sábado, 25 de agosto de 2018

“As palavras sempre rompem alguma coisa”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 21º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


As palavras sempre rompem alguma coisa (M. Yourcenar)

“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63)

Estamos no final do cap. 6 do evangelho de João. Chega a hora do desenlace; a alternativa é clara: abrir-se à verdadeira Vida ou permanecer enredados numa vida atrofiada. Não há neutralidade; no mundo de hoje “tomam-se mais decisões por não tomá-las (que já é uma decisão) do que por tomá-las”, por acomodação, por medo de mudança, por inércia, por deixar que as coisas sigam seu curso...
Quê resultado teve a oferta de Jesus? Suas palavras entraram em choque com a mentalidade vigente; era inadmissível que uma pessoa pudesse comunicar uma mensagem tão exigente e tão libertadora. Suas palavras romperam visões distorcidas, mentalidades fechadas, modos arcaicos de viver, conservadorismo...
Também hoje corremos o risco de “adocicar” as palavras de Jesus para que não firam nossos pré-juizos. Com frequência, queremos transformar Suas Palavras de Vida em um conjunto de ritos, doutrinas, normas... para serem manipuladas segundo nossos critérios e nosso modo de viver. Mas, a Palavra de Jesus nos desestabiliza, nos desequilibra e questiona a normalidade doentia de nossa vida cotidiana. Às vezes, como os discípulos, também dizemos: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?”
No entanto, se queremos seguir Jesus, a única resposta possível deve ser um “sim” profundo, um “amém” decidido e generoso. Desejamos segui-lo e queremos ser como Ele; queremos abrir nossa vida à Palavra de Vida que nos sustenta e nos inspira; sentimos o forte impulso de caminhar com o Nazareno pela difícil e tortuosa estrada do povo de Deus na história.

A “palavra dura” de Jesus, no evangelho deste domingo, deve nos inspirar a uma tomada de consciência do lugar e do valor das palavras em nosso cotidiano.
Quantas palavras temos dito ou escrito hoje? Temos consciência do peso, da força que elas carregam?
Vivemos saturados de palavras; elas nos assaltam através das canções, estão nos perfis virtuais, nos livros, em mil e uma conversações cotidianas. Falamos, dizemos, escrevemos, escutamos, lemos...
E de tanto usá-las, talvez elas acabem perdendo o sentido. Começamos a considerá-las de um modo tão natural que não nos damos conta do quanto elas significam. Então falamos, mas não vivemos. Palavreado crônico, desconectado da vida.
O desenlace do cap. 6 de S. João torna-se uma ocasião privilegiada de calar, de silenciar o palavreado, de deixar de abusar das expressões gastas... para retomar a palavra sincera, para recordar que a vida não é uma brincadeira, para que, quando voltemos a pronunciar, com delicadeza, palavras carregadas de sentido e de vida, possamos nos fazer conscientes da beleza, profundidade, promessa e compromisso que está por detrás de cada uma delas. Nesse sentido, para crer em Jesus é preciso ter fome: fome de vida e de justiça, que não fica satisfeita com palavras vãs, ocas e desprovidas de sentido.
Professamos que Jesus é a Palavra de Deus, uma Palavra sem a marca da falsidade ou do vazio, uma Palavra viva e vivida; Palavra autêntica, de amor e paixão pela humanidade.
Pois, através da identificação com Jesus, também nós podemos ser palavra do mesmo Deus neste mundo. Uma palavra de amor, de sustento, de presença solidária... E eu, que palavra sou?

Sabemos que a palavra é uma das realidades humanas mais profundas: elas podem embalar ou golpear, ferir ou acariciar e curar. Sinceras ou falsas, pensadas ou espontâneas... são um de nossos maiores tesouros. Dizemos, escrevemos, lemos e compartilhamos palavras carregadas de vida ou de morte.
A palavra, escrita ou falada, é a expressão mais perfeita de nosso pensamento, revela-nos ao mundo exterior e é traço de união de nossos recíprocos relacionamentos.
A palavra, no dizer de um pensador, é uma poderosa soberana que realiza feitos admiráveis. Pode expulsar o temor, suprimir a tristeza, infundir alegria, dilatar a compaixão.  A palavra é fundamento de todo relacionamento humano. Serve para comunicar o que queremos, expressar sentimentos, argumentar, despertar... O mutismo e a negação da palavra constituem terras de desolação. Aprendemos com as palavras emprestadas de outros ou, quem sabe, também nós chegamos a dizer algo que fez a diferença para alguém.
Falamos, e na fala-escuta, nós nos encontramos e revelamos nossa identidade.
A palavra é meio divino para o encontro com todo o humano, e é sinal humano para acariciar e sonhar o divino. A palavra é lugar de encontro, de compromisso, de descanso, de ajuda, de luta, de consolo e de silêncio. Na palavra podemos chegar a ser tudo o que somos, ou podemos nos evaporar como o alento.
Melhor falar com palavras que estendem pontes, encurtam distâncias e entrelaçam vidas. Melhor falar a partir do carinho, da ternura e do amor, aprendendo a reconhecer tanta bondade ao nosso entorno.
Com as palavras podemos sacudir as consciências, animar, levantar, entusiasmar, despertar desejos de ar-
riscar-nos a viver a fundo; ou podemos desanimar, atrofiar, destruir, seduzir para fazer da vida um acontecimento trivial e sem sentido. É melhor calar aquilo que levanta muros e gera desconfiança e fraturas; é melhor calar o que envenena os sonhos e atrofia as vidas.

“As palavras que vos falei são Espírito e são vida” (Jo 6,63)
Para nós cristãos, trata-se de algo definitivo: a Palavra se fez carne. E compartilhou nossos caminhos, sentou-se em nossas mesas para revelar-se, para dar-se a conhecer, para despertar vida... Jesus foi o homem que movia com suas palavras vivas. É no encontro com a Palavra encarnada que brotam em nós palavras criativas, carregadas de esperança e de sentido. As palavras nos tocam e nos constituem.
Fora do percurso da palavra encarnada, vivemos intoxicados de palavras, ou seja, um amontoado de palavras mortas, sem carne, sem entranha, sem verdade, modelando seres adoecidos e desencarnados.
A palavra tem um peso, porque sua ressonância permanece. Em tempos de “sociedade líquida”, também nossa palavra pode escorrer e evaporar-se.
Hoje, muita gente prefere Snapchat a WhatsApp ou outras redes sociais porque o conteúdo se evapora em poucos minutos. É a volatilidade das palavras que desemboca na volatilidade da comunicação e da relação. Por isso, precisamos de um novo Pentecostes, ser penetrados pelo Espírito que nos leve a nos entender, apesar de falar línguas diferentes.

É curioso: o evangelho diz com palavras muito simples e cotidianas as coisas mais profundas. Nós, com palavras complicadas e com jargões, que só os iniciados entendem, ou não dizemos nada significativo ou cobrimos o fato de não ter nada que dizer. No entanto, em nossa cotidianidade, são as simples palavras que nos ajudam a assumir os desafios da nossa existência. Não é que as outras grandes palavras sobrem. Mas é que essas palavras pequenas e simples são as que nos fazem sentir e saber-nos em caminho de Evangelho, de Reino de Deus.

Que nossas palavras sejam sempre vivas! ...e a serviço da vida!


Texto bíblicoJo 6,60-69

Na oração:
As palavras, para que tenham sentido e função, para que não se tornem falsas nem dolorosas, deveriam passar pelo filtro da mente e do coração. Seguindo o conselho de S. Agostinho, as palavras deveriam antes passar pela lima que pela língua, para que cheguem à boca polidas pela inteligência e pelo amor.
- Considere sua história de vida e tente recolher delas as palavras que, espalhadas no chão de sua existência, foram criadoras de possibilidades e abertura sem limites.
- Quê palavras estão em excesso em seu falar? Quê seria melhor calar? Em quê seu falar é bem-dizer? Em quê circunstâncias da vida suas palavras são carícia, bálsamo, consolo?


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

ASSUNÇÃO: a plenitude do encontro

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Assunção de Maria.

“Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”

Na festa da Assunção, a liturgia nos propõe aprofundar o sentido do encontro a partir da contemplação deste horizonte inspirador: a Visitação. Os ícones que ao longo dos séculos expressam esta visita, esta saudação, nos apresentam duas mulheres vinculadas, unidas por um abraço, por um beijo, por uma mesma alegria. Em seu modo de entrar em comunhão, em sua maneira de dialogar e de se alegrar, elas se revelam mestras para nós, para nossa humanidade fragmentada que aspira viver a “cultura do encontro”.
A cena apresentada por Lucas nos deixa na agradável e desafiante companhia de Maria e Isabel: duas mulheres, dois ventres cheios de vida; duas mulheres cheias de Deus; duas mulheres em um mesmo encontro. Ambas estão grávidas e de um modo surpreendente. As duas esperam filhos muito especiais; sentem que carregam em seus ventres uma novidade que as supera. As duas tem “um corpo abençoado” e um ventre fecundo, sinal e realidade da ação de um Deus que é Vida.
Duas mulheres com duas missões diferentes: uma, portadora do Messias, e outra, portadora daquele que preparará os caminhos. Duas mulheres diferentes, mas cada uma com sua experiência de Deus. Uma, a experiência de Deus em um seio virginal; a outra, a experiência de Deus em um seio seco e estéril. No encontro entre as duas, cada uma descobre e reconhece o mistério da presença de Deus na outra.

O ícone da Visitação contagia e desperta o prazer e a alegria: a do encontrar-se, a do crer e a do servir. Alegria fecunda, já que está ligada a dois nascimentos que vão mudar a história de seu povo e da humanidade.
Nesta cena, Deus mesmo se infiltra no cotidiano e naquilo que socialmente não tem maior relevância, ou seja, a vida diária de duas mulheres: Maria e Isabel. Quebra-se assim a centralidade do Templo. Elas festejam as maravilhas do Senhor em um lugar simples, numa região montanhosa, num caminho e numa casa de família simples. O maravilhoso e extraordinário tem lugar no ordinário e humilde. Ali se celebra a vida chegada e por chegar. As protagonistas da cerimônia são duas simples mulheres.
Neste maravilhoso acontecimento tudo é encontro, junta-se o Antigo e o Novo Testamento, a juventude e a idade madura. As duas mulheres estão profunda e intimamente vinculadas entre si. Com elas e delas nasce o tempo novo, o do Reino, o de Jesus. Tem-se a impressão de viver um momento culminante da história. Elas nos conduzem a agradecer a capacidade feminina de deixar transparecer o Mistério que nos habita, de despertar-nos uns aos outros para essa Vida cuja presença reconhecemos em nosso interior.

Maria, aquela que sente o êxodo de Deus, saindo de si mesmo, para encarnar-se no seu seio virginal, e que a move a pôr-se em caminho, saindo de si mesma, porque o serviço aos outros a apressa.
Maria é a Mulher que inaugura e estabelece os critérios para encontrar-se com o Senhor e com os(as) demais. Sua capacidade de encontro parte de uma experiência de profunda interioridade; interioridade visitada por Deus e, portanto, fecundada por seu olhar cheio de amor e ternura, cheio de compaixão pela humanidade e pela criação. Só a partir de uma interioridade fecunda se dá a possibilidade dos encontros mais verdadeiros.
Na Laudato si (n. 240) o Papa Francisco nos diz que “a pessoa humana mais cresce, mais amadurece e mais se santifica à medida que entra em relação, quando sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim, assume em sua própria existência esse dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a criação. Tudo está conectado, e isso nos convida a amadurecer uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade”.

O dogma da Assunção, festa do encontro pleno, nos revela que precisamos nos converter à cultura do encontro em todos os sentidos. Maria foi “assumida” para o encontro definitivo com Deus porque foi presença que inspirava e proporcionava encontros humanizadores. Ela “subiu” porque “desceu” ao encontro dos preferidos do Pai.
Maria, na cena da Visitação, passa da interioridade ao acontecer, à história, ao encontro. É assim como se dá uma autêntica experiência de Deus. Ela nos mostra que tal experiência tem dois pés: um posto na experiência do amor de Deus que nos visita, e outro posto sempre no caminho que precisamos percorrer para ir ao encontro dos demais. Os dois pés são indispensáveis para que a experiência de Deus seja cristã, seja encarnada, seja Visitação. Os dois pés, sempre em movimento cordial: de sístole e diástole.

Deus começa sempre pelo coração; mas logo desce aos pés. Em outras palavras: Deus põe pés no coração.
Maria recebeu do anjo a notícia que sua prima Isabel estava esperando um filho e já estava no sexto mês
de gestação. Não foi necessário que Isabel pedisse a Maria e solicitasse seus serviços. O amor descobre as necessidades dos outros; o amor não necessita que ninguém lhe peça favores, nem que alguém lhe solicite serviços. Maria não esperou o chamado de Isabel. Porque o amor não espera, antecipa. O amor sempre tem pressa, não sabe esperar. O amor não fica em sentimentos; o amor se faz gesto, atitude, caminho e serviço.  “O amor consiste mais em obras que em palavras” (S. Inácio).
O amor põe o coração em caminho; o coração põe pressas aos pés. Amor, coração e pés se fazem serviço aos demais. Quando amamos, nossos pés se põem em caminho: levar alegria aos outros. Por isso, nesta visita e neste encontro, todas saltam de alegria: João salta de alegria no ventre de Isabel. Isabel salta de alegria e extravasa seu júbilo. Maria salta de alegria e entoa seu hino de reconhecimento e agradecimento.
Isabel encheu-se de surpresa ao ver a surpreendente Maria diante de si. E não pode segurar sua alegria; por isso, também explodiu em um grito de louvor e reconhecimento.

Nosso mundo está carente de Visitação, de uma vida cristã com iniciativa e experiência de encontros, que deixe suas seguranças, que saia, atenta às necessidades dos demais, que cuide da vida que há nela e onde queira que esteja germinando ou tenha possibilidades de acontecer; assim entendemos a vida cristã vinculada com a terra e o cuidado da casa comum.
Encontrar-nos é construir pontes e derrubar muros, é desafiar a cultura do desencontro, da fragmentação e do descarte. Os encontros mudam nossa vida e vamos descobrindo nossa identidade através deles. Eles nos colocam em atitude de êxodo, de saída, de Visitação.
O encontro, quando se dá a partir da experiência de Deus, que é contemplação e saída, se torna autêntica e solidária profecia.

Texto bíblicoLc 1,39-56

Na oração:
É indispensável situar-se na cena da Visitação; escutar as duas mulheres que conversam entre si; seguir seus passos, proceder como elas, viver hoje o que elas viveram.
A Visitação é, portanto, um convite a “cruzar montanhas”, transpassando fronteiras, abrindo buracos nos ilusórios muros de classe, de cultura, de raça, de gênero, de religião, etc... Cruzar montanhas, saindo apressadamente ao encontro do outro, para fazer a experiência de viver, em ritmo de Vi-sitação, o regozijo da vida divina que habita no humano e se expande na criação inteira.

- Como encarnar o ícone da Visitação no seu ritmo cotidiano? Há lugar para encontros surpreendentes?

sábado, 11 de agosto de 2018

O desafio de “ser pão” para os outros

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 19º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


“Quem come deste pão viverá eternamente” (Jo 6,51)

Continuamos no capítulo 6 do Evangelho de João. Aumenta a tensão entre os judeus e Jesus. À medida que Jesus vai aprofundando no seu ensinamento, vai aparecendo a enorme diferença existente entre o que eles aprenderam da tradição e o que Jesus lhes quer transmitir. E vão aparecendo as doentias murmurações.
E começaram a murmurar contra Jesus”.          
Murmuravam porque Jesus havia dito: “eu sou o pão vivo descido do céu”. É o mesmo verbo para falar das murmurações dos israelitas no deserto contra Moisés, por não lhes dar alimento, como eles tinham no Egito. Jesus lhes recorda que o povo esteve contra Moisés nos momentos difíceis e agora também não confiam nas palavras do próprio Jesus.

Sabemos que a murmuração se expressa de inúmeras maneiras, sutis ou não, formando uma montanha de ressentimentos, queixas, críticas ácidas... Murmurar é contraproducente e nocivo. Alguém que murmura é uma pessoa difícil de conviver e poucas pessoas sabem como responder às queixas feitas por outras que expelem sua fuligem interior. O trágico é que, uma vez expressa, a murmuração leva ao que mais se queria evitar: um afastamento maior. Essa murmuração íntima é sombria e pesada: condenação dos outros, condenação de si mesmo, justificativas... entrando numa espiral de amargura e fechamento.
À medida que a pessoa se deixa arrastar ao interior do vasto labirinto das suas murmurações, fica mais e mais perdida, até que, no fim, acaba achando-se a pessoa mais incompreendida, rejeitada, negligenciada e desprezada do mundo.
Em um coração carregado de murmurações e queixas, o Espírito não tem liberdade de atuar; elas são a fonte poluidora de onde brotam as doentias divisões internas, que atrofiam as forças criativas, petrificam o coração, resistem ao novo e levam ao distanciamento de tudo e de todos. Com isso, a pessoa se blinda, tornando-se rígida, fechada em suas posições, crenças, valores... e não se deixa impactar pelo encontro com o diferente.
Como quebrar os ferrolhos das murmurações e estender as mãos para acolher o surpreendentemente novo? Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?

Nesse contexto “carregado”, Jesus vai abrindo um caminho de existência compartilhada, que se expressa na comunicação do pão e que culmina na comunicação de vida. Ele não se deixa afetar pelas murmurações que levam à morte.
Jesus, o “Pão da Vida”, tocou as “vidas feridas” com delicadeza e ternura e as transformou. Seus gestos terapêuticos foram o prolongamento da ação criativa de Deus; com palavras e ações Ele inaugurou no meio de nós o Reino de Vida do Pai. Não só optou pela vida e se comprometeu com a vida, mas fez de sua Vida uma entrega radical a favor da vida.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...

A comunhão com Jesus é fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do seu Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivemos até então.
A “vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já.
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, é uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá poder sobre ela.
Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida do espírito, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas de nosso coração.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude.
Vida plena prometida por Jesus: “Quem crê, tem a vida eterna”

Jesus faz-se alimento que gerar vida nova no mundo; alimentar-nos d’Ele, desperta nossa vida interior, fazendo-nos redescobrir nossa verdadeira riqueza; ao mesmo tempo, fazendo-se “pão partilhado”, Jesus

nos ensina a gerar vida, ou seja, Ele nos move a fazer com que nossa própria vida seja “alimento substancioso”, para que outros também tenham vida.
A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor com a vida”.
Nem sempre sabemos viver: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”. Quando nos saciamos com o Pão, que proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...

Ao afirmar: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu”, Jesus nos revela que a vida é sempre uma novidade que rompe velhos barris; ela é um fenômeno que emerge de forma misteriosa; ela se impõe, simplesmente.
Tal realidade desperta fascinação, provoca admiração e veneração... porque a vida é sempre sagrada. Diante dela ficamos extasiados, boquiabertos, escancarados os olhos e afiados os ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna. A vida é sempre emergência do novo e do surpreendente.
Portador de uma vida inesgotável, somos muito mais que o simples resultado de nossos esforços e lutas. Vivemos para mergulhar em algo diferente, novo e melhor.
Nossa vida não é um problema a resolver, mas uma experiência a acolher, uma aventura a amar e um mistério a celebrar. Afinal, somos discípulos(as) permanentes na escola do Mestre da vida!
Nesse sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cuja aprendizagem nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração cheio de nutrientes, dele haurir a força da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...


Texto bíblicoJo 6,41-51

Na oração:
Para viver a partir do ser mais profundo, é preciso dedicar, cada dia, algum tempo de atenção ao próprio coração e aprender a regozijar-se da maravilhosa vida de Deus em cada um.
Basta um repouso e o estar presente para fazer acalmar a agitação interior e aproximar-se da fonte da vida.
- Temos nas mãos e no coração a opção de viver “em chave de murmurações” (queixas, ressentimentos e desencantos) ou “em chave de benção”, descobrindo na vida a presença d’Aquele que nos faz estremecer de alegria, desafiando-nos a ser “pão para os outros”.
- Sua vida cotidiana: “pão amargo de murmurações” ou “pão substancioso de bênçãos”?

sábado, 4 de agosto de 2018

Ser Pão que Ativa e Sustenta Vidas

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 18º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


“Quem vem a mim não terá mais fome...” (Jo 6,35)

Continuamos seguindo o cap. 6 do evangelho de S. João. No texto deste domingo Jesus entra diretamente em discussão com os judeus e o v. 59 diz expressamente que este encontro conflituoso teve lugar na sinagoga de Cafarnaum. Estamos no início de uma discussão longa e dura, na qual Jesus vai aprofundando as exigências do seguimento. E, à medida que Ele vai radicalizando o discurso, aumenta a distância dos seus ouvintes. O processo será esse: entusiasmo, dúvida, desencanto, desilusão, oposição, rejeição, abandono.
O diálogo tenso des-vela a real motivação daqueles que O buscavam, não porque tinham visto sinais, mas porque comeram pão até ficarem saciados. O “sinal” tinha sido um convite a compartilhar. Mas eles se fixaram só na satisfação da própria necessidade. Esvaziaram o sinal de seu conteúdo. Essa busca de Jesus é vazia, porque eles só estavam atrás da segurança alimentar. Jesus vai diretamente ao ponto e desmascara tal intenção. Não buscavam a Ele, mas o pão que Ele lhes deu. Não O buscavam porque Ele abriu as portas de um futuro mais humano, mas se fixaram nos seus próprios interesses.

“Eu sou o pão da Vida”. Em todos os grandes discursos que encontramos no 4º. Evangelho, há uma referência explícita à Vida, com maiúscula. Trata-se de uma realidade que não podemos explicar com palavras, nem enquadrá-la em conceitos humanos. Somente através de símbolos e metáforas podemos indicar o caminho de uma vivência que é o único que nos levará a descobrir de quê se está falando.
A Vida que Jesus promete não vem de fora e de maneira espetacular, como o maná no deserto. Ela está presente em cada um e se manifesta no cotidiano, como amor descentrado, como partilha dos dons, como preocupação pelo outro. Esta Vida interior é ativada pela adesão e identificação com a pessoa de Jesus. Daí a necessidade de trabalhar pelo alimento que dura dando Vida definitiva. Este apelo de trabalhar em favor da Vida, é o resume de toda a mensagem do evangelho deste domingo.

Jesus salva e alimenta porque é pão. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Devemos unir a imagem de Jesus/pão com a imagem Jesus/grão de trigo que é triturado para ser alimento e fecundar a vida. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”.
Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido!
Em nosso interior há uma reserva de nutrientes, de pão substancioso, que corre o risco de perder a validade, se não é compartilhado. O centro da vida é “pão”, e (como Jesus), só somos pão na medida em que partilhamos o que somos e temos.

Tal como Jesus, todo(a) seguidor(a) é chamado(a) a ter vida e a ser vida. E vida expansiva. A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho. Vida é encontro, interação, comunhão. Vida é solidariedade. Vidas são olhares que se cruzam, são mãos que se estendem e se estreitam, são passos que rompem distancias e se interligam. Somos chamados a ser “biófilos”, amigos e defensores da vida. 
 “É entre nossas mãos que está a vida” (Bloch). Nossas mãos não podem jogar fora a vida. Nossas mãos precisam manter, nutrir e proteger a vida. Nossas mãos devem ser protagonistas para sustentar a vida, precisam dignificar a vida. Nosso compromisso é preservar a vida que dança em nossas mãos.
Nas raízes profundas do nosso ser, reside a Biofilia, o amor à vida.

“Eu sou o pão da vida”. O encontro com a Vida que se faz Pão nos move a buscar o sentido de nossa própria existência; e quem encontra o sentido se torna dinâmico, persegue um horizonte, abre-se a uma causa mobilizadora. Para isso é necessário outro ritmo de vida, que nos permita vivê-la com mais sabor, com mais autenticidade.
A vida é vivida intensamente quando a força do “Pão da Vida” atua, impulsionando a abrir, a avançar, a progredir. Porque a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor.
É este dinamismo de amor que somos chamados a contemplar no mistério do Pão da Vida, do qual cada pessoa é uma pequena, mas preciosa imagem. O(a) seguidor(a) de Jesus deixa refletir esta imagem em sua vida concreta de cada dia quando vive esse dinamismo do “pão partilhado”, numa relação cordial, aberta e receptiva à originalidade do outro, entrando num verdadeiro dinamismo de vida. Um dinamismo de amor.

A adesão a Jesus, portanto, não fica na exterioridade. Ele não é modelo exterior a ser imitado, e sim, é presença interiorizada. Essa comunhão íntima muda o interior do(a) discípulo(a), possibilita a sintonia com Jesus e faz viver a identificação com Ele.
Fazendo-se alimento, Jesus nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade, desperta nossa vida, arrancando-a de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
E Jesus não somente vai conosco, mas nos precede, nos sustenta e, na liberdade de seu amor, nos impele a ampliar nossa vida a serviço. Toda peregrinação, em clima de admiração e assombro, se revela rica em descobertas e surpresas, e desperta o coração para dimensões maiores que a rotina de cada dia.
Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição.

Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e sobretudo na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.
Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco).
Todo ser humano carrega “outras fomes” em seu interior. Jesus procura despertar nas pessoas uma fome diferente: Ele lhes fala de um pão que não sacia a fome de um dia, mas a fome e sede de vida plena.
Ou seja, ser seu seguidor é associar-se à Sua Fome: aliviar o sofrimento humano. Trata-se de uma “fome humanizadora”: fome de comunhão, de cuidado, de compaixão..., fome de novas relações, de um mundo novo... Fome de vida! Jesus quer oferecer-lhes um alimento que pode saciar esta fome de vida.

Texto bíblicoJo 6,24-35

Na oração:
Jesus é Aquele que sabe a arte de despertar fomes.
Estamos saturados de “coisas”, mas carentes de fome. Quem tem fome, busca, cria, constrói... Quem não tem fome cai numa apatia paralisante.
Experimentamos fome quando saímos de nós mesmos, quando nos consumimos no trabalho pelo Reino, quando nos empenhamos por abrir caminhos de humanização...
- Quais são minhas fomes existenciais?
- Vivo faminto de sabedoria? Ou me contento com alimentos que não saciam?
- Em quê circunstâncias experimento ser “pão de vida”?
- Quê pão me sacia existencialmente? De quê tenho fome?