“Mestre,
que eu veja”!’”
(Mc 10,51)
Continuamos fazendo caminho com Jesus, rumo a
Jerusalém. Estamos na última cena, antes de entrar na “cidade santa”, onde
acontecerão os mistérios centrais da nossa fé: Paixão, Morte e Ressurreição de
Jesus.
Detenhamo-nos em alguns detalhes que o
evangelista Marcos deixa transparecer no evangelho deste domingo, para uma
maior assimilação do modo de ser e agir de Jesus.
O cego Bartimeu
é o símbolo da marginalização: está fora do caminho, jogado na sarjeta, sem
poder se locomover, percebendo como os outros vão passando por ele, dependendo
deles, de suas esmolas e de seus cuidados, porque não podia fazer outra coisa. Trata-se
de um homem na beira do caminho, que vive às custas da bondade ou da maldade
dos outros e, na maioria das vezes, à mercê da indiferença de todos; um homem sem
ofício nem benefício e sem serviços sociais que o sustentassem ou o acompanhassem;
um ser humano de quem ninguém queria se aproximar porque era tido também como
impuro; um cego sem companhia, sem possibilidade de ser amado, habitando na
solidão física e psíquica, com o agravante de sentir-se julgado e culpado, sem
possibilidade de defesa, porque a sentença já era pública.
A situação de Bartimeu já estava determinada, ou seja,
a exclusão; ele aparece aqui como alguém consciente de sua situação desesperada,
de seus limites e de que sozinho não poderia superá-los. Mas não fica resignado
com sua situação; este é o ponto de partida. Daí o grito por compaixão, quando
percebe que Jesus passa por perto.
Como cego, não tem outro meio de chamar a atenção de
Jesus senão gritando. Muitas pessoas próximas se irritam e o mandam calar a boca,
mas ele o chama mais alto ainda. Ele investe toda sua força nessa oportunidade
única e vai até Jesus, expressando assim sua alegria em encontrá-lo e em
receber a sua ajuda.
Jesus é aquele que ouve, para e chama justamente
aquele cego cujo grito perturbava e
incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia. Ele interrompe
bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Os dois ainda não se
conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
O cego
levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua
proteção, sua segurança, seu teto..., e entra na luz do olhar de Jesus. Sai de seu fechamento (o manto era
considerado um prolongamento da pessoa); desfaz-se do que lhe trazia segurança
e recupera sua dignidade: “pôs-se de pé”.
Ao lhe perguntar - “o
que queres que eu te faça?” -, Jesus
está ativando o protagonismo no outro, estabelecendo
um diálogo de tu a tu, sem intermediários, oferecendo-lhe a possibilidade de
afirmar-se diante de alguém, de ter uma palavra que é escutada (não só um grito
que se instala como música de fundo para os transeuntes indiferentes), de
expressar os desejos de seu coração, de “empalavrar” suas aspirações e
esperanças. O espaço de diálogo experimentado devolve ao cego a confiança,
conecta com suas forças resilientes, lhe confere autonomia e o mobiliza a
entrar no caminho de Jesus.
A capa
que antes acompanhava o cego e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na
beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representa é
coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado
pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor. Ao chamado de
Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo olhar,
salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a
pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo
à transformação.
Bartimeu viveu a experiência de uma profunda
“travessia”: antes, cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola; agora,
com a visão recuperada, pode fazer a sua escolha: “...e seguia Jesus pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade.
Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...
Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se
tornou estrada; o estranho se tornou
familiar; a liberdade se tornou gratidão; a exclusão se tornou seguimento...
Ao “fixar seu olhar” em cada um(a)
de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos(as) a fazer eleições mais
radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do
próprio Jesus.
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus
ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes:
seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar
motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual
plural com amor, com entusiasmo e criatividade.
Precisamos suplicar como o cego do relato de Marcos: “Mestre, que eu veja!”, para poder reconhecer e agradecer, descobrir portas
onde antes víamos muros. Hoje somos afetados por muitas cegueiras: não vemos
aqueles que economicamente não são contados, e há milhões de pessoas
consideradas invisíveis.
Estamos ameaçados pela cegueira da segurança, da
intolerância, do preconceito..., e aqueles que são diferentes nos parecem
estranhos. As telas frias dos aparelhos eletrônicos tiram o brilho e o calor de
nosso olhar e petrificam o nosso coração. Vivemos cegos pela pressa e pelo
auto-centramento; e as rupturas humanas, as divisões e o ódio, embotam nossos
sentidos e nos cegam a respeito de nossa unidade essencial.
É preciso deixar que o Evangelho e os outros vão nos
tirando as vendas, vão nos curando a visão, vão nos despertando para que
possamos chegar a ser homens e mulheres de olhos grandes, que contemplam a vida
em sua profundidade e em sua vulnerabilidade, e também em suas infinitas
possibilidades.
Sabemos que toda a realidade nos entra pelas
janelas de nossos olhos.
Cultivar a espiritualidade em nossa vida cotidiana tem a ver com aprender a
olhar de outra maneira, e aprender a observar sem qualificar, sem medir, sem
emitir juízo, simplesmente, recebendo o que existe, deixando-o ser, dando-lhe
espaço.
Uma visão sadia, é aquela que sabe ver o outro no
melhor de si mesmo, em seu mistério único, em sua originalidade, em todo seu
potencial latente ainda por acontecer; e que sabe também aceitar suas arestas,
sua parte de sombra, sem rejeitar nada. Um olhar que descobre uma sensibilidade
por debaixo da aparente aspereza, que reconhece a benção que se oculta por
detrás da ferida. Um olhar amável e incondicional que oferece o espaço para que
os nós existenciais comecem a se desatar e a vida possa fluir.
Que possamos olhar através dos outros e ativar dentro
de nós aquela bem-aventurança: “Ditosos vossos olhos porque vêem” (Mt 13,16).
A oração é o ambiente natural para mobilizar-nos,
expandir nosso olhar e preparar-nos para o grande salto da vida: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova
missão....
Texto bíblico: Mc
10,46-52
Na oração: Chegaremos algum dia a aprender, como Jesus, a olhar
através dos olhos dos simples e pequenos deste mundo?
Quando
nos abrimos a outros olhares, quando chegamos a poder olhar pelos olhos
daqueles que estão em um lado da vida diferente do nosso, expande-se em nós a
capacidade de perceber e agradecer a realidade.
Nosso
modo de olhar depende do lugar onde pisamos: olhar burguês, olhar
preconceituoso, olhar intolerante...
-
Faça um pequeno exercício de “olhar a si mesmo” com o olhar do pobre, do
excluído, daquele que pensa e sente diferente... Como você se sente?
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