Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da terça-feira da Semana Santa (2025).
“Um de vós me entregará... Era noite”
A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de
amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em
Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído,
vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade
profunda.
Jesus está celebrando a última ceia com os
seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever de
todos em lavar os pés uns dos outros. Judas já tinha tomado a trágica decisão e,
depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua
traição.
De
fato, na contemplação da Última Ceia, um personagem vem sempre à nossa
lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição
a Jesus, mas, no fundo, ele nos causa repulsa porque é projeção das
nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.
Mas...
o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que
traímos a confiança do outro? Por que traímos o amor de Deus por todos nós?
Judas ficou decepcionado com o chamado
de Jesus. Tinha outros interesses e não conseguiu entrar em sintonia com o
coração e o projeto do Mestre; ele destoa porque não captou que em torno a
Jesus tudo é gratidão e gratuidade.
Judas aparece nos três relatos
evangélicos destes dias (segunda, terça e quarta-feira), não como protagonista,
mas como alguém deslocado, frio e insensível diante do drama que Jesus está
vivendo; aliás, é ele mesmo que alimenta mais ainda o drama da dor e da
perseguição imposta a Jesus.
Os
evangelistas não deram muita importância à figura de Judas; na realidade,
sentiam-se incomodados com ele e não aceitavam suas posturas e suas atitudes.
No entanto, dada a importância do tema da traição, é Jesus quem intervém
diretamente e des-vela as questões espinhosas que este discípulo carregava em
seu coração. Há coisas que estão muito além do dinheiro: a delicadeza com as
pessoas, os gestos de ternura e compaixão, o cuidado com os mais necessitados,
o espírito gratuito de serviço...
A
vida da comunidade cristã deve estar fundamentada nas atitudes oblativas e não
nas conveniências do próprio “amor, querer e interesse”.
Na Última Ceia, que Jesus mesmo
preparara com tanto cuidado, Judas só está fisicamente presente no ritual, mas
seu coração está ausente, não consegue entrar no clima da refeição. Ele tem
outras coisas para fazer e desaparece na noite, sem inteirar-se do sentido
deste momento. Na verdade, ele está “vendido” a outros poderes; recebe
promessas “de fora”, mas não se sente bem dentro da comunidade. Chegar à
traição é só um passo.
O
tema da Campanha da Fraternidade deste ano - “Fraternidade e Ecologia integral”
- vem denunciar a grande “traição” vivida pela humanidade inteira; recebemos do
Criador a nobre missão de “cuidar e guardar” a Casa Comum; no entanto, traímos
a confiança que Deus depositou em cada um de nós; traímos a Criação inteira
porque nossa presença se revelou destruidora da grande rede de vida; traímos as
pessoas porque a insensibilidade ecológica é expressão de nossa insensibilidade
diante do outro, sobretudo o outro violentado e excluído.
Por trás da palavra “traição”
se esconde o drama da existência humana. Esse drama mostra-se
trágico, pois revela uma aparente situação insolúvel que dilacera o coração e
estraçalha a esperança humana.
A experiência de traição é de
desvio de rota, de frustração da própria vocação, experiência que nos desumaniza
e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados,
desterrados, solitários...
Nossa comunhão
sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi substituída
por um profundo desespero. De fato, temos
lavrado nosso próprio “inferno”.
Hoje
constatamos as chagas ecológicas estampadas por toda parte e os
próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão: buracos na camada de ozônio, mutações
climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas
prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos
férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas
ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos
industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros
gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e
acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não
renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de
espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos
ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...
O drama do ser humano é perder a
memória de que é parte do todo:
seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com
todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial. A “centração em si
mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve,
provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o
veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua interioridade, a
perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da
transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...
Há muitas causas que nos fizeram
chegar à atual crise ecológica. Mas é preciso chegar à última: a traição
do ser humano que significa ruptura permanente da re-ligação básica que ele
introduziu, alimentou e perpetuou com o conjunto do universo e com seu Criador.
Com sua traição, o ser humano rompe
com a solidariedade natural entre todos os seres, contradiz o desígnio do
Criador que o quis como co-criador e que, através de sua inteligência
completasse a criação imperfeita.
A salvação reside na re-ligação com
todas as coisas. Não precisa necessariamente ser mais religioso, mas mais
humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua
sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. Ele precisa voltar à
Terra da qual se exilou e sentir-se seu guardião e cuidador. Então será refeito
o contrato natural. E, ao se abrir ao Criador, saciará sua fome e sede infinita
e colherá como fruto a paz.
É preciso aprender da Mesa deixada por Jesus: ela pode ser lugar da
traição ou lugar de novas relações.
Jesus, o Homem do Cuidado e companheiro de mesa, nos convida a ser mesa
de acolhida e de partilha, se quisermos ser seus amigos e amigas.
Ecologicamente falando, o relato da última Ceia nos indica várias
lições:
Em primeiro lugar, ela expressa uma
comunicação com a Terra da qual o pão e o vinho procedem. Comer e beber é
entrar em comunhão com as energias e forças cósmicas; é receber a energia que
renova a vida, regenera cada pessoa, que experimenta uma sensação de plenitude
não só fisiológica, mas existencial, relacional, espiritual... A Terra e o
Cosmos são, ao mesmo tempo, símbolos máximos de Vida, epifanias de uma Energia
renovadora através do campo, de sua fertilidade, de seus frutos; através do
sol, da lua com seus ciclos e estações, do mar... estamos conectados com o
Transcendente e, portanto, com o religioso, inseparável do antropológico e do
ecológico. Entramos em comunhão com toda a realidade cósmica, primeiro através
da respiração, do banho nas águas, na recepção dos raios solares e, finalmente,
no ato de comer.
Através desta união entre o cósmico, o
humano e o divino, nasce a nova Criação; ela nos possibilita viver a ecologia
integral redentora, ou seja, através do alimento há uma reconciliação entre o
homem-mulher, a natureza e Deus. Há
união, harmonia entre criação cósmico-humana e Criação. Há uma reconciliação
pacificadora que é comunhão entre humanidade, cosmos e Deus.
Texto bíblico: Evangelho segundo João 13,21-33.36-38
Na oração:
Dê nomes às diferentes
“traições” que podem se manifestar no cotidiano da vida: na relação com o Criador,
com os outros, com a natureza...
Nenhum comentário:
Postar um comentário