sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Finados: enraizados no Deus da Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de todos os Fiéis Defuntos.

“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35)

 

morte é sempre estranha e, com frequência, se revela incômoda. O ser humano pós-moderno não sabe o que fazer com a morte. Às vezes, o único que lhe ocorre é ignorá-la, escondê-la e não falar dela. Busca esquecer o quanto antes esse triste acontecimento, cumprir os trâmites religiosos e civis e retornar ao mesmo ritmo da vida cotidiana.

No entanto, mais cedo ou mais tarde, a morte vai visitando nossos lares e arrancando de nós nossos seres mais queridos. Como reagir diante da morte que nos arrebata para sempre nossos entes queridos, nossos pais, nossos amigos... Quê atitude adotar diante de uma pessoa muito próxima e querida que diz seu último adeus? Que fazer diante do vazio que vão deixando em nossa vida tantos amigos e amigas?

Vivemos uma atmosfera cultural que não quer mais saber da morte; ela é escondida. Há uma angústia que, sem trégua, atormenta os vivos diante de sua ameaça escondida nas sombras, sempre presente na doçura da vida e no fervilhar das paixões.

Como se torna complicado falar dela, buscamos suavizá-la utilizando palavras como “falecer”, “deixar este mundo”, “ir-se”, “apagar-se” ..., entre outras muitas. Encarar a morte não é fácil, pois nos assaltam as dúvidas sobre o sentido da vida, o que acontecerá depois, a vida eterna, etc. Como consequência da dificuldade de enfrentar a morte, há pessoas que a ignoram e vivem com a sensação de serem eternas.

Diz a carta aos Hebreus que quem tem medo da morte passa a vida sujeito à escravidão (Heb. 2,15): escravo diante de um “deus amo” com quem é preciso passar a vida negociando a existência, porque esta não é vivida como dom gratuito; e escravo do próprio ego que se inchou até níveis insuportáveis.

Nos Evangelhos, encontramos diversas exortações, parábolas e chamados que só tem um objetivo: manter viva a responsabilidade do seguidor de Jesus. Uma das advertências mais conhecidas é a que encontramos no Evangelho indicado para este “dia de Finados”: “Tende cingido vossos rins e suas lâmpadas acesas”.

As duas imagens são muito expressivas. Indicam a atitude que os empregados devem ter quando, à noite, estão esperando que regresse seu senhor para abrir-lhe a porta da casa quando ele os chamar. Devem estar com a “cintura cingida”, ou seja, com a túnica presa à cintura para poder mover-se e atuar com agilidade; devem estar com as “lâmpadas acesas” para ter a casa iluminada e manter-se despertos.

A vida do seguidor de Jesus é um contínuo estar em alerta, estar sempre despertos, estar sempre em espera, estar sempre dispostos. Ele precisa viver com os olhos abertos às vindas surpreendentes de Deus; precisa estar com os ouvidos atentos para escutar seus passos; precisa viver sempre em prontidão para abrir a porta de seu coração.

As palavras de Jesus não contêm nada de ameaça nem de cobrança; não alimentam um ego fechado nem sustentam nenhuma ideia de mérito. São palavras de sabedoria que convidam, ao contrário, a despertar para a Realidade que somos. 

Despertar é uma das palavras básicas de todas as tradições de sabedoria. Todas elas nos alertam que facilmente nos submergimos no sono da ignorância, crendo ser o que não somos e desconectados do que realmente somos; e esta é a fonte de muitos sofrimentos.

A revelação central de Jesus é que “Deus é Vida” e quer que vivamos intensamente, agora e na eternidade. Procedemos da Vida, vivemos na Vida e retornaremos ao seio da Vida. Todos morremos para o interior de Deus. O Sopro de vida que recebemos retorna à Fonte: todos seremos “aspirados” para dentro do Deus da Vida.

A partir desta realidade revelada, o mais adequado para considerar a morte é vê-la como um “despertar”. Assim como ao sair do sonho emerge uma nova identidade, muito diferente do sujeito onírico, ao morrer amanhecemos para a nossa identidade mais profunda, na qual o ego (falso eu) encontra também seu final. Não é que ele morra, mas é porque descobrimos que ele nunca existiu; é uma ilusão alimentada pela nossa mente.

Os místicos sufis nos ensinaram que quando vivemos, estamos adormecidos, e quando morremos, despertamos. A quê despertamos? Sem dúvida nenhuma, à Vida, ao que sempre fomos e somos, embora não o tivéssemos visto antes. Precisamente por isso não precisamos “alcançar” nada que não tivéssemos, senão cair na conta (despertar) daquilo que sempre somos: envolvidos pela Vida, sustentados e protegidos pela Vida, iluminados pela Vida...

Assim, morrer é o processo pelo qual nos “re-integramos” na Vida que sempre fomos. Com o termo “Vida” aludimos à mesma Realidade que as religiões nomeiam como “Deus”.

Ao despertarmos, descobriremos o que sempre tínhamos sido e que tínhamos esquecido, ou seja, vivíamos a unidade com o Todo e com todos

A melhor metáfora para falar do silêncio que a morte impõe é a do rio que desemboca no mar. O rio perde seu nome e sua forma, treme de medo diante da imensidão do mar que se abre diante dele; mas é justamente, ao entregar-se, quando o rio se descobre como água. Torna-se oceano; morreu a “forma” de rio, permanece a água. E é nessa mesma “Água” onde todos nos encontramos, porque constitui nossa identidade mais profunda. Para além do “rio” único de cada um – de nossa personalidade -, nos reconhecemos “uno” na “Água” – nossa identidade comum e compartilhada, que transcende todas as formas.

Com a morte começa a vida para sempre, na presença do Deus Amor. E, por isso, se a morte é capaz de privar-nos do dom da vida, o Amor tem poder de nos devolvê-lo. Aqueles que em sua vida aprofundam e vivem o sentido do amor de Deus, começam a experimentar a eternidade e as bem-aventuranças que esse amor confere à vida. Na morte, seremos abraçados plenamente por esse Amor. É caminhar ao encontro da Fonte para beber da vida eterna; é entrar em um alegre amanhecer. Podemos afirmar, e com razão, que a “morte é um amanhecer” (Elisabeth Kubler-Ross). Morrer então, é viver mais e melhor (cf. L. Boff)

Os sábios veem a morte como parte da vida; dão-se conta que a vida é mortal, que somos, por essência, seres mortais. Vamos morrendo devagar, lentamente, a prestações, desde o primeiro momento até acabar de morrer. Segundo José Marti “morrer é fechar os olhos para ver melhor”.

Quando queremos nos concentrar e ir fundo no pensamento, fechamos naturalmente os olhos. Ao morrer, fechamos os olhos para ver melhor o coração do universo, para ver os espaços infinitos do mundo e os segredos mais escondidos da vida. 

Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida morte.

Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.

Diz o refrão que “a morte, menos temida, dá mais vida”. Ao desvelar a precariedade de nossa existência, a morte nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente. Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nossa fragilidade, nosso breve período de tempo -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.

Encarar a morte, com serenidade, não só nos pacifica como também torna a existência mais leve, mais preciosa, mais vital. Situar-nos serenamente no horizonte da morte ajuda a dar conteúdo à nossa própria vida.


Sărbătorirea Învierii sâmbătă seara? Sminteala de anul acesta din Grecia

 

Texto bíblico:  Evangelho segundo Lucas 12,35-40

 

Na oração: 

Finados de silêncio: cala a palavra, mas fala o coração; cala a palavra mas o coração sente a voz daqueles(as) que já estão no silêncio do cora-ção de Deus. É o silêncio do coração que espera o momento, que escuta o mistério por dentro; é o silêncio do coração que medita e guarda dentro o mistério, que espera a nova palavra pascal. É o sábado das esperanças que começam a verdejar.

- No silêncio, faça memória e entre em comunhão com aquelas pessoas que foram presenças inspiradoras em sua vida e que deixaram “marcas” saudosas. 

Vale a pena fazer no dia de hoje uma “memória agradecida”.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A oração desvela nossa autoimagem

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 30º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (Lc 18,14)

 

No seu inspirado ensinamento, são impactantes os diferentes personagens que Jesus apresentou como modelos de vida e que eram, social e religiosamente, considerados “impuros” e “imperfeitos” entre os membros daquela comunidade judaica que resistia acolher a sua mensagem de amor e seu chamado libertador. 

Por outro lado, Jesus denunciou com severidade as atitudes dos fariseus, porque eram exigentes, rigoristas, tradicionalistas, intolerantes, sentindo-se superiores aos demais. Não sentiam a necessidade de se converterem e de restabelecerem a fraternidade com aqueles que não eram de seu grupo. 

Com frequência, pessoas assim são desumanas, pouco compassivas, aferram-se às suas opiniões e desprezam os outros. Sua autossuficiência lhes impede se reconhecerem como filhos de Deus e irmãos dos outros, porque Deus só pode ser reconhecido de verdade nos outros e através dos outros e, de uma maneira muito especial, no rosto dos mais oprimidos deste mundo.

A indiferença, o julgamento, a intolerância e a “imagem aureolada” de si mesmo que exige méritos, são sinais distintivos de um ego inflado em seu modo de se situar na vida e na religião. O ego é incapaz de compaixão e de empatia: vive fechado em sua couraça de necessidades e de medos, empenhando-se por conseguir uma existência agradável para si, à margem de qualquer outro critério. E a religião tem sido um campo fértil para a manifestação das mazelas de um ego prepotente, julgador, rigorista, vazio de vida.

A parábola contada por Jesus revela que o fariseu é um observante escrupuloso da lei e um praticante fiel de sua religião. Sente-se seguro no templo. Ora de pé e com a cabeça erguida. Sua oração é auto-centrada: uma oração de louvor e ação de graças a Deus, mas não lhe dá graças por Sua grandeza, Sua bondade ou misericórdia, mas pela própria grandeza e por aquilo que realiza.

Ele pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus, que pode estabelecer o confronto sem problemas, como de igual para igual. O fariseu não suplica a Deus e nem tem necessidade de ouví-Lo; já eliminou as distâncias com as suas palavras e se ilude de ter uma linha direta com o Altíssimo.

Em 2º lugar, o fariseu despreza os outros. Como ele se considera perfeito e não vê nenhuma falha em si mesmo, considera-se superior aos outros. Ao mesmo tempo que se auto-elogia, critica e despreza os outros. De fato, não descobre nenhum projeto divino sobre si, basta-lhe saber que é melhor que todos.

Na realidade, de acordo com o evangelho deste domingo, a oração é o lugar privilegiado onde cada pessoa deixa transparecer sua identidade; a oração é reveladora de quem é o ser humano. Observamos uma falsidade na oração do fariseu. Mais que orar, este homem se contempla a si mesmo. Narra sua própria história cheia de méritos. Necessita sentir-se com créditos diante de Deus e exibir-se como superior aos outros.

Na verdade, este homem não sabe o que é orar. Não reconhece a grandeza misteriosa de Deus nem confessa sua própria pequenez. Busca a Deus para enumerar diante d’Ele suas “boas obras” e despreza os outros: isso é próprio dos perfeccionistas e legalistas. Por detrás de sua aparente piedade se esconde uma oração “ateia”. Este homem não precisa de Deus, não lhe pede nada; na sua soberba, basta-se a si mesmo.

Em sua oração, o fariseu aparece centrado em si mesmo, naquilo que faz. Sabe o que ele não é: ladrão, injusto ou adúltero; nem tampouco é como o publicano, mas não sabe quem é ele na realidade. 

A parábola nos leva a reconhecer quem de fato ele é, precisamente não pelo que faz (jejuar, pagar o dízimo...), mas pelo que deixa de fazer (relacionar-se bem com os outros).

A oração do publicano, no entanto, é muito diferente. Sabe que sua presença no templo é malvista por todos. Seu ofício de cobrador de impostos é odiado e desprezado. Não se desculpa; reconhece que é pecador. Suas batidas no peito e as poucas palavras que sussurra já dizem tudo: “Meu Deus, tem compaixão de mim que sou pecador!”.

Este homem sabe que não pode se vangloriar. Não tem nada que oferecer a Deus, mas sim muito que receber d’Ele: seu perdão e sua misericórdia. Em sua oração há autenticidade. Este homem é pecador, mas está no caminho da verdade.

fariseu não se encontra com Deus, mas com seu ego inflado. O publicano, pelo contrário, encontra a atitude correta diante de Deus: a atitude daquele que não tem nada e necessita tudo. Não se detém sequer a confessar com detalhe suas culpas. Reconhece-se pecador. Dessa consciência brota sua oração: “Tem compaixão deste pecador!”.

Por estar longe de sua própria verdade, o fariseu não pode viver a prazerosa gratuidade – está esperando uma recompensa – e cai no desprezo do outro. Pelo contrário, o publicano apoia-se na verdade sobre si mesmo; e é a verdade que o salva e o reconcilia.

 

Jesus era um profundo conhecedor da condição humana; sabia que a pessoa consciente das suas imperfeições é mais disponível para acolher o anúncio do Reino. Sabemos que as escolhas de Jesus não caíram sobre os chamados “perfeitos”. As pessoas com quem Ele entrou em contato não eram conhecidas por suas boas maneiras nem por práticas religiosas; antes, eram pecadoras públicas.

A parábola narrada por Jesus tem força para desmascarar atitudes egóicas e que nos distanciam dos outros e do próprio Deus. Por “delicadeza”, ou para satisfazer os outros, ou por viver dependente da auto-imagem aureolada, ou alimentar a perfeição..., podemos perder a vida, nossa vida tão bela, tão frágil e efêmera.

Somente quando integrarmos e nos reconciliarmos com os aspectos de nós mesmos que tínhamos negado ou até rejeitado, poderemos alcançar a paz e a harmonia estáveis.  Portanto, nosso esforço não consiste em sermos “perfeitos”, mas “completos”. Na medida em que somos mais “completos”, porque acolhemos de maneira integral toda a nossa verdade, vamos nos tornando mais compassivos e humanos.

O que Deus quer de nós não pode ser conhecido por meio da busca da perfeição e das altas exigências que estabelecemos para nós mesmos. Pois é nisso que justamente se manifesta a nossa ambição. Queremos alcançar altos ideais para darmos a impressão de estar bem diante dos outros e, também, diante de Deus.

É esse modelo de perfeição que gerou demasiado sofrimento inútil, causando verdadeiros estragos na vivência do seguimento de Jesus. Gostaríamos de ser pessoas fortes, perfeitas, ascetas virtuosos; sonhamos ser onipotentes, “feitos para vencer” ... Na realidade, estamos mais preocupados com a própria glória, poder e perfeição que com a glória de Deus.

E aqui nos deparamos com uma das práticas mais comuns e universais do ser humano: a justificação. Buscar continuamente argumentos para esconder nossas fragilidades e incoerências. Somos peritos em alimentar um “fariseu” dentro de nós, com a lei na mão e rigidez no coração.

Elaboramos discursos e mais discursos para nos autoconvencer e convencer os outros daquilo que julgamos que somos. Tanto esforço para nada. Impossível cobrir a verdade tão simples como evidente daquilo que, na realidade, somos: “pobres pecadores(as)”.

“fariseu”, que todos hospedamos em nosso interior, realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros.

publicano, por outro lado, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração.

E quanto mais baixo for o ponto de partida, tanto mais alta ela vai subir...

salvação que esperamos não é fruto de nosso esforço e penitências, de nossa prática legal e de nossas virtudes perfeitas.  Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai. Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.


How to Prevent Your Ego from Running Your Life - Tiny Buddha

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 18,9-14

 

Na oração:

humildade é a coragem de acolher a verdade sobre si mesmo; ela é o caminho para Deus; ela é a resposta para a experiência de Deus; ela é o lugar onde nós podemos ir ao encontro do Deus verdadeiro. A humildade é acolher as próprias fragilidades e alargar o espaço interior para que o Infinito possa atuar livremente nas “fendas” de nossa existência.

- Trazer à memória os possíveis sintomas da presença do “fariseu” em sua relação com os outros: rigidez, julgamento, legalismo, perfeccionismo, indiferença, religiosidade auto-centrada...

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Viúva indignada: a força da voz dos marginalizados

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 29º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Faze-me justiça contra o meu adversário!” (Lc 18,3)

 

A parábola da viúva e do juiz sem escrúpulos é, como tantas outras, um relato aberto, provocativo e que pode despertar nos ouvintes diferentes ressonâncias. Segundo Lucas, trata-se de um chamado a orar sem desistir, mas é também um convite a confiar no Deus que fará justiça àqueles que lhe clamam dia e noite. 

Que ressonâncias pode ter hoje em nós este relato dramático de uma viúva e que nos recorda tantas vítimas abandonadas injustamente à sua sorte?

O evangelista Lucas, ao narrar esta breve parábola, nos indica a intenção de Jesus ao falar para os seus discípulos sobre a necessidade de orar sempre, e nunca desistir”. Este tema é muito frequente em Lucas e, em várias ocasiões, repete a mesma ideia. Como é natural, a parábola foi lida quase sempre como um convite a cuidar da perseverança de nossa oração na relação com Deus.

No entanto, se observarmos o conteúdo do relato e a conclusão do mesmo Jesus, vemos que a chave da parábola é a sede de justiça. Até quatro vezes se repete a expressão “fazer justiça”.

Mais que modelo de oração, a viúva do relato é exemplo admirável de luta pela justiça em meio a uma sociedade corrupta que abusa dos mais fracos.

primeiro personagem da parábola é um juiz que “não temia a Deus, e não respeitava homem algum”.  É a encarnação exata da corrupção que os profetas denunciaram repetidamente: os poderosos não temem a justiça de Deus e não respeitam a dignidade nem os direitos dos pobres. Não são casos isolados. Os profetas sempre desmascararam o sistema judicial em Israel e a estrutura machista daquela sociedade patriarcal. Ao dizer-nos que este juiz não se importava nem com Deus nem com os homens, está dando destaque à índole dele: uma pessoa terrível, sem princípios, à margem de toda lei e à margem de todos.

segundo personagem é uma viúva indefesa em meio a uma sociedade injusta. Por uma parte, vive sofrendo os atropelos de um “adversário” mais poderoso que ela. Por outra, é vítima de um juiz que não se importa em absoluto com a pessoa da pobre viúva e nem com o seu sofrimento. Assim vivem milhões de mulheres em todos os tempos e em todos os lugares.

As viúvas eram, nos tempos de Jesus, juntamente com os órfãos e estrangeiros, a expressão da máxima pobreza e vulnerabilidade, pois viviam sozinhas e desamparadas, não tinha ninguém para protegê-las e ampará-las, e muitos, sem escrúpulos, costumavam abusá-las. Marginalizadas, não tinham maridos e nem filhos para defendê-las; não contavam com apoios governamentais ou da religião. Só tinham adversários que as exploravam. Já os antigos profetas tinham chamado a atenção sobre este drama humano.

À pobre mulher do evangelho deste domingo só lhe restava a voz para clamar por justiça a um juiz sem religião e sem sentimento humano; finalmente ele cede e lhe concede justiça, não por compromisso ético, mas para que a viúva o deixasse em paz.

O que a mulher lhe suplica não é um capricho pessoal. Só reclama justiça. Este é seu protesto, repetido com firmeza diante do juiz: “faze-me justiça!”. Sua petição é a de todos os oprimidos injustamente. Um grito que está na linha daquilo que Jesus dizia aos seus discípulos: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça!”.

Na parábola, Jesus nos surpreende a todos pelo fato de um juiz injusto fazer justiça à pobre viúva. Evidentemente este juiz não é imagem de Deus. Não temos de “ganhar” o coração de Deus através da força da insistência. Essa imagem está muito longe do “Abbá” que Jesus nos revela como Boa Notícia.

No entanto, Jesus marca a distância entre o que diz e faz o juiz injusto e o modo de atuar de Deus Pai. 

Deus é justiça e está sempre pronto a fazê-la valer. Na visão bíblica, Deus é justo porque Ele é bom; na essência, a justiça é a bondade de Deus para com todos os seus filhos e filhas. Aqui estamos bem longe da justiça jurídica, própria dos tribunais humanos.

Diante da tentação que nos leva a pensar que Deus é um juiz que não atende a todos, Jesus nos convida a mudar nossa visão e descobrir a verdadeira essência de Deus, a descobrir que, muitas vezes, a justiça que Deus quer realizar fica travada pelo nosso comportamento injusto, pois, muitas vezes, nos tornamos um obstáculo à justiça de Deus.

Suplicar sem desfalecer e com fé é abrir-nos à justiça de Deus para descobrir nossa responsabilidade e a parte que nos toca viver naquilo que estamos pedindo. A súplica é mobilizadora e desperta nossos melhores recursos para buscar aquilo que tanto desejamos.

Não basta insistir, pedindo a Deus que conceda a paz e a justiça em nosso mundo; somos nós, ali onde estamos e com todas as nossas possibilidades, construtores de paz e de justiça; paz e justiça que o Espírito do Senhor infunde em nossos corações. Construir o Reino é trabalhar no fluxo da justiça de Deus. A graça de Deus vem ao encontro de nossos desejos e os tornam oblativos, operativos...

Na conclusão da parábola, Jesus não fala da oração. Antes de mais nada, pede confiança na justiça de Deus. Não fará Deus justiça a seus eleitos que lhe gritam dia e noite?” Estes eleitos não são os membros de uma determinada religião, mas os pobres de todos os povos que clamam pedindo justiça. Deles é o Reino de Deus.

Finalmente, Jesus lança uma pergunta que é um grande desafio para todos nós, seus seguidores e seguidoras: “Mas o Filho do Homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” Ele não está pensando na fé como adesão doutrinal, mas na fé que se sensibiliza diante da atuação da viúva, modelo de indignação, resistência ativa e coragem para reclamar justiça aos corruptos de plantão.

Por que nossa comunicação com Deus não nos faz escutar o clamor daqueles que sofrem injustamente e nos gritam de mil formas: “faze-nos justiça?”. Se, ao orar, nos encontramos de verdade com Deus, como não somos capazes de escutar com mais força as exigências de justiça que chegam até seu coração de Pai?

Nesse sentido, a nossa oração de seguidores de Jesus só é “eficaz” quando nos faz viver com fé e confiança no Pai e em atitude solidária com os irmãos. A oração é “eficaz” porque aumenta nossa fé e nos faz mais humanos; abre nossos ouvidos do coração para escutar a Deus com mais sinceridade, vai purificando nossos critérios e nossa conduta daquilo que nos impede ser mais fraternos. Ela sustenta nosso viver cotidiano, reanima nossa esperança, fortalece nossa fragilidade, alivia nosso cansaço.

Aquele que aprende a dialogar com Deus e a invocá-Lo “sem nunca desistir”, vai descobrindo onde está a verdadeira eficácia da oração e para quê “serve” rezar. Simplesmente para viver com mais sentido, inspiração e compromisso. Oração sem presença solidária é vazia.

Jesus sempre deixa transparecer a imagem de um Deus desprovido de dogmatismos, um Deus desprovido também de controle e arbitrariedade. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...

misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência e ao clamor do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão. 

Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.

Existem “viúvas” que clamam dentro de nós. Enquanto o Reino de Deus estiver no nosso meio, o “juiz interior” não terá nenhuma chance, estaremos sãos e salvos, livres dos seus juízos, de suas expectativas e exigências, de suas acusações e sentenças. Nesse espaço ninguém poderá nos ferir, nenhum inimigo terá acesso, seja ele interior ou exterior.


Imagens de Jesus as judge sem royalties | DepositPhotos

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 18,1-8

 

Na oração: 

A parábola deste domingo nos interpela a todos: continuaremos alimentando nossas devoções privadas, nossas mortificações estéreis, nossas penitências vazias, esquecendo aqueles que vivem sofrendo injustiças? Continuaremos orando a Deus para pô-lo a serviço de nossos interesses, sem que nos importemos com as injustiças que há no mundo?

- “Tomar consciência” dos momentos em que o seu “juiz interior” emitiu seus “pareceres de morte”, seja na relação consigo mesmo ou com os outros.

sábado, 11 de outubro de 2025

O bom vinho da presença

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da liturgia do dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

“A mãe de Jesus estava presente” (Jo 2,1)

 

Celebramos, neste domingo, a festa da Padroeira do Brasil: Virgem Maria da Conceição Aparecida.

A liturgia da Igreja no Brasil nos propõe, para esta festa, o relato joanino do “casamento em Caná”, onde Maria “estava presente”: presença inspirada que fez a diferença; presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.

A “boda em Caná” é o ícone evangélico que melhor revela a situação atual da Igreja e do cristianismo. Por todos os lados pede-se renovação e em muitos lugares surgem experiências ousadas e renovadoras. É o frescor de uma espiritualidade que abre passagem entre os caminhos quase desertos de uma religião em agonia. É o vinho novo que se faz presente para brindarmos o amor e celebrar a vida.

No entanto, insistimos em pôr vinho novo em odres velhos. Esse é o drama da Igreja: aferrada aos odres da doutrina e suas obsoletas estruturas, não sabe aproveitar nem desfrutar do vinho novo. Com frequência, não sabe o que fazer com este vinho novo e o desperdiça.

Precisamos de odres novos para este vinho espumante e gracioso, um vinho cheio de vida e de sabor, um vinho encorpado e robusto, um vinho com tanta força que vai rompendo sem piedade os odres desgastados e rachados. É o vinho novo que exige reformular a vida cristã e a Igreja.

Segundo o evangelista João, Jesus realizou “sinais” para dar a conhecer o mistério de sua pessoa e para convidar os seus seguidores e seguidoras a acolherem a força salvadora que Ele trazia consigo. 

Qual foi o primeiro “sinal”? O que primeiramente devemos encontrar em Jesus? 

O evangelista fala de uma “boda em Caná da Galileia”, uma pequena aldeia de montanha, a 15 km de Nazaré. No entanto, a cena tem um caráter claramente simbólico. Nem a esposa ou o esposo tem rosto: não falam, nem atuam. O mais importante é um “convidado” especial que se chama Jesus.

Na Galileia, as festas de casamento eram as mais esperadas e desejadas entre os camponeses. Durante vários dias, familiares e amigos acompanhavam os noivos, comendo e bebendo com eles, bailando danças de casamento e cantando canções de amor. 

O vinho era indispensável em um casamento. Para aquelas pessoas, o vinho era o símbolo mais expressivo do amor e da alegria. Já dizia a tradição judaica: “o vinho alegra o coração”. A noiva cantava para seu amado um lindo canto de amor: “Teus amores são melhores que o vinho”.

O início do relato joanino apresenta Jesus sendo apenas um convidado; como anônimo, Ele vem de fora, não pertence por si mesmo ao espaço do casamento. Ele e seus discípulos parecem formar um mundo à parte, estão como que de passagem. Logicamente, não se preocupam com as questões da organização da festa, ao menos no primeiro momento. Esta é a surpresa da cena: Jesus vem como por casualidade e, no entanto, logo atua como responsável verdadeiro diante das velhas e das novas “bodas” da terra. 

Neste contexto, tornam-se centrais as relações entre a mãe (que é sinal da humanidade anterior, ou seja, do judaísmo da lei, da esperança messiânica) e Jesus (que será o iniciador das novas bodas do Vinho do Reino).

mãe é a mulher que introduz a nova páscoa de Jesus. Ela marca a diferença entre as antigas e as novas bodas, a passagem da água ao vinho. É a mulher de dois mundos, dois tempos, duas bodas. 

Parece que ninguém tinha descoberto a carência de vinho. Só a Mãe de Jesus notou a falta e se moveu a buscar uma solução para um problema que parecia sem saída.

De imediato, a mãe de Jesus lhe avisou: “eles não têm mais vinho”. Como vão continuar cantando e bailando? Que significa um casamento sem alegria e sem amor? O que se pode celebrar com o coração triste e vazio de amor? 

No pátio da casa havia “seis talhas de pedra”. Eram enormes. Estavam colocadas ali, de maneira fixa. Nelas se guardava a água para as purificações. Representavam a piedade religiosa daqueles camponeses que procuravam viver “puros” diante de Deus. 

A Mãe de Jesus é, por um lado, uma mulher do mundo antigo: pertence ao espaço das velhas bodas; conhece e compartilha por dentro os problemas e preocupações dos homens e mulheres que não conseguem saborear o verdadeiro matrimônio da vida. Ela se encontra no lugar onde a alegria deveria se manifestar: não é luto de morte, mas fonte de vinho, isto é, de esperança criadora, de Bodas de Deus. É mulher da vida prazerosa: está a serviço gratuito da festa. Seu desejo verdadeiro é o banquete (quer que os homens e mulheres bebam, dancem, vivam), não o ritual das purificações e abluções.

Nesse sentido, a Mãe de Jesus é mulher do mundo novo, mulher de bodas: ela sabe que há um vinho de “bodas” diferentes, sabe que já chegou quem pode proporcioná-lo. Por isso, ela não se contém: a impaciência do novo Reino de Deus pulsa no centro de sua vida e procura expressá-la. 

Assim, aproxima-se e diz a Jesus, de maneira sóbria e reverente: “eles não têm mais vinho!”.

Jesus que, num primeiro momento, parecia ter-se distanciado de sua mãe (“Mulher, porque dizes isto a mim?”), cumpre logo, de maneira diferente e por sua própria vontade, o que ela lhe pediu; e faz isso de maneira transbordante, muito mais que aquilo que ela lhe pedira. Oferece vinho abundante e de excelente qualidade aos convidados das “bodas”. Dessa forma realiza e transborda o desejo mais profundo de Maria.

Sua intervenção vai introduzir amor e alegria naquela religião. Este é seu primeiro “sinal”.

O evangelho indicado para este domingo nos revela esta grande notícia: Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos convidam a viver com mais sentido e prazer. Deus não quer que renunciemos a nada do que é verdadeiramente humano; Ele quer que vivamos o divino naquilo que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da mortificação como exigência divina é ante evangélica. 

A mensagem para nós hoje é muito simples, mas demolidor. Nem ritos, nem abluções podem purificar o ser humano. Só quando ele saboreia o vinho-amor, no encontro e na comunhão com o outro, ficará ele todo limpo e purificado.  Quando descobrirmos Deus dentro de nós e nos outros, seremos capazes de viver a imensa alegria que nasce da unidade-amor. Que ninguém nos engane: o melhor vinho está sem estourar, escondido na adega de nosso interior.

 

“Eles não têm mais vinho!”

Esta é uma das expressões mais fortes do NT e do conjunto da Bíblia. Em primeiro lugar, ela é proferida pela Mãe ao seu Filho, mas logo podemos e devemos aplicá-la a diferentes situações de nossa vida.  São palavras que, quando escutadas, têm profundas ressonâncias em nós, sobretudo quando estamos comprometidos na nobre missão de “despertar o sabor da vida”.

Precisamente ali onde podemos nos sentir satisfeitos, ali onde pensamos que as coisas se encontram já resolvidas, tudo em ordem, se eleva com mais força a voz da Mãe de Jesus dizendo: “Eles não têm mais liberdade, estão cativos!” “Não têm mais saúde, estão enfermos!” “Não tem mais pão, estão famintos!” Não tem mais família, estão abandonados!” “Não tem paz, encontram-se deprimidos, em guerras sem fim!” ...

Já não podemos mais responder como Jesus em um primeiro momento: “que importa a mim e a ti? Não é nossa hora!” Sabemos que, em Jesus e por Jesus, chegou a hora da Mãe que nos mostra as necessidades de seus filhos, os humanos sofredores. Sobre um mundo onde falta o vinho das bodas da liberdade/amor/justiça, sobre um mundo que sofre a opressão e o forte vazio da vida, sobre um mundo onde continua acontecendo guerras, ódios, intolerâncias..., a voz da Mãe de Jesus ressoa como uma recordação ativa das necessidades das pessoas; por isso, é princípio de forte compromisso.

A imagem de Nossa Senhora que emerge dos Santos Evangelhos | Diocese de São  João del Rei

 

Texto bíblico:  Evangelho segundo João 2,1-11

 

Na oração: 

Como podemos pretender seguir a Jesus sem cuidar mais da alegria e do amor entre nós? O que pode ser mais importante que isto na Igreja e no mundo? Até quando poderemos conservar em “talhas de pedra” uma fé triste e enfadonha? Para que servem nossos esforços, se não somos capazes de introduzir amor e alegria em nossa religião? 

Nada pode ser mais triste do que dizer de uma comunidade cristã: “eles não têm mais vinho!”.

- Sua presença na comunidade cristã desperta o sabor do bom vinho da vida e da amizade?

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A tentação da busca de recompensas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 27º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Somos simples servidores; fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)

 

A parábola indicada para a liturgia deste domingo desmascara uma mentalidade muito frequente, não só entre os fariseus do tempo de Jesus, mas também no coração dos seus seguidores: na relação com Deus, muitos se deixam levar pela busca da recompensa. De maneira disfarçada, julgam no direito de serem recompensados por todo o bem que fazem. E julgam poder exigir o pagamento devido por suas virtudes e boas obras, como se estivessem em pé de igualdade com Deus. Aqui desaparece toda gratuidade no serviço a Deus. A parábola desmascara a atitude daqueles que, no serviço do Reino, buscam seus próprios interesses, alimentam sua vaidade e buscam ser o centro das atenções. Quem não gosta de receber elogios pelo seu serviço ao Reino? Jesus tem um olho clínico que se fixa em todas as nossas atitudes e comportamentos. Por isso, sentiu a necessidade de alertar os seus discípulos e a nós contra este perigo.

Na verdade, agir para buscar o louvor, o interesse próprio, o lucro, o reconhecimento, a fama, o poder... esvaziam o sentido da missão em favor da evangelização, pois são próprios de uma mentalidade calculista e materialista da sociedade em que vivemos, que procura compensação em tudo o que se faz. Na perspectiva de Deus, o fundamental é ativar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros. 

Uma tentação sutil, presente em todos nós, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas pelo serviço prestado. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo de gratificação para manter seu entusiasmo e seu dinamismo apostólico. Fica a impressão que, no apostolado, ao invés de buscar agradar a Deus, busca-se recompensas humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, interpreta-se isso como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria motivação e entrega. 

A verdadeira maturidade espiritual coincide com o sentido da gratuidade, ou seja, ajustar-se ao modo de agir de Deus, superando todo auto-centramento e todo voluntarismo; quem assim vive experimenta o consolo de sentir-se amado, perdoado e chamado por Deus, pois “o ser humano é fundamentalmente um ser de gratuidade”.

gratuidade só pode ser vivida equilibradamente em toda sua profundidade e intensidade por aquele que é plenamente consciente de sua pobreza e indignidade radical, por aquele que, ao sentir-se pecador e amado ao mesmo tempo, não deseja ser nem melhor nem mais perfeito, senão mais filho(a) de Deus pelo compromisso e doação. E, precisamente movido pelo amor filial, deseja ativar todos os seus talentos e recursos, até o extremo de suas possibilidades, com o desejo de só agradar a Deus que tanto lhe ama. A gratuidade, portanto, é o fruto maduro, resultado espontâneo do consolo do perdão e do amor, que habilita o ser humano a entrar no fluxo da ação salvífica do próprio Deus.

Ao situar nossa missão cristã na linha da colaboração com a atividade criadora de Deus, do serviço à humanidade, da construção de um mundo fraterno..., isso nos ajuda a não convertê-la em um mecanismo ou dinâmica de auto-centramento, de busca exclusiva, e muitas vezes compulsiva, de nós mesmos e de nossos interesses e benefícios; ao mesmo tempo, nos faz evitar, em nosso modo de agir, atitudes e ações de domínio, de manipulação, de cobrança dos outros...

São vários outros elementos que contribuem para fazer de nossa missão uma “experiência espiritual”: a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, a agilidade no “eleger”, o crescer em gratuidade e relativização de si mesmo, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer.

A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia recebemos e nos é dado) nos ajuda viver a missão como serviço e nos liberta radicalmente dos pesos da rotina, da carga...; tudo isso nos situa na linha de uma experiência profundamente “espiritual”: dupla experiência de agradecer e ajudar.

Quando vivemos nossa missão a partir da gratidão, o esforço, que a mesma missão exige, brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos...

Quando vivemos tudo a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço.

Encontramos aqui o fundamento para uma teologia da missão: a missão, seja ela qual for, é redentora se a motivação é evangélica, se ela está orientada para o Reino. Não é a missão que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer missão ser importante, quando ela é realizada na perspectiva do Reino de Deus. Toda missão é nobre, seja ela o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.

A alegria da missão está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nela. Afinal, somos chamados a “trabalhar na obra do Senhor”, somos seus “servidores”. 

A verdadeira “experiência espiritual”, portanto, é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir da gratuidade; é passar do “Deus do mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus de “bondade escandalosa” que nos desafia a sermos criativos em sua obra. Daqui brota a dimensão contemplativa da missão, pois esta se torna  “templo” do encontro com Deus providente e de colaboração com os outros.

O(a) discípulo(a) faz o bem e se esforça por ser justo(a) e misericordioso(a), porque nisto deve consistir a sua vida, e não porque, agindo assim, Deus irá recompensá-lo(a). Basta-lhe a consciência de saber que age em conformidade com o querer divino. Tudo mais está entregue à benevolência de Deus.

Por isso, crer no Deus que “atua em tudo e em todos” implica estar sintonizado com Ele, trabalhando na mesma direção, fazendo as mesmas obras que Ele está fazendo para tornar este mundo mais habitável.

Cremos no “Deus que trabalha sempre” e em tudo nos associa, em comunhão com Ele, a seu trabalho constante de transformação deste mundo, na fronteira mesma onde se tece a novidade da história.

Trabalho que se faz com amor;  “o trabalho é a fé que se faz visível”.

Generosidade, gratuidade, doação: palavras quase desconhecidas do nosso vocabulário e em nosso contexto social. Mas são elas que nos levam em direção aos outros, libertando-nos de nosso pequeno eu. São elas que nos afastam da mesquinhez, da vaidade, do egoísmo, da busca do “próprio amor, querer e interesse”. Por serem mais afetivas, mais espontâneas, ligadas ao coração, elas se revelam na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com as exigências do amor, da solidariedade...

São elas que alargam o nosso coração até dilatar-nos às dimensões do universo, rompendo nossos estreitos limites e lançando-nos a compromissos mais profundos. Sentimo-nos livres para qualquer desafio e cada nova entrega é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para doar sua vida em favor de todos.

O amor desinteressado ao próximo se traduz em doação de si mesmo no serviço, na ajuda e no cuidado dos demais, sem esperar compensação. A gratuidade é o motor de sua vida.


Recompensa

 

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 17,5-10

 

Na oração: 

Precisamos alimentar uma outra relação com a missão no sentido de assumi-la como cooperação com o Deus providente e com tantas pessoas tocadas pela sua graça. Uma relação que permita nos distanciar das cargas, ativismos, tarefas estressantes... e viver a missão com humor e criatividade.

- Sua vivência na missão: ativismo ou “ação discernida”? Busca de recompensas ou espaço de colaboração com o Deus trabalhador?