muito mais motivo sobre aqueles rostos que não encontram razões para serem considerados bons, formosos e atrativos.

São muitos os que, à beira da estrada, clamam para serem escutados e olhados de maneira compassiva, sem a frieza do julgamento, sem intolerância e preconceito.

É preciso “cristificar” nosso olhar para ativar uma sensibilidade solidária e comprometida.


Textos bíblicos: Evangelho segundo Marcos 10,46-52

Na oração:  

Orar com os olhos é dar o salto do simples “ver” a um sereno e profundo “olhar”. E deste, a um “sentir-nos olhados” muito mais amorosamente...

Ao orar, precisamos “olhar” e “sentir-nos olhados”.

     “O olho através do qual eu vejo Deus é o mesmo olho através do qual Deus me vê” (Angelo Silésius).

Para orar, basta aprender a olhar e a sentir-nos olhados.

Se pretendemos aprender a “olhar com amor”, sintamo-nos olhados desse modo.

- Além de olhar tudo com paz, se você quiser converta cada olhar em oração; olhe tudo com carinho.

- Recorde todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.

- Procure sempre que seu olhar seja límpido, sem filtro, isto é, isento de preconceitos.

- Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt 5,8).

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Menos poder e mais autoridade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 29º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

Quem quiser entre vós ser grande, que se faça vosso servidor” (Mc 10,43)

Enquanto fazem o caminho de subida a Jerusalém, Jesus vai anunciando aos seus discípulos o desenlace trágico de sua missão na capital. Mas os discípulos não o compreendem, pois estão disputando entre eles os primeiros lugares. Tiago e João, discípulos de primeira hora, se aproximam d’Ele para pedir diretamente que, no Reino, pudessem sentar-se “um à sua direita e outro à sua esquerda”.

Tiago e João pedem privilégios a Jesus e, diante deste pedido atrevido, os outros dez discípulos ficam indignados contra eles. O grupo está mais agitado que nunca. A ambição está dividindo o grupo.

Ninguém no grupo dos discípulos entende que seguir Jesus de perto, colaborando em seu projeto de vida, nunca será um caminho de poder, de grandezas e ambição, mas de doação e compromisso fiel. Por isso, Jesus reúne a todos para deixar claro seu modo de ser e pensar.

Recorda-os que aqueles que são reconhecidos como chefes utilizam seu poder para “tiranizar” os povos, e os grandes “oprimem” seus súditos. Jesus é taxativo: “entre vós, não deve ser assim”.

Jesus dá tanta importância ao que está dizendo que se apresenta a si mesmo como exemplo, pois não veio ao mundo para exigir que lhe sirvam, mas “para servir e dar sua vida em resgate de muitos”. Ele não ensina ninguém a triunfar em sua nova comunidade, nem alimentar uma ambição que acaba envenenando as relações entre seus seguidores. A atitude essencial no seu Reino é o serviço, desgastando-se em favor dos mais fracos e necessitados.

O ensinamento de Jesus não é só para os dirigentes religiosos. A partir das funções e responsabilidades diferentes, todos devemos nos comprometer a viver com mais entrega no serviço de seu projeto. Na Igreja, não precisamos de imitadores de Tiago e João, mas de seguidores(as) de Jesus. Quem quiser ser importante, que desça do pedestal do poder e se coloque no lugar mais baixo, para trabalhar e colaborar com o Reino.

É muito próprio do ser humano o impulso egóico por sobressair sobre os outros, ter privilégios, conquistar fama. Esta é uma das grandes tentações que afloram, sobretudo em muitos membros das comunidades cristãs, ou seja, o avassalador desejo de serem protagonistas, de se imporem sobre os outros, de subirem o pedestal para serem o centro das atenções; essa é a desejada posição onde possam ser vistos, serem obedecidos e receberem algum tipo de bajulação. Todos estamos expostos à tentação de nos sentirmos indispensáveis, insubstituíveis e únicos.

E grande parte das tensões nos relacionamentos nas comunidades cristãs surge da confusão que fazemos entre “poder” e “autoridade”.

Poder: é a faculdade de forçar, coagir ou pressionar alguém a fazer sua vontade, por causa de sua posição ou força; exige submissão ou obediência cega.

Autoridade: é a capacidade de convencer, atrair, seduzir..., pelo seu modo de ser e viver, pelos seus valores, pela sua causa mobilizadora. Desperta “seguimento”.

O poder é definido como uma “faculdade”, enquanto autoridade é definida como uma “habilidade”. Uma pessoa pode estar num cargo de poder e não ter autoridade sobre as pessoas. Ou, ao contrário, uma pessoa pode ter autoridade sobre os outros sem estar numa posição de poder.

Outro modo de diferenciar “poder” e “autoridade” é lembrar que o poder pode ser vendido e comprado, dado e tomado. A autoridade, por sua vez, não pode ser comprada nem vendida, nem dada ou tomada.

A autoridade diz respeito àquilo que a pessoa é em sua essência, em sua identidade original; diz respeito ao seu caráter, à sua interioridade nobre e à sua presença inspiradora junto aos outros.

Acontece que, muitas vezes, aqueles que não vivem a autoridade descentrada, se apoiam no poder. Deixam de convencer e passam a se impor; perdem o apreço pelos outros e se mantém à base de força e opressão.

O poder é uma tentação permanente, inclusive nas comunidades cristãs; isso se manifesta pela quantidade de vezes que encontramos no NT advertências às lideranças eclesiásticas para que não corrompam sua autoridade, convertendo-a em poder (1Ped 5,1-4).

O poder encontra sua expressão visível e sua força numa instituição de estrutura piramidal, hierárquica. Neste paradigma de cima para baixo”, todos estão olhando para cima, tentando agradar aqueles que ocupam cargos, e não dirigem o olhar para os lados, onde a verdadeira realidade de uma instituição está acontecendo.

A estrutura hierárquica-piramidal fortalece a estrutura de poder, controle, vigilância, supervisão...; tal estrutura acaba por afetar e asfixiar a liberdade interna, a motivação e o compromisso dos membros da instituição; além disso, ela suprime iniciativas, criatividade e incentivos, em relação aos novos projetos.

O poder religioso é o mais tóxico, pois manipula consciências, alimenta culpa e medo de Deus, centraliza as decisões, é incapaz de escuta e de discernimento... Quão distante está da “sinodalidade”, modo original de ser e proceder das primitivas comunidades cristãs!

Na Igreja não há poderes, e sim funções diferentes. Nela, a autoridade é exercida como um serviço fraterno.

Assim sendo, Jesus não se situou, diante de seus discípulos como o superior que exige “obediência” de seus súditos, mas como o amigo exemplar que desperta “seguimento” de seus fiéis “amigos” (Jo. 15.15).

Jamais se disse dos discípulos ou de qualquer outro ser humano que se relacionasse com Jesus mediante a obediência ou a sujeição, que é a resposta obediente a uma ordem.

Portanto, os Evangelhos não falam de “obediência” a um poder que se impõe, submete e manda. A relação que se estabelece entre os discípulos e Jesus é a do “seguimento”.

De fato, nos evangelhos o verbo “obedecer” nunca é aplicado a indivíduos ou grupos que se submetem a um superior. Com efeito, o verbo “obedecer” aparece nos Evangelhos apenas três vezes: quando se diz que “o vento e o mar obedecem” a Jesus (Mc. 4,41); quando o próprio Jesus diz aos discípulos que, se tiverem fé, até uma amoreira silvestre lhes obedeceria (Lc. 17,6); e, quando as pessoas ficam espantadas ao verem que Jesus “manda até nos espíritos impuros e eles lhe obedecem” (Mc. 1,27).

No entanto, o verbo “seguir” aparece 67 vezes para expressar a relação entre Jesus e aqueles(as) que creem e confiam n’Ele.

A autoridade de Jesus, portanto, não se fundamenta na submissão e nem se sustenta no poder que manda, que controla e que dá ordens, mas suscita seguimento, pois Ele se apresenta numa atitude exemplar que atrai e dá sentido à vida das pessoas que o circundam.

A partir deste pano de fundo, o evangelho deste domingo aparece como um manual de uma Igreja de servidores (as), onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratuidade, na compaixão, na acolhida...

Já é tempo de uma revolução. Há de ser uma revolução original e não violenta que brota do evangelho. Uma revolução de gente boa, simples, inteligente, sábia, que pratica a empatia, a ética e o sentido comum, que valoriza o silêncio e a palavra, que acolhe a todos, brancos ou negros, homens ou mulheres...

Falamos da revolução do serviço. Jesus não atua por meio do poder, mas do serviço. Por isso, seus seguidores devem renunciar o poder (isto é, a imposição sobre os outros). Aqui se expressa a Nova Comunidade que nasce do coração do Compassivo e Servidor, invertendo o desejo de poder dos “filhos de Zebedeu” e dos outros dez que queriam organizá-la a partir de cima.

Por isso, frente à manipulação messiânica dos “filhos de Zebedeu”, Jesus estabeleceu as bases de uma fraternidade onde não existe poder, senão serviço, exercido pelo “diakonos” (servidor libre).

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 10,35-45

Na oração:

Diante de Jesus servidor deixe que Ele desvele sinais de “zebedeus” presentes em sua vida, quando busca poder, alimenta vaidade, tem desejos de imposição e controle sobre os outros, manipula consciências...

- Na sua comunidade (paroquial, religiosa, familiar...) predomina o poder que cria subservientes ou a autoridade que alimenta subsidiariedade (partilha, confia serviços e ministérios...).

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Há Vida Nesta Vida?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 28º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Bom Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?”

Uma pergunta fundamental que brota de nossa interioridade: como chegar a viver uma vida que tenha o sabor de “eternidade”, ou seja, para além das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas; em outras palavras, uma vida plena, livre, profunda, transbordante... Todos desejamos dar um sentido à nossa vida, vivê-la com intensidade e com inspiração. Não nos satisfaz a explicação de que viveremos essa vida “na eternidade”: não poderemos começar a vivê-la já agora, em meio às carências, desafios, perdas, fracassos, crises... que vão se fazendo presentes em nossa existência cotidiana?

Aqui não se trata uma aspiração a mais; é o desejo de toda pessoa conseguir uma existência digna e feliz. Quem deseja uma vida vazia? Preenchê-la parece ser a meta, mas a questão é: de quê. Alguns mais, outros menos, mas todos aspiram uma vida plena, intensa, completa...

O “quê” da questão surge quando alguém descobre sua mochila vital transbordante de objetos, riquezas, ansiedades, pressas e vivências que, enganosamente, se mostram valiosos, mas que na realidade não o são. E quão cheia parece estar essa vida! E quão vazia a pessoa podem se sentir! Essa é a “síndrome existencial” onde o acumular embota os sentidos, atrofia o interior e não deixa lugar para o que é verdadeiramente importante. Uma vida cheia? Cheia de quê? De Vida!

Aqueles que seguiram Jesus de perto fizeram a experiência de estar junto de alguém que vivia intensamente, sem colocar sua segurança na posse de bens ou no apego às pessoas, títulos, prestígio, poder... Seu único tesouro era a confiança em seu Pai, e seu projeto, como Mestre, era ensinar as pessoas a viverem a partir da liberdade e da alegria de servir, sem se deixar determinar pelo apego e preocupação em possuir e acumular.

 É nesse contexto que alguém, de maneira inesperada, interrompe o caminho de Jesus, ajoelha-se diante d’Ele, chama-o de “Bom Mestre” e manifesta uma pergunta existencial, presente em todo ser humano: “que devo fazer para herdar a vida eterna? Chamou Jesus de “Bom Mestre”, não tanto como um reconhecimento de sua bondade, mas porque intuía nele uma autoridade capaz de orientar-lhe à hora de conseguir essa vida que tanto buscava. Mas Jesus, sem maiores explicações, remeteu-o à vivência dos mandamentos. Quando o homem lhe respondeu que os havia guardado desde sua juventude, Jesus fixou nele seu olhar com amor, acentuando a comunicação pessoal com alguém que andava buscando a Deus.

Jesus intui que o homem que está prostrado diante de si é bom, religioso e pratica os mandamentos; ele tem uma consistência humana; por isso, Jesus quer ajudá-lo a ir mais além da simples observância dos preceitos. A vivência dos mandamentos é necessária, mas não basta. Realizar o que está previsto pode ser até fácil e cômodo, mas não há muito mérito nisso; é preciso ser criativo e descobrir caminhos novos, e não apenas cumprir leis e preceitos. Para Jesus, não basta ser apenas cumpridores de normas, por mais recomendáveis e santas que sejam. A cada um Ele diz o que ainda “falta”.

Jesus não se fixa na situação atual daquele homem, preocupado em acumular riquezas, mas vislumbra nele uma outra possibilidade de vida e que estaria esperando em seu interior para nascer, para iluminá-lo nesse novo percurso existencial ao qual o “Bom Mestre” o convida a empreender. Para “herdar a vida eterna” é preciso investir os próprios recursos internos numa vida descentrada, oblativa, comprometida e que se expressa na partilha dos bens com os mais necessitados.

Jesus revela um olhar profundo capaz de vislumbrar o melhor que está presente naquele homem que veio correndo ao seu encontro, esperando uma ocasião para se expressar. Seu olhar contemplativo não permanece na superficialidade da pessoa, nas suas limitações e apegos.

Jesus viu, em profundidade, que o rico corria o risco de sufocar os desejos de liberdade, justiça e fraternidade presentes no mais íntimo do seu ser.

No diálogo com ele, Jesus o ajuda a discernir. Propõe-lhe que olhe o seu interior, à luz do amor com o qual Ele mesmo, olhando-o, o ama; é com esta luz do amor que o homem deve verificar a que seu coração está apegado verdadeiramente. Ele deve descobrir que seu bem maior não é acrescentar outros atos religiosos, talvez mais difíceis, mas, pelo contrário, esvaziar-se de si mesmo, vender o que ocupa sou coração para ampliar espaço para Deus. Esta é a chave que o abre à vida e que se encontra justamente na atitude de deixar, soltar, abandonar, desapegar-se, descentrar-se, partilhar... Viver esta vida com sabor de eternidade está longe de acumular, reter, colocar a segurança nos bens...

É uma indicação preciosa também para todos nós. Onde investimos o melhor de nós mesmos? Qual é o “tesouro” que nos seduz? Para onde estão orientados nossos “afetos”?

A “pressa” do homem do relato deste domingo, que veio correndo ao encontro de Jesus, parece que expressa uma falsa inquietude, uma má consciência, a necessidade de perfeição, de ser maior ou o melhor que os outros. Em todo caso, ele não está preocupado com a situação dos outros, mas com sua própria situação, com sua vida futura. Que importa a ele a situação dos camponeses, dos sem-teto, dos doentes... ou dos excluídos com os quais Jesus mais se preocupa?

Jesus o desafia a romper com seu mundo fechado, com seu modo legalista de viver... O desafio consiste em ir além da prática dos mandamentos, radicalizando-a. Como? Vivendo a solidariedade com os pobres e o desapego, numa experiência real da centralidade de Deus em sua vida, sem resquícios de idolatria. E, além disso, dar o passo do discipulado do Reino, no seguimento de Jesus.

Tal desafio deixa o homem contristado. O apego aos bens torna árido o seu coração, fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção de Deus e dos irmãos.

O “homem rico” do evangelho de hoje é o nosso espelho: nele nos vemos; nele Jesus nos desafia a sair de nossa acomodação, a romper nossa prática rotineira das leis, do apego aos bens, prestígio, poder... (falsos ídolos que nos desumanizam).

Jesus “olhou aquele homem com amor” e viu em seu interior ricas possibilidades, impulsos para algo maior, o desejo do “mais” ... Ele também dirige o seu “olhar” para cada um de nós e capta a grandeza e a nobreza presentes no nosso coração. Somos seres de travessia, de largos horizontes... Somos, por natureza, expansivos, em contínuos deslocamentos nos projetos, nos relacionamentos, na maneira de viver...

Nós nos humanizamos à medida que nos deixamos mover pelos sonhos, projetos, desejos profundos...

Ao mesmo tempo, Jesus, com seu olhar, “lê”, no mais escondido de nosso interior, os mais diferentes medos e apegos que minam a força e a coragem do seguimento.

Carregamos em nosso coração um “gérmen de vida” que busca desenvolver-se e chegar à plenitude.

S. Inácio nos diz que “Deus pôs grandes desejos em nosso coração”. O desejo é desejo de vida. O desejo não é a posse, mas a expectativa. Como explica S. Agostinho, o desejo escava no nosso interior uma capacidade maior de receber.

Quem se julga saciado ou pouco interessado em aceitar um esvaziamento de si, apaga dentro dele este desejo que tem sabor de eternidade e embarca numa vida medíocre e sem criatividade.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 10,17-30

Na oração:

Diante de Jesus, que desafia a todos a “fazer estrada com Ele”, deixar ressoar estas perguntas: “há vida na minha maneira de viver atualmente? Há algum “afeto desordenado” que atrofia as potencialidades presentes em meu interior? Quem é o “senhor” que move meu coração? A quê me dedico a investir os melhores recursos que recebi como dons? O mundo dos pobres e excluídos desperta uma sensibilidade solidária em mim, ou permaneço “indiferente” frente a esta cultura do consumismo e do esbanjamento?...”