quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Os pobres são os assessores do Rei Eterno

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 25º. Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Os pobres são os assessores do Rei Eterno (Santo Inácio de Loyola) 

“Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas” (Lc 16,9)

 

A parábola do evangelho deste domingo não pretende se referir em absoluto à corrupção e ao roubo, mas ela está centrada numa questão radical: “Os filhos das trevas são mais astutos que os filhos da luz”.

Jesus, na parábola, não louva o mal administrador por sua péssima administração e roubos. O que Jesus quer destacar é sua “inteligência” e “esperteza” para garantir seu futuro, a astúcia com que atua para atrair a benevolência dos credores de seu amo.

Não devemos imitá-lo na sua injustiça, mas na sua previdência. O administrador infiel é um filho deste mundo; deixa-se guiar pelo cuidado de sua existência terrena. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.

E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente e com esperteza, utilizando todos os recursos em favor da vida.

Jesus reconhece a astúcia dos “filhos deste mundo” utilizada para cometer delitos, enganar, roubar ou levar uma vida corrupta; para aqueles que o seguem, Jesus revela a necessidade de serem astutos para fazer o bem e lutar pela justiça; quer que os “filhos da luz” sejam astutos positivamente: estejam atentos, sejam hábeis e permaneçam despertos diante dos mecanismos do mal e usem da criatividade para o bem do Reino.

O administrador astuto, quando foi denunciado por desvios dos bens do patrão, agiu pensando exclusivamente nele, procurando abrir para si um caminho no futuro imediato, para continuar fazer o que sempre fazia: roubar.

Quando o dinheiro se converte no “deus” a quem adorar, o ser humano se deprecia: direitos humanos em liquidação, a educação, a saúde, a moradia..., tudo é deixado de lado.

O dinheiro, como meio, tem sua importância, mas é preciso estar atento aos sinais de alerta antes de atravessar essa sutil fronteira que leva à ambição, à cobiça e à avareza, até transformar a pessoa num ser que já não sabe valorizar o que acontece por dentro, sente-se diferente e distante do resto da humanidade.

Em cada um de nós convivem a luz e as trevas. A parábola deste domingo parece conter uma profunda ironia, ao confrontar-nos conosco mesmo e perguntar-nos de que maneira procedemos nos assuntos que concernem às “trevas” (ego) e naqueles que potencializam a luz que somos.

A experiência nos diz que quando é nosso ego que toma iniciativa, ele ativa meios, recursos, táticas, estratagemas..., com a finalidade de sobressair vaidoso e assegurar sua sobrevivência (como faz o empregado da parábola, que representa, justamente, o nosso próprio ego e seu mundo de interesses).

O que ocorre com a luz, que é a nossa verdadeira identidade? Que fazemos com o melhor de nós mesmos? Se investíssemos tanta motivação e tantos meios para que nossa verdadeira identidade se manifestasse e deixasse sua marca, nosso mundo seria bem diferente.

A parábola e as sentenças de Jesus trazem à tona a questão da riqueza no caminho espiritual, com um destaque fundamental: diante do risco de absolutizá-la (endeusá-la), requer-se lucidez (astúcia) para usá-la como instrumento a serviço da vida.

“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Estas palavras de Jesus não podem ser esquecidas nestes momentos por nós que nos sentimos seus seguidores, pois contém a advertência mais grave que Jesus deixou à sua comunidade. O dinheiro, convertido em ídolo absoluto, é o grande inimigo que impede a construção de um mundo mais justo e fraterno, querido por Deus.

Infelizmente, a riqueza se converteu, no nosso mundo globalizado, em um ídolo de imenso poder que, para sobreviver, exige cada vez mais vítimas, desumaniza e empobrece cada vez mais a história humana; assim nos encontramos enredados por uma crise gerada, em grande parte, pela ânsia de acumular.

Praticamente tudo se organiza, se move e se dinamiza a partir dessa lógica: buscar mais produtividade, mais consumo, mais bem-estar, mais prestígio, mais poder sobre os outros... Esta lógica é destruidora; se não a estancarmos, pode colocar em perigo o ser humano e destruir a Casa comum.

Jesus nos alerta que, a primeira coisa a fazer, é tomar consciência daquilo que está acontecendo. Esta não é só uma crise econômica. O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. A busca da própria segurança é a base da tentação pelo dinheiro.

De fato, nossa relação com o dinheiro nunca é mera e exclusivamente funcional, econômica, monetária, de valor de troca. Sempre há um “algo mais” em nossa vinculação com ele.

Provavelmente, poucas relações com o mundo material de objetos estão tão “carregadas” afetivamente como esta do dinheiro. A atração, o apego, a dificuldade para desprender-nos dele... e, muitas vezes, uma forte ambivalência, ou seja, uma polaridade de sentimentos e afetos contrários em relação com esse objeto que progressivamente vai se fazendo tão determinante em nossa existência. Compreender as vinculações íntimas que todos mantemos na relação com o dinheiro nos ajudará a compreender, sem dúvida, a lógica perversa que pode ser desencadeada na relação conosco, com o outro e com a criação.

Nos relatos do Evangelho, o “dinheiro” é designado com o termo “mamón”, que só aparece quatro vezes no Novo Testamento e sempre na boca de Jesus. Trata-se de um termo que provém da raiz aramaica “aman” e significa qualquer riqueza sobre a qual o indivíduo apoia sua existência.

Além de uma evidente e fundamental função de valor de troca que possui, são múltiplas e variadas as significações que o dinheiro pode chegar a desempenhar para cada um: meio com o qual ganhar afeto, um suporte de prestígio e segurança pessoal ou um instrumento poderosíssimo de poder sobre os demais, um meio de defesa e inclusive de ataque sobre os outros, um acréscimo de valia pessoal, tendências perversas de exibição e ostentação frente os outros, corrupção...

“Usai o dinheiro injusto para fazer amigos”: é um apelo a investir tudo o que temos a serviço daquilo que vale verdadeiramente: nosso verdadeiro ser, alimentar comunhão com os outros, viver a partilha...

Utilizamos com sabedoria o “dinheiro injusto”, quando compartilhamos com aquele que passa necessidade.

Nunca poderemos atuar como donos absolutos daquilo que possuímos. Somos simples administradores. A única coisa que se conserva é a que é partilhada. O que não se partilha, se perde.

No fundo, Jesus nos quer dizer assim: “Empregai vossa riqueza injusta para ajudar os pobres; ganhai sua amizade compartilhando com eles vossos bens. Eles serão vossos amigos e, quando na hora da morte o dinheiro já não sirva para mais nada, eles os acolherão na casa do Pai”.

Dito com outras palavras: a melhor forma de “lavar” o dinheiro injusto diante de Deus é dividi-lo com seus filhos mais pobres.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 16,1-13

Na oração:

Traço característico, que define a qualidade de vida de uma pessoa que segue Jesus Cristo, é a simplicidade de vida, entendida no sentido de um nível econômico simples e despojado.

- Como testemunhar que se pode ser feliz vivendo uma cultura da gratuidade, da moderação, da solidariedade, possibilitando uma partilha dos bens de maneira mais igualitária e justa para todos os seres humanos e que favoreça melhores condições de realização humana?

- A quem sirvo? Quem é o “senhor” que comanda o meu coração?

- Deus pôs em minhas mãos tantos dons, tantas possibilidades... E que estou eu fazendo com tanta “riqueza” que o Senhor me confiou? Sou um(a) administrador(a) fiel e solícito(a), ou vou desperdiçando pela vida os “bens” (talentos e oportunidades) que o Senhor me deu e continua me cumulando?

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Na Cruz revela-se o Amigo dos crucificados

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Festa litúrgica da Exaltação da Santa Cruz (Ano C).


“Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo”

 

Celebramos, neste domingo, a festa da “Exaltação da Santa Cruz”. Não exaltamos o sofrimento, a mortificação, as cruzes de cada dia... Nela mesma, a Cruz não tem sentido (instrumento de tortura), mas o que aconteceu nela: a fidelidade e a entrega radical de uma Vida em solidariedade com todos os crucificados da história.

Assim, à luz do Crucificado, vemos a Cruz como fonte de vida em um mundo de morte. A Cruz tem suas raízes no deserto em um momento de morte e como sinalo de vida (1ª. leitura). Agora, a Cruz é reveladora do Amor com que Deus ama o mundo e fonte de vida para que “todo o que n’Ele crer, tenha a vida eterna”.

No rosto desfigurado do Crucificado revela-se um Deus surpreendente, que rompe nossas imagens convencionais d’Ele e põe em questão toda prática religiosa que pretenda prestar culto a Ele, esquecendo o drama de um mundo que continua crucificando os mais indefesos e inocentes. Se Deus morreu identificado com as vítimas da maldade humana, sua crucifixão se apresenta como um desafio inquietante para os seguidores de Jesus. Não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes; Ele sofre nos seus filhos e filhas.

Deus não está de acordo com a Cruz, mas está a favor do Crucificado. Na Cruz de Jesus se revela, ao mesmo tempo, o que Deus não quer (o sofrimento das vítimas) e o que Deus quer: a vida e a felicidade para todos, o entendimento e a reconciliação entre as pessoas e os povos, o trabalho por um mundo mais justo, no qual seja possível a vida para todos os filhos e filhas d’Ele.

Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, foi a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão foi expressão de uma opção, assumida fielmente por Ele até o fim.

A segunda paixão foi a da cruz (patíbulo), imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não foi fruto da opção de Jesus e nem fazia parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada pelo mesmo Jesus.

Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morreu na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional ao Pai e o compromisso com os excluídos.

No grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império; de outro, significa prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não foi um evento, mas um modo de viver, pois perpassou toda a vida de Jesus. 

“Cruz-staurós” foi vivida a partir de uma causa: o Reino.

Nesse sentido, a cruz de Jesus não foi um “peso morto” a ser suportado; ela foi consequência de uma opção radical em favor da vida; a cruz não significou passividade e resignação, pois ela brotou de uma vida plena e transbordante. Nesse sentido, a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir. A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11, 28-30). Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.

Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode

encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus também acolheu e integrou a “cruz patíbulo”, dando um sentido a ela e revelando sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, na Cruz assumida o Crucificado se fez amigo dos crucificados.

Cruz assumida por Jesus manifestou-se “expansiva” porque foi expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projetou para a “margem” onde Ele revelou uma presença despojada, vulnerável, que se identificou com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifestou que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele” a dor de seus filhos e filhas.

Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.

São cruzes que nós mesmos colocamos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas nos fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus, que leva a Cruz da fidelidade, nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.

A festa da “exaltação da Santa Cruz” nos faz “descer” com Jesus até à cruz da humanidade. A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, o compromisso com a vida e com a causa do Reino, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.

Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.

É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, inspirados no Crucificado, consomem suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com suas presenças ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas sem brilho algum, sem vozes que as proclamem; são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer; pessoas solidárias que ajudam a carregar as cruzes de tantos que são rejeitados, incompreendidos, odiados, perseguidos...; pessoas que visibilizam a Cruz da fidelidade de Jesus.


 Reflexões Evangélicas: A OBRA REDENTORA DE JESUS CRISTO


Texto bíblico:  Evangelho segundo João 3,13-17

 

Na oração: 

Associar-se ao Crucificado em sua “descida” para “subir” com Ele significa, também, arrancar do próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte e deixar-se possuir pela glória de Deus.

- Quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplarmos mais atentamente, logo descobriremos, nesse Rosto, o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, reclamando nosso amor solidário e compassivo.

- Diante do Crucificado, trazer à memória os crucificados de hoje: isto o afeta? o deixa inquieto? O incomoda?

sábado, 6 de setembro de 2025

Renúncias que nos humanizam

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 23º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Qualquer um se vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33)

 

Novamente nos encontramos com um texto que faz parte da grande viagem de Jesus a Jerusalém. Acompanham-lhe seus discípulos e grande multidão, realizando um caminho como uma grande catequese itinerante. 

Ao longo deste percurso, Jesus vai indicando novas exigências que vão modelando o estilo de vida de quem decide seguir seus passos. Jesus já é percebido como um grande líder que se faz “palavra” para transformar interiormente os seus ouvintes e seguidores. Não é uma palavra neutra, às vezes gera conflito, mas sim respeitosa; não impõe normas, mas sim propõe como situar-se frente os diferentes campos da existência humana. Vai crescendo a oposição entre aqueles que são questionados em sua maneira de viver e, especialmente, entre aqueles que vivem apegados ao poder e às riquezas: fariseus, mestres da lei e outros setores opressores.

Uma das interpretações equivocadas deste radicalismo é entender a mensagem de Jesus como que dirigida a um grupo privilegiado, que seriam os cristãos de primeira linha. Jesus não se dirige a uns poucos, mas à multidão que o acompanhava. No entanto, o seu apelo é dirigido a cada um pessoalmente: “se alguém vem a mim...” A resposta deve ser pessoal e adulta.

Para a primeira exigência a chave está na frase: “... inclusive da sua própria vida”. O amor a si mesmo pode ser nefasto quando se refere ao falso eu que desemboca no egoísmo. Esse falso eu também tem seu pai, sua mãe, seus filhos e irmãos. 

O ego busca “os primeiros lugares”, sonha destacar-se, ser visto, sentir-se reconhecido; ama o aplauso e os gestos de admiração; encanta-se com roupas especiais e sinais distintivos de seu valor (títulos); quer sempre ter razão e impor-se aos outros...Frente a esta tendência, a palavra de Jesus não é só uma “receita”; Ele vai à raiz: o que Ele pede é o esvaziamento do ego com seus interesses e parentes; apoiando nossa existência no falso eu, falseamos toda nossa vida e a frustramos.

Aqui não se trata de uma rejeição da família, mas de considerá-la a partir de outra perspectiva, mais ampla e rica: nosso olhar e nosso coração centrado na pessoa de Jesus.

Também não se trata de comparar o amor a Deus e o amor aos membros de nossa família. O seguimento não é incompatível com o amor à família. Seguir Jesus implica um amor que vai mais além de um amor que nasce do sentimento familiar, mas não estará nunca contra. Seguir Jesus nos ensinará a amar mais e melhor também nossos familiares.

seguimento de Jesus não pode consistir numa simples renúncia, ou seja, algo negativo, mas eleger o melhor para nós. Trata-se de uma oferta de plenitude. 

É neste contexto que aflora uma compreensão mais profunda da expressão “carregar a sua cruz”.

Nós cristãos temos esvaziado a Cruz de seu verdadeiro significado. Há alguns que pensam que “carregar a cruz” é buscar pequenas mortificações, privando-se de satisfações para chegar – pelo sofrimento – a uma comunhão mais profunda com Cristo. Mas Jesus quando fala da Cruz não está convidando a uma “vida mortificada”. Para outros, “carregar a cruz” é aceitar passivamente as contrariedades da vida, as desgraças ou adversidades. Mas a Cruz é consequência de uma opção pelo Reino em favor dos últimos.

 “Carregar a sua cruz”, portanto, significa acolher aquilo que diariamente cruza o nosso caminho; é acolher-nos com todas as nossas contradições.

“Tomar a sua cruz” significa abraçar-nos com todas as forças e todas as fraquezas: os aspectos saudáveis e os doentios, as qualidades vistosas e os defeitos, as dimensões imaculadas e as manchadas, os sucessos e os fracassos, as coisas vividas e as coisas perdidas, o consciente e o inconsciente... 

Se nos sacrificamos, para estar ao lado daquele que sofre, é para tirá-lo de seu sofrimento, mesmo que seja só para consolá-lo e acompanhá-lo. Nunca é sofrimento buscado, mas uma dor ou privação que brota do amor. Jon Sobrino afirma que “só podemos crer no crucificado se estivermos dispostos a tirar da Cruz aqueles que estão dependurados nela”.

As imagens que Jesus utiliza – desapegar-se de seu pai, mãe, mulher e filhos... e carregar a cruz – apontam para a radicalidade da entrega da vida, que se faz cada vez mais oblativa, aberta e comprometida; nesta entrega, deixamos transparecer nossa essência, aquilo que realmente somos.

Não se trata, portanto, de dolorismo, nem de renúncia voluntarista: ambas atitudes costumam inflar o ego.

Trata-se, uma vez mais, de compreensão e coerência. Como quero viver? Para o ego e seus interesses ou ancorado em minha verdadeira identidade, que está em profunda união com a Vida?

O cristão não ama e nem busca o sofrimento; não o quer nem para os outros e nem para si mesmo. Seguindo os passos de Jesus, luta com todas suas forças para arrancar o sofrimento do coração da existência. Mas, quando é inevitável, sabe “levar a Cruz” em comunhão com o Crucificado.

Carregar a cruz não é ir pelo mundo arrastando os pesares da vida a partir de uma resignação paralisante, mas a partir de uma acolhida consciente de tudo o que constitui nossa própria vida: consolação e desolação, vitórias e fracassos, avanços e recuos, plenitude e atrofia existencial...  amarga. Saber integrar aquilo que humanamente é frustrante nos impulsiona a uma transformação e avanço na vida. Quando não enfrentamos passos a viver submetidos e nos situamos como vítimas. A resignação nos ata, nos bloqueia; a aceitação nos mobiliza para buscar outras opções e não nos desviar de nossa rota essencial.

Cruz que devemos levar atrás de Jesus é a mesma que Ele levou: a Cruz como consequência da fidelidade até o final. A Cruz nunca será um fim nem uma meta. Nem sequer um meio para algo. A Cruz de Jesus e daquele que o segue, sempre é consequência de coerências e de fidelidades ao Evangelho.

É neste horizonte de fidelidade até o fim no seguimento que Jesus apresenta duas pequenas parábolas: a construção de uma torre e o rei que vai fazer uma guerra.

Com a imagem da construção da Torre, Jesus nos convida a descobrir o prazer de construir nossa própria vida no seu Seguimento, sem nos fixar em imagens falsas do nosso eu, mas sim na imagem interior que Deus tem de cada um de nós. Isso acontece quando desperdiçamos toda nossa energia na luta contra nós mesmos e contra aparentes erros e fraquezas. A força que desperdiçamos vai fazer falta para avançar na vida.

É comum iludir-nos com facilidade e lançar-nos rapidamente a qualquer empresa; também é comum que, com a mesma rapidez, abandonemos o empreendimento assumido e fracassamos. Tínhamos calculado mal nosso empenho ou nossa motivação. A isso se refere o dito popular que se aplica à pessoa que começa com força, mas que rapidamente empaca: tem “arrancada de cavalo e ritmo lento de burro”.

Que faltou aí? Provavelmente faltou realismo: o desejo e a motivação foram grandes, mas as condições e os meios necessários não foram suficientes. Tem mais força os medos do ego que fazem a pessoa girar em torno a si mesma. São os chamados “fervores indiscretos” (não discernido) ou “fogo de palha”, sem consistência; ou “ideais exagerados”, mas sem consistência real.

Discernimento, honestidade, coerência e profundidade: quatro pilares de nossa vida cristã no caminho do seguimento e da identificação com Jesus Cristo. 

Macaco - Buenos tiempos para un pinchazito))) Egos obesos, corazones  anorexicos))))) Ego-Land))))) 🐒📡🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫🔫 | Facebook

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 14,25-33

 

Na oração: 

A pessoa se define por suas decisões; elas marcam a meta.

É verdade que as decisões na vida são para as grandes ocasiões. Mas também o são para as pequenas.

O exercício constante da arte de decidir tem muita importância, não só pela extensão diária de suas oportunidades como também isto constitui a melhor preparação para o momento das “grandes viradas”. As pequenas decisões diárias são a trama mesma da vida, o clima da alma e a têmpera do espírito; elas definem, momento a momento, a atitude interna e criam o estado permanenteque define a arte de viver, que é a arte de decidir.

- Suas decisões (pequenas e grandes) são tomadas pela emoção, pela pressão..., ou são frutos de um discernimento, à luz da ação do Espírito?

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A sedução dos primeiros lugares

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 22º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz!”

Com sua presença provocativa numa refeição, “na casa de um dos chefes dos fariseus”, Jesus denuncia um “pecado de raiz” que, em grau maior ou menor, está presente em todos nós: a vaidade.

“A vaidade é a osteoporose da alma”, afirmou o Papa Francisco; os ossos parecem bons, a partir de fora; mas, por dentro estão todos corroídos. A vaidade nos infla, nos engana, mas não tem longa vida, porque é como uma bolha de sabão.

Este “pecado de raiz” se visibiliza na busca pelos “lugares” de destaque, de prestígio, de honra... A busca dos primeiros lugares se enraíza numa profunda carência pessoal: a necessidade de se sentir reconhecido. A isso se somam outras necessidades como a de “ser visto”, “ser único” ou “ser especial”. A vaidade é mascarar a própria vida para aparecer, para fingir, para impressionar...

No evangelho deste domingo, Jesus desmascara a cultura da aparência e da vaidade; no fundo, Jesus desvela a cultura da superficialidade, da mentira e da falsidade existencial. Para a chamada “cultura da imagem” parece que tudo vale, contanto que a imagem pessoal saia beneficiada.

O ego busca autoafirmar-se porque unicamente desse modo pode sentir-se “existente”. Entre os modos de autoafirmação se destacam aquela que podemos considerar como pulsão básica: aparecer, chamar atenção sobre si, ser reconhecido... Como se torna impossível fundamentar-se em si mesmo, de uma maneira sadia, devido à sua natureza vazia, precisa “roubar energia” para alimentar-se. Trata-se, portanto, de um parasita que vive do que é tirado dos outros: o elogio, o reconhecimento, a bajulação...

O resultado de tudo esse processo, na medida em que a pessoa se deixa enredar por ele, é um ego escravo da vaidade e da busca de prestígio. Escravidão que corre de mãos dadas com a ignorância acerca daquilo que realmente a pessoa é. O ego se move sempre a partir de suas necessidades e seus medos, que são os que lhe dão uma sensação de existir; e a pessoa egóica cada vez se sente mais frustrada e desconectada de quem verdadeiramente ela é.

As tradições sapienciais sempre insistiram no cultivo de atitudes alternativas, como fica destacado com força na mensagem do próprio Jesus. Este é o caminho da sabedoria e da libertação do sofrimento. E só o crescimento nesta consciência tornará possível a transformação pessoal e coletiva.

A plenitude humana se revela naquilo que a pessoa é, a sua essência, e não naquilo que aparenta. Uma pessoa, vazia de ego, tem acesso à verdadeira sabedoria e deixa transparecer uma profunda gratidão pelo simples fato de existir. Só quando tem acesso à sua verdadeira identidade, a pessoa será transformada e poderá viver numa atitude de gratuidade e gratidão.

E assim, descentrada de si mesma, vive uma atitude de acolhida e partilha na relação com os outros; a gratuidade só pode ser vivida quando a identificação com o ego farisaico cai. Então emerge uma nova consciência na qual os outros são percebidos como “parte” de si mesmo; partilhar com os outros é doar-se a si mesmo; causar dano aos outros é danificar a si mesmo.

Podemos imaginar a expressão de susto e surpresa daquele fariseu que convidara Jesus à sua mesa. É que Jesus tem sempre algo “novo” que rompe com “o de sempre”. Contra todo formalismo auto-centrado, a Jesus lhe ocorre dizer ao fariseu: “Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir”.

A “novidade” da Boa Notícia de Jesus vai sempre contra os “velhos costumes” do “eu te convido para que me convides” (e, se possível, com juros). À lei da “reciprocidade comercial” Jesus contrapõe a “generosidade gratuita”.

Para Jesus, adquire a verdadeira honra quem não se exalta a si mesmo sobre os outro, mas quem “desce” voluntariamente, colocando-se juntos aos últimos e servindo-os. A generosidade é compartilhada com os pobres que não podem pagar com a mesma moeda, porque não tem nada. Honra e vergonha adquirem, na boca de Jesus, um conteúdo diferente: a honra consiste em servir ocupando os últimos lugares e isto não é motivo de vergonha, mas sinal verdadeiro de quem já está dentro do grupo dos verdadeiros seguidores do próprio Jesus que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em favor de muitos”.

Jesus nos convida e nos deslocar para o “último lugar”, pois Ele se fez “último”; Ele entrou na história a partir de baixo, dos últimos, dos excluídos, e não pelo lugar do poder, da riqueza, da força...

As grandes mudanças e transformações, em todos os níveis da condição humana, começam por baixo. Não há mudança que vem de cima.

Poderíamos dizer que a denúncia de Jesus, junto à mesa de quem o convidara, alarga o sentido da amizade.

O Para Francisco fala da “amizade social” e colocou esta expressão no centro da encíclica “Fratelli Tutti”; tal expressão pode parecer algo estranha, e por isso reagimos com surpresa. Todos nós estamos acostumados a utilizar a “amizade” como atributo pessoal e privado; para falar das relações na sociedade, recorremos a termos mais amplos como respeito, solidariedade, civismo, cidadania, etc. Reservamos a palavra “amizade” ao círculo íntimo de nossos afetos.

Vivemos um contexto social e religioso onde nos sentimos mais distantes e sozinhos, mais desarticulados e vulneráveis, limitados à condição de espectadores e consumidores; a globalização nos fez vizinhos, mas não irmãos. Claramente, nossas sociedades mostram dificuldades para se constituírem como um projeto que abarque a todos. Obviamente, não nos sentimos companheiros no mesmo barco e inquilinos da mesma casa comum. São inumeráveis os excluídos da mesa da refeição.

A “amizade social” é uma tentativa de reverter esta situação. Seu ponto de partida é o reconhecimento básico do que vale um ser humano, sempre e em qualquer circunstância, considerando-o precioso e digno de todo cuidado. Só exercendo esta visão da vida, realizaremos uma fraternidade aberta a todos. No entanto, para isso precisamos cruzar as cômodas fronteiras que nos separam.

O desafio é “ir mais além”, tomando consciência, por exemplo, de que a amizade não é um clube exclusivo, mas uma escola onde ativamos habilidades para serem aplicadas universalmente. Os amigos que só se ocupam de seus amigos reduzem o horizonte da amizade. E, da mesma maneira, quando as famílias só se preocupam pelo bem-estar dos seus, e esgotam sua responsabilidade neles, algo decisivo fica por fazer.

A experiência da amizade e do amor deve servir para abrir o coração àqueles que estão excluídos, fazendo-nos sensíveis a esta realidade, envolvendo-nos numa atitude ética de acolhida, dotando-nos de generosidade para sair de nós mesmos e cuidar de todos. Não existimos em um vazio, mas em um contexto amplo e diferente de relações das quais somos corresponsáveis.

Nesse sentido, viver o seguimento de Jesus implica em “sair do próprio amor, querer e interesse” (Santo Inácio de Loyola) e abrir-nos ao encontro com o outro, sobretudo o “outro” que é vítima de estruturas sociais e políticas injustas, que é excluído, que é marginalizado. “Converter-nos” ao Deus da Vida é “converter-nos” ao compro-misso com os prediletos d’Ele, os mais pobres e sofredores; é abrir nossas casas e oferecer nossas mesas.

Fazer caminho com Jesus desperta em nós uma profunda sensibilidade que nos impulsiona a uma presença inspiradora naqueles “lugares” onde já está presente Aquele que continuamente se desloca para o mais baixo, para que nenhuma pessoa, para que nenhuma situação humana, fique fora do “movimento de vida” e de “retorno” de tudo para o Pai.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 14,1.7-14

Na oração:

É na espiritualidade da mesa e da refeição que nós cristãos, devemos alimentar a nossa espiritualidade cotidiana. Mas, para isso, precisamos resgatar a mesa como espaço do sagrado, do encontro com o outro e conosco mesmo.

É urgente sermos criativos o suficiente para superarmos os desafios, na esperança de que venha o despertar da nova mesa, com gosto de pão, de vida fraterna, de compromisso.

Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.

- Quê lugar tem a mesa da refeição no cotidiano de sua vida familiar, comunitária, eclesial...?

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Porta aberta: travessia para o inesperado

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 21º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Esforçai-vos por entrar pela porta estreita...” (Lc 13,24) 

Jesus está a caminho de Jerusalém, onde também pretende fazer chegar a Boa Notícia do Reino. Nesse percurso, o evangelista Lucas recolhe uma série de afirmações do Mestre que tem como objetivo instruir os discípulos e a nós sobre o seu seguimento.

Mais uma vez estamos diante de uma pergunta curiosa apresentada por alguém da multidão que o seguia: “é verdade que são poucos os que se salvam?” Jesus não responde diretamente à questão pois a salvação não significa um voluntarismo para cruzar a linha de chegada na vida; ela é dom de Deus, que desperta em nós o desejo de entrar no fluxo da sua Graça, esvaziando-nos do “ego” e abrindo-nos a uma atitude de serviço oblativo e gratuito.

Jesus não está preocupado com a quantidade dos que se salvarão, nem dá resposta à pergunta pela salvação final. Pelo contrário, faz um sério apelo a praticar a justiça no momento presente. Muda, assim, a direção da resposta esperada acerca do futuro para centrar-se no chamado a viver o presente com mais sentido e intensidade. A salvação não é simplesmente uma realidade do futuro, mas está conectada com as atitudes assumidas no presente, ou seja, é consequência de uma prática da justiça. O decisivo não é o futuro, que está nas mãos de Deus, mas o presente das ações justas ou injustas.

Jesus usa a imagem da “porta” para falar dessa passagem de uma vida limitada e auto-centrada, a uma vida expansiva, aberta à realidade. Porta que possibilita “entrar” na vida; dom em plenitude.

Na realidade, há uma tendência em todos nós de vivermos trancados em nossos mundos limitados; criamos e vivemos em “mundos-bolha”. Qual é o problema deste mundo-bolha? Porque questionar se alguém está tranquilo, comodamente instalado em suas seguranças, rodeado de um universo familiar e não ameaçante? Porque este afã por romper a bolha?

É difícil sair do terreno conhecido. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Portas são trancadas em todas as dimensões da vida: afetiva, social, religiosa, política... Podemos construir uma vida encapsulada em espaços feitos de hábitos e seguranças, situações estáveis, convivendo com pessoas que pensam e vivem do mesmo modo...; podemos ancorar-nos em três ou quatro seguranças que nos permitem viver sem sair de terrenos conhecidos.

Com isso, acabamos estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isto acontece, terminamos tendo perspectivas pequenas, visões incompletas, horizontes atrofiados e, provavelmente, ignorância sobre um mundo amplo, complexo e cheio de ricas possibilidades.

Em outras palavras: colocamos “portas” intelectuais e espirituais à audácia do amor. Falta-nos fé nas maravilhas do Espírito. Essa atitude de sair por nossas portas em direção à necessidade alheia com criatividade é a essência do Seguimento.

O tema da “porta” é mencionado muitas vezes pelos evangelistas para indicar uma passagem significativa ou a entrada em uma nova maneira de viver. O próprio Jesus se definiu como a “Porta da Vida”; Ele não veio complicar a vida com mais exigências. Só passa pela “porta estreita” quem se esvazia do próprio ego. Bater à porta significa desejo de entrar na intimidade; abri-la é sinal de acolhida e fechá-la é dizer não a quem se aproxima.

De fato, o símbolo da “porta” não se define em si como um espaço, não é um lugar, mas é o “limite” entre um lugar e outro, é o interstício entre dois espaços; é, portanto, o que divide dois modos de ser e viver: egóico ou oblativo.

A “porta” representa o lugar onde acontece a passagem de um estado a outro, a dobradiça entre dois mundos... ; a “porta” protege o sagrado, esconde o mistério...; tem o seu momento “fascinante”, mas comporta também um “tremendum”; ela nos situa num momento de ansiedade, de espera, de inquietação  que toda passagem de um estado a outro provoca; esta preocupação com o que está “além da porta”, ou seja, a passagem de uma situação que se conhece a uma outra que se revela inédita, mas na qual se desejaria entrar, provoca medo e insegurança.

O que está além da porta provoca arrepios; “passar a porta” significa, portanto, ir ao encontro do novo, do futuro, do diferente, do “fora do normal” ...

O “outro lado” é um espaço não esclarecido, é um lugar ainda não explorado.

Há um véu que impede a visão, é o lugar da inacessibilidade, comporta a proibição de se aproximar da “sarça ardente”. “O homem não pode ver a face de Deus e continuar vivendo”, diz a Bíblia.

Está cada vez mais difícil encontrar algo que soa verdadeiramente diferente: sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...

É decisivo estarmos dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer.

A vida está cheia de possibilidades; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar... lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...

Portanto, a primeira atitude é sair do “ego” (“sair do seu próprio amor, querer e interesse” – S. Inácio).

E isso significa desconstruir nossa linguagem, nossa presença, nossas seguranças, nosso solo nutrício; deixar-nos romper, abrir-nos aos outros e ao grande Outro; não sermos nós o centro do processo a partir de nossas seguranças e daquilo que conhecemos.

“Vivo já fora de mim, porque vivo no Senhor que me quis para si” (S. Teresa de Ávila).

O compromisso é “viver fora de mim”. E “viver fora de mim” implica estar aberto ao inesperado, ao surpreendente, ao desconcertante.

“Dá-me, Senhor, capacidade e valentia para deixar o terreno conhecido, para sair do já sabido, para aprender cada dia aquilo que possa se tornar novidade, surpreendente, diferente” (oração Magis)

A “porta estreita” que atravessamos representa a nossa porta pessoal, que precisamos encontrar e atravessar, para deixar o rastro da nossa própria vida neste mundo. O caminho espaçoso representa o que todos usam; o apertado é o caminho que Deus preparou para cada um de nós: é o caminho único e original, no qual vivemos e deixamos transparecer a imagem que Ele tem de cada um de nós.

Na verdade, o caminho estreito leva a um horizonte mais amplo. Nele, alcançamos a harmonia conosco. Aquele que se contenta em seguir os outros não vive de verdade. Nosso processo de humanização só pode ser completado se encontrarmos nosso caminho pessoal e percorrermos por ele.

John Sanford afirma: “O caminho largo é aquele da vida que seguimos de forma inconsciente, é o caminho da menor resistência e da identificação com as massas. O estreito exige consciência e atenção desperta se não quisermos nos desviar do caminho”.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 13,22-30

Na oração:

A experiência de oração é um risco, é uma travessia para um outro “lugar” e deixar-se afetar por este “outro lugar”: lugar provocativo, carregado de uma Presença que chama, que fala, que envia...

“Passar a porta” revela que em toda experiência de oração está implícita a ideia de uma “soleira”, de um “limiar e, portanto, um momento de “passagem”. Não se pode estar “dentro” e “fora” ao mesmo tempo; não se pode ser mero observador na experiência de oração: ou se fica fora da porta, ou se dá o passo que “desinstala”, que “compromete”, que “vincula”.

- Atravesse a “porta” de sua interioridade e viva a intimidade com Aquele que está sempre à sua espera; entre em diálogo com Ele.

sábado, 16 de agosto de 2025

Maria, a mulher dos olhos contemplativos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria.

“...porque Ele olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1,48)

 

dogma da Assunção afirma que Maria, mãe de Jesus, “subiu ao céu como mulher plena”. 

A festa da Assunção nos revela que em Maria realiza-se a situação final, situação prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade de toda a sua vida.

Maria foi “assunta ao céu” porque “levantou-se apressadamente” em direção ao serviço; ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos e marginalizados. Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”; foi “assunta ao céu” porque sempre foi “olhada” por Deus, que a engrandeceu plenamente. 

“Alegra-se meu espírito em Deus meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva”, canta Maria no seu “Magnificat”, reconhecendo que nesse olhar divino está a fonte de seu júbilo: Deus se inclinou para ela, a envolveu em sua ternura e a inundou de graça. E Maria, ao sentir-se assim olhada, se alegra até às raízes mais profundas de seu ser. 

Mas, sem deter-se aí, dirige seus olhos para onde Deus sempre olha, e contempla a história com o mesmo olhar na qual se sentiu envolvida. Aproxima-se da “janela” da realidade com olhos novos, com um realismo consciente da fragilidade das pessoas e da dureza da vida: há famintos, pobres e humilhados; há ambições e poderes opressores que são a causa da tanta miséria e violência. 

Maria não se deixa enganar pelas aparências, pois revela-se capaz de perfurar a realidade e ver as coisas, as pessoas e as relações tal como Deus as vê. Por isso, adianta-se a contemplar os famintos já saciados, os humildes e abatidos já exaltados e os ricos e poderosos despedidos de mãos vazias.

Porque “sentiu-se olhada amorosamente por Deus” Maria se revela com olhos contemplativos; brilham neles traços de ternura, de compreensão e amor compassivo, que atraem como imã. São olhos que expressam amor, proximidade, sensibilidade, interesse pela realidade. É o olhar da pessoa próxima que se “põe na pele do outro”, o olhar da pessoa que se deixa afetar.

Podemos dizer que Maria tem “olhos oblativos”, comprometidos. “Faz-te olhar”, recomenda Rumi, o místico sufi do século XIII, com sua costumeira simplicidade e determinação.

Maria tem os olhos grandes da mulher contemplativa; olhos abertos e serenos, voltados para o mistério interior e exterior. Tudo cabe sob o amparo desta fonte cálida.

Há um adágio latino que diz: “ubi amor, ibi oculus”. “Onde há amor, ali está o olhar”. O amor direciona o olhar, a atenção e o cuidado para aquilo que se ama. E onde está o olhar, o amor passa do coração aos pés e às mãos. O amor vê o que os olhos não veem. O amor vê o que os egoístas não veem. O amor vê e não pensa duas vezes. O amor não espera chamadas. 

Não basta ver as coisas a partir de longe; nem basta saber que os outros precisam de ajuda; não basta saber que os outros estão sós e necessitados. 

Na Bíblia, “pôr os olhos” é “pôr o coração”. Maria põe seu coração em toda a realidade, em todos os homens e mulheres, seus filhos e filhas; Maria, a contemplativa, é a mulher mística “de olhos abertos”, tocando a terra; assim é a genuína fé cristã, bem enraizada sempre na realidade.

Assim é Maria, revelada pelos evangelhos: uma mulher que se “deixa afetar”, de olhar contemplativo e estremecida de júbilo em Deus, em pé e mobilizada, uma mulher que bendiz e se põe a serviço.

É assim que a encontramos na casa de Isabel, na sua visitação e estadia como servidora.

Maria é a mulher contemplativa, mulher aberta e atenta a Deus e à realidade, ou melhor, a Deus-na-realidade. São olhos de uma mulher mística e profetisa: mística, ou seja, capaz de ver a Deus em tudo e tudo em Deus (“a minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador”); e profetisa, capaz de ver tudo com os “olhos” de Deus; olhos que proclamam as maravilhadas e que denunciam as mazelas daqueles que são ambiciosos e rompem a comunhão.

No Magníficat de Maria encontramos uma mulher lúcida, comprometida com a história de seu povo, crítica da ordem estabelecida, na linha dos profetas de Israel.

No Evangelho deste domingo, Maria revela-se disposta, pronta a empreender o caminho em direção à casa de sua prima; inteira em sua atenção profunda e aberta para a ação. É a mulher que “se pôs a caminho e foi às pressas à montanha, a uma cidade de Judá”;

Em Maria vemos uma pessoa de pé, pronta, mobilizada, com talante, capaz de olhar com o coração, deixando-se afetar pela realidade, vivendo a alegria de crer e fazendo de sua vida uma benção.

Como mulher “resolvida”, Maria é transparência de Deus. Nela vemos que “o que é próprio de Deus” não é prioritariamente um assunto de doutrina nem de moral, mas um assunto de “entranhas”, de vida.

Porque experimentou a Deus como fonte de vida, ela explodiu em louvor, mostrando que a fonte da alegria só a encontramos no Deus da Vida: esse é seu canto. Ela também, como Jesus, nos comunica algo extraordinário: o verdadeiramente humano é transparência de Deus.

Contra certas imagens de Maria que predominaram e predominam no imaginário cristão, o evangelho nos revela uma mulher decidida, segura de si e, ao mesmo tempo, voltada para os demais. Tinha olhar atento, inclusive “perscrutador”, para inteirar-se do que acontecia ao seu redor, não para alimentar curiosidade, mas para colocar-se à disposição; seu olhar oblativo parte do movimento interior, despertado pelo seu “sim” a Deus; daí brota sua “responsabilidade” como colaboradora: Maria é a mulher “responsável”, a partir de sua autonomia e seu serviço.

Para viver a fidelidade autêntica ao Evangelho, precisamos ser, como Maria, místicos e profetas: capazes de ver a Deus em toda realidade e de ver toda a realidade com os olhos de Deus. Precisamos, em definitiva, sentir-nos entranhavelmente amados(as) e benditos(as), para poder fazer de nossa vida uma benção, para nós mesmos(as) e para os outros. Precisamos sentir o que Maria experimentou: “Deus olhou com bondade minha pequenez”; em nossa “pequenez” Deus continua realizando maravilhas e nos olha (“põe seu coração em nós”), sempre e incondicionalmente, com bondade e misericórdia, querendo só nosso bem. 

Este é o Seu desejo para todos nós: que sejamos pessoas a caminho da completude e plenitude humana: em Deus, já somos “assuntos(as), ou seja, pura transparência d’Ele.

Assim, o mistério da Assunção de Maria torna-se uma inspirada referência para aclarar melhor o mistério de cada um de nós. Porque em Maria se encontra realizado aquilo que todos aspiramos: viver no fluxo da santidade divina; todos aspiramos a uma plenitude que, saibamos ou não, só Deus pode saciar. 

Maria, “cheia de graça”, “cheia de Deus”, é a realização plena de todas as nossas aspirações.

Por outra parte, além de uma vida plena, todos aspiramos a uma vida duradoura. Vida plena que permaneça, vida cheia de Deus e eterna. Na Assunção de Maria se realiza esta outra grande aspiração humana: viver para sempre, unidos(as) a Deus, fonte de toda vida. E viver com toda nossa realidade, plenificada em todas as suas dimensões. O pensador Kierkegaard afirmou que quando o ser humano ignora o eterno que há nele, sente o vazio, a angústia e o desespero.

Maria, na plenitude, é o referente do qual todos almejamos: que nada nos falte, que todos os aspectos e dimensões de nossa vida estejam plenificadas e saciadas. É este o significado do dom da salvação, oferecida por Aquele que a todos nos eleva. A salvação é um projeto de vida feliz, estável e completa, no qual todos os nossos desejos estão plenamente saciados. Isso é o que, com outras palavras, o dogma da Assunção diz de Maria. Essa é a esperança cristã. Por isso, Maria é transparência de nosso próprio mistério.

Solenidade da Assunção da Virgem Maria ao Céu – Paróquia Coração de Maria

 

Texto bíblicoEvangelho segundo Lucas 1,39-56

 

Na oração: 

Ao longo da oração peça que as palavras de louvor e de libertação cantadas por Maria penetrem no seu coração e deixem bro-tar frutos de conversão, de alegria e de gratidão; peça especialmente a graça de cantar com um cora-ção transbordante de júbilo, pela salvação recebi-da. Peça também que as palavras do Magnificat transformem seus valores, suas atitudes e suas prá-ticas na linha da justiça e da misericórdia do Evan-gelho do Reino, proclamado por Jesus e antecipado no cântico de sua mãe.

- Rezar as “marcas salvíficas” de Deus na sua própria história pessoal.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Buscar o tesouro que somos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 19º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Porque onde está o vosso tesouro, aí também estará o vosso coração” (Lc 12,34)

Lucas conservou em seu evangelho algumas expressões, cheias de afeto e carinho, dirigidas por Jesus a seus seguidores e seguidoras. Com frequência, costumam passar desapercebidas. No entanto, lidas hoje a partir de nossas comunidades cristãs, elas revelam uma surpreendente atualidade. É o que precisamos escutar de Jesus nestes tempos difíceis para a vivência do seu seguimento.

“Não tenhais medo, pequenino rebanho” é uma destas expressões. Jesus olha seu pequeno grupo de seguidores com imensa ternura. São poucos; têm vocação de minoria; não devem pensar em grandezas. Assim Jesus os imagina sempre: como um pouco de “fermento” oculto na massa, uma pequena “luz” em meio à obscuridade, uma pitada de “sal” para dar sabor à vida.

Como discípulos de Jesus devemos aprender a viver em minoria. É um erro fomentar uma Igreja poderosa e forte; é um engano buscar poder mundano ou pretender dominar a sociedade. O Evangelho não se impõe pela força; ele deve ser contagiado por aqueles que vivem ao estilo de Jesus, tornando a vida mais humana.

“Vendei vossos bens e deis esmola”. Os seguidores de Jesus são um pequeno rebanho, mas nunca devem se constituir como uma seita fechada em seus próprios interesses; não devem viver de costas às necessidades de ninguém. Serão comunidades de portas abertas; compartirão seus bens com aqueles que mais precisam de ajuda e solidariedade; darão esmola, ou seja, viverão a “misericórdia”.

O relato deste domingo prossegue com uma forte expressão: “foi do agrado do Pai dar a vós o Reino”. Sem esta consciência de que somos portadores deste dom de Deus é quase impossível situar-nos na confiança e no compromisso com tudo o que ele supõe.

O Deus de Jesus é dom total, incondicional e permanente. Jesus recorda isso com frequência; seus seguidores não devem sentir-se órfãos, pois tem a Deus como Pai. Ele nos confiou seu projeto do Reino; é um grande “tesouro”, o melhor que temos em nossas comunidades: a missão de tornar a vida mais humana e a esperança de encaminhar a história para sua plenitude salvífica. Este é o “tesouro” que nos dignifica e nos convoca à responsabilidade de fazê-lo chegar aos outros.

Os grandes sábios da humanidade sempre utilizaram a imagem do “tesouro escondido” para revelar a compreensão – encontro – de nossa verdadeira identidade. Falaram também da urgência de despertar do sonho no qual estamos adormecidos e de recordar nossa verdade esquecida.

Jesus também, com grande sabedoria, revela o sentido de nossa vida: buscar, nas profundezas de nosso ser, o tesouro que nos plenifica.

Todo ser humano aspira e busca esse tesouro. De fato, é esse desejo que nos move, nos faz iniciar a busca e percorrer diferentes caminhos, atraídos sempre por seu sentido de plenitude.

No entanto, nessa busca pode acontecer de tudo: nos distraímos e terminamos enredados; nos conformamos com pequenas “bijuterias” e esquecemos o tesouro real; calamos a voz do desejo, entupindo-nos com múltiplos ruídos; dizemos a nós mesmos que o desejo é impossível de ser realizado e que é necessário sermos “práticos” e não vivermos de “contos” ilusórios...; não é fácil superar a armadilha que nos incita a buscar o tesouro em “algo” fora, longe ou no futuro. Começamos a crer que a plenitude de vida se encontra fora de nós e aí começamos a corrida que não conduz a lugar nenhum.

O tesouro é o Deus mesmo presente em cada um de nós. É a verdadeira realidade que somos.

O Reino, que é Deus, está em nós (“O Reino está dentro de vós”, disse Jesus). Essa presença é o valor supremo. Quem encontra seu tesouro, não despreza outros valores.

Deus não se contrapõe a nenhum valor, senão que potencia o valor de tudo o que é bom.

O que há de Deus em nós é o fundamento de todos os outros valores. Ter acesso ao nosso “eu” mais profundo significa “buscar e encontrar a Deus” exatamente em nossas paixões, em nossos traumas, em nossas feridas, em nossos instintos, em nossa impotência e fragilidade... Ali podemos nos interrogar o que é que Deus deseja nos revelar por meio deles e, como justamente através deles, Ele deseja nos conduzir ao tesouro no chão de nossa vida, à essência que nos dignifica.

O tesouro significa o “investimento” que Deus fez em cada ser humano; por isso, cada um é único e original, com potencialidades especiais e recursos oblativos.

O tesouro não é algo acidental que podemos ter ou não ter; é nossa essência. Não é fruto de uma descoberta racional, mas de uma experiência profunda e viva.

O tesouro sempre está aí, nas profundezas de nosso ser, mas nem sempre somos capazes de reconhecê-lo.

 Não se trata de conquistá-lo, mas simplesmente de descobri-lo. É despertar-nos para aquilo que realmente somos: o que é mais nobre, mais profundo, o que dá sentido e valor à vida.

Na verdade, o tesouro está escondido, porque perdemos o caminho do interior e vivemos na superfície de nós mesmos; é preciso “descer” para redescobri-lo. Não se trata de confiar naquilo que nós podemos alcançar, mas naquilo que Deus já nos deu (Reino). Deus foi o primeiro que confiou em nós, no exato momento que nos criou e decidiu “investir” o melhor em cada um. A única coisa que Ele espera é que nós mesmos descubramos esse dom e vivamos a partir dele.

Por isso, é preciso viver sempre em atitude de busca. Mais do que estar vigilantes, é preciso estar despertos. Não porque pode chegar o juízo final quando menos esperamos, mas porque a tomada de consciência da identidade que somos exige uma atenção ao que está mais além dos sentidos e não é nada fácil descobrir.

Como manter viva a esperança? Como não cair na frustração, no cansaço ou no desalento? Onde encontrar um princípio humanizador, capaz de nos libertar da superficialidade ou do vazio interior?

Para despertar é preciso tomar consciência da luz presente em nosso interior e alimentá-la; nós nos tornamos mais “lúcidos” (portadores de luz) quando tomamos consciência da superficialidade de nossa vida, do ativismo, da vida “normótica” e sem direção...; a verdade abre espaço em nós quando reconhecemos nossos enganos; a paz chega ao nosso coração quando des-velamos a desordem em que vivemos.

Usando a imagem da “lâmpada acesa”, Jesus nos provoca a despertar de nossa indiferença, passividade ou do descuido com o qual vivemos nosso discipulado. É a luz interior que deve ser alimentada para inspirar nossos critérios de ação, força que impulsiona nosso compromisso e esperança que anima nosso viver diário. Somos chamados a sermos pessoas “ardentes”, “luz que acende outras luzes”, ou seja, pessoas que experimentam a vida como crescimento constante. Sempre buscamos algo mais, algo melhor; a vida é inesgotável: uma descoberta na qual sempre podemos avançar.


Textos bíblicos: Evangelho segundo Lucas 12,32-48

Na oração:

Para viver despertos é importante viver com mais calma, cuidar do silêncio e estar mais atentos aos chamados do coração. Só quem ama e serve, vive intensamente, com alegria e vitalidade, despertado para o essencial.

Uma certeza podemos ter: o Espírito está sempre pronto a criar, recriar, a transformar, a renovar e “fazer novas todas as coisas”, abrindo-nos a um novo tempo com a feliz esperança de “novos céus e nova terra”, num mundo novo e pleno de vida. 

- Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.