sábado, 30 de março de 2019

Descobrir o Pai que nos Habita

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo do Tempo da Quaresma.

“Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e foi tomado de compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e o cobriu de beijos” (Lc 15,20)).

As parábolas mais belas que saíram dos lábios de Jesus, elaboradas nas profundezas de seu coração, foram aquelas nas quais deixou transparecer a todos a incrível misericórdia de Deus.
A mais cativante, com certeza, é a parábola do “pai misericordioso”. Aqueles que a escutaram pela primeira vez certamente ficaram surpreendidos. Não era isto o que eles ouviam dos escribas ou dos sacerdotes. A insistência “moralista” no pecado nos fez interpretar esta parábola de uma maneira unilateral. É incorreto chamar o relato de “parábola do filho pródigo”. Ela não é dirigida aos pecadores para que se arrependam, mas aos fariseus e mestres da lei para que mudem sua ideia e imagem de Deus.
Nesta parábola, Jesus justifica sua postura para com os publicanos e pecadores, des-velando quem é o Deus de misericórdia para todos nós, sejamos “bons” e “maus”. Na maneira de atuar com os dois filhos, o pai da parábola torna visível o rosto do Deus compassivo revelado por Jesus e não o “deus legalista do templo”; a maneira como Jesus acolhe os pecadores e excluídos, torna presente o Deus que ama a todos indistintamente.
Jesus não fala nunca de um Deus indiferente ou distante, esquecido de suas criaturas ou interessado por sua honra, sua glória ou seus direitos.  No centro de sua experiência religiosa não nos encontramos com um Deus “legislador” procurando governar o mundo por meio de leis, nem com um Deus “justiceiro”, irritado ou irado diante dos pecados dos seus filhos e filhas. Para Jesus, Deus é compaixão, e a compaixão é o modo de ser de Deus, sua primeira reação diante de suas criaturas, sua maneira de ver a vida e de olhar às pessoas, o que move e dirige toda sua atuação. Deus sente para com suas criaturas o que uma mãe sente para com o filho que leva em seu ventre. Deus nos carrega em suas entranhas misericordiosas.

A compreensão da “parábola do amor paterno-materno de Deus” pode ser para nós uma verdadeira iluminação. Ela revela não só o “coração compassivo” de Deus, mas também vemos, refletida nela, de maneira sublime, tudo o que devemos aprender sobre o “falso eu” e o nosso verdadeiro ser.
Os três personagens representam diferentes aspectos de nós mesmos.
A “parábola dos dois filhos” trata de uma denúncia implacável contra a espiritualidade farisaica. Em primeiro lugar, tanto o filho mais novo como o primogênito habitam em cada um de nós; podemos encontrar em cada um deles, elementos que nos levem a identificar-nos com ambos.

Temos considerado a parábola como dirigida aos “filhos pródigos”. O “filho mais novo” simboliza nossa natureza egocêntrica e narcisista que nos domina enquanto não descubramos o que realmente somos. Dá por suposto que todos temos muito do filho mais novo, que é aquele que rompeu a aliança e se distanciou da casa paterna. A verdade é que a atitude do filho mais velho também deveria ser objeto de uma atenção mais cuidada. É relativamente fácil sentir-nos “filho pródigo”. É fácil tomar consciência de ter dilapidado um capital que nos foi entregue sem ter merecido. É fácil cair na conta que temos rompido com o pai e com a casa, que temos desejado que ele estivesse morto para herdar seus bens, temos renegado o entorno no qual se desenvolveu nossa existência. Tudo para potenciar nosso egoísmo, para satisfazer nosso hedonismo à custa daquilo que nos foi entregue com amor. O fracasso do filho mais novo e a desesperada situação à qual chegou, facilita a tomada de consciência de que tomou o caminho equivocado.

É difícil descobrir em nós o “irmão mais velho” e, no entanto, todos temos mais traços deste que do filho mais moço. Com frequência, não entendemos o perdão do Pai para com os pródigos, nos irrita que outra pessoa que se comportou mal seja tão querida como nós; não percebemos que rejeitar o irmão é rejeitar o Pai; caímos facilmente na queixa que envenena e no julgamento que mata. Não só não nos sentimos identificados com o Pai, mas buscamos, por todos os meios, que o Pai se identifique conosco; coisa que não se passa na cabeça do irmão mais novo. A partir desta perspectiva, tampouco descobrimos que precisamos de conversão e temos de regressar ao Pai. Por isso, a parábola deixa em um suspense inquietante a resposta do irmão maior; não nos diz se ele acolheu o apelo do Pai e se incorporou à festa. Isto nos faz pensar.

A descoberta de que somos o irmão mais novo e, ao mesmo tempo, o irmão mais velho, nos faz perceber o objetivo da parábola, que é o Pai. Todo temos de deixar de ser “irmão mais novo” e “irmão mais velho” para converter-nos finalmente em “Pai”.
Todos somos chamados a deixar de ser irmãos e identificar-nos com o Pai, como Jesus (aqui podemos descobrir um profundo significado da frase de Jesus: “Eu e o Pai somos Um”). Nossa maturação pessoal acontece quando deixamos transparecer em nós a figura do Pai. “Sede misericordiosos como vosso pai é misericordioso”. A parábola de hoje nos faz tomar consciência que sempre haverá, em nossa vida, etapas a serem superadas, na direção do coração compassivo do Pai.
Permanecer distanciados de nosso verdadeiro ser é afastar-nos de Deus e caminhar na direção oposta à nossa plenitude.
Daí a necessidade de interpretar a parábola não a partir da perspectiva de um Deus externo a nós, mas a partir da perspectiva de um Deus que se revela dentro de nós mesmos. Nós mesmos somos o Pai/Mãe que perdoa, acolhe e integra tudo o que há em nós de fragilidade e engano. Ser verdadeiro(a) filho(a) não é viver submetido ao pai ou afastado dele, mas imitá-lo até identificar-nos com ele.
O “pai” é nosso verdadeiro ser, nossa natureza essencial, o divino que há em nós. É a realidade que temos de descobrir no fundo de nosso ser. Não faz referência a um Deus que nos ama a partir de fora, mas ao que há de Deus em nós, formando parte de nós mesmos. É o fogo do amor compassivo que derrete a frieza nos nossos relacionamentos, queima toda pretensão de julgamento e intolerância, e ativa o impulso ao contínuo retorno à casa paterna.  Essa realidade fundante tudo abarca e tudo integra nela mesma.

Para re-descobrir o(a) “pai-mãe que nos habita”, não supõe ignorar nossa condição de “irmão mais novo” e “mais velho”; é preciso aceitá-la, é preciso saber conviver com o que ainda há em nós de fragilidade e imperfeição. Devemos buscar superá-la, mas enquanto esse momento não chega, é preciso aceitá-la e ultrapassá-la, ativando o amor incondicional do Pai. Tanto o irmão mais novo como o irmão mais velho que há em cada um de nós, deve ser objeto do mesmo amor. A parábola não exige de nós uma perfeição absoluta, mas que caiamos na conta de que nos resta um longo caminho a percorrer. O que ela pretende é colocar-nos no caminho da verdadeira conversão: a superação do auto-centramento e do perfeccionismo.
Falta-nos dar o último passo no desprendimento do ego e para nos identificar com o que há de divino em nós, o Pai.


Texto bíblicoLc 15,1-3.11-32

Na oração:
“Eu e o Pai somos Um”: é a melhor expressão de quem foi Jesus.
Você também é “Um com Deus”, mas talvez não tenha se inteirado disto; descubra-o e esta frase saltará do mais profundo do seu ser.
- Descubra o que há em você do irmão mais novo: deixar-se levar pelo hedonismo individualista, buscar o mais fácil, o mais cômodo, o que o corpo pede... Seu objetivo é satisfazer as exigências de seu falso “eu”.
- Descubra o que há em você de irmão mais velho: distante do coração do pai, fechado na queixa amarga e incapaz de expressar um gesto de acolhida.
- Descubra as marcas do Deus Pai/Mãe nas profundezas de seu ser: cheio de compaixão, festeiro, aberto à vida...

sexta-feira, 22 de março de 2019

O Círculo Infernal da Culpa

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo da Quaresma.

“Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?” (Lc 13,4)

O evangelho deste domingo, exclusivo de Lucas, apresenta uma reflexão sobre a conversão, em forma de parábola, a partir de dois acontecimentos trágicos que causaram comoção no povo judeu.
O relato traz à tona este eterno problema: é o mal consequência de um pecado? Assim pensavam os judeus no tempo de Jesus e assim continuam pensando a maioria dos cristãos hoje. Ou seja, uma “visão distorcida” de Deus, leva a acreditar que tudo o que acontece é manifestação de sua vontade. Os males são considerados castigos e os bens são considerados prêmios.

Para entender a “novidade” da resposta de Jesus, é preciso saber que, na mentalidade judaica, a enfermidade e o mal, em geral, eram consequência do próprio pecado. A ausência do mal, pelo contrário, era considerada sinal da benção divina.
Por isso, aqueles que sofriam qualquer calamidade ou enfermidade se convertiam automaticamente em objeto de juízo condenatório por parte dos outros; diante do olhar preconceituoso e julgador, eles se sentiam acuados por um angustiante sentimento de culpabilidade e desesperança. A desgraça os limitava; a culpabilidade os afundava.
Jesus se declara completamente contra essa maneira de pensar. Ele se distancia dessa ideia tradicional, desatando o nó “religioso” entre sofrimento e pecado, entre culpa e o mal.
Para Jesus, a relação de Deus conosco se situa numa dimensão mais profunda.
Devemos deixar de interpretar como atuação de Deus aquilo que é próprio das forças da natureza ou consequência da maldade e violência humana. Nenhuma desgraça que possa nos alcançar devemos atribui-la a um castigo de Deus.
Devemos romper com essa ideia de Deus, senhor ou patrão soberano que, a partir de fora nos vigia e exige seu tributo. De nada serve camuflá-la com estas sutilezas: “Pode ser que Deus não castigue nesta vida, mas castigará na outra vida”; “Deus nos castiga, mas é por amor e para salvar-nos”; “Deus castiga só os maus”; “Merecemos o castigo, mas Cristo, com sua morte, nos livrou dele”.
Pensar que Deus nos trata à base de pancadas e prêmios, é ridicularizar a Deus e ao ser humano.

Somos tecidos pela culpa desde o nascimento; somos acompanhados por ela durante toda a vida.
Ela nos prende facilmente em suas teias, impedindo a manifestação da força vital que há em nós.
Sabemos que o sentimento de culpa pode ser paralizante, ameaçador, freio e obstáculo tanto para o desenvolvimento de uma comunidade humana quanto para o crescimento de uma pessoa; esta, centrada no próprio eu, fica “ruminando” seus limites e fracassos, caindo no desespêro e não percebendo nenhuma saída para sua situação.
O sentimento de culpa causa sérios danos que acabam afundando existencialmente as pessoas: isso gera a irresponsabilidade que infantiliza, a passividade que leva ao fanatismo, a atrofia da criatividade, o medo paralisante, o sentimento de indignidade...
Também a imagem do Deus Amoroso, do Deus vivo e prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de nossa consciência e inconsciência, marcadas pela culpabilidade.
Por obra e força da culpa, “Deus” converte-se em “deus” de morte, em “deus” oprimido e opressor, em “deus oni-vigilante”, que investiga morbidamente nossa interioridade para captar e julgar qualquer desvio. A este “deus” nada escapa: ele vê tudo, escuta tudo, controla tudo...
A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar... que muitas vezes tornam difícil reconhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa Nova.
 “Assim como Deus nos libertou do pecado... torna-se urgente libertar Deus da culpa” (Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas nossa culpa o transformou num “Deus de morte”. “Libertar Deus da culpa” significa “deixar Deus ser Deus”, abrir espaço para que Ele manifeste sua presença providente e amorosa.

A atitude sadia, portanto, é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem entende a vida como “resposta” (essa é sua etimologia) coerente com as diferentes situações que se apresentam. É a responsabilidade que desperta pesar e dor nas ocasiões em que, afastando-nos da fidelidade ao melhor de nós mesmos, provocamos dano aos outros ou ao nosso meio. Mas esse pesar doloroso, diferente da culpabilidade, não paralisa nem afunda, senão que mobiliza para a mudança.

A consciência responsável, de modo especial, nos move para a cura, a reparação; ao longo da experiên-cia, com a ajuda da Graça e em constante discernimento, poderemos experimentar a contrição que leva à  mudança, à busca de alternativas melhores de comportamentos e atitudes, a assumir modos de agir que tornem possível uma vida mais plena e amorosa. Só quando tomams consciência do dano feito é possível restaurar as condições que favoreçam logo um viver  mais feliz e pleno.

É esta responsabilidade que podemos associá-la com a conversão, pedida pelo evangelho de hoje. Porque o “perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça nem castigo, mas simplesmente como a consequência de uma atitude e um comportamento desajustados.
“Se não vos converterdes, todos perecereis”. A expressão não traduz adequadamente o grego “metanoia”, que significa “mudar de mentalidade, ver a realidade a partir de outra perspectiva”.
Jesus não diz que aqueles que morreram nas duas tragédias não eram pecadores, mas que todos somos igualmente pecadores e precisamos mudar de rumo. Sem uma tomada de consciência de que o caminho que fazemos nos leva ao abismo, nunca estaremos motivados para evitar o desastre. Se somos nós que vamos caminhando para o abismo, só nós podemos mudar de rumo.
Todos devem assumir a responsabilidade de suas ações. Não somos marionetes nas mãos de Deus, mas pessoas, ou seja, seres autônomos que devemos assumir nossa responsabilidade. A melhor tradução seria: “se não aprendes, inclusive com os erros, perecerás”.
Dizendo de um modo mais simples: se não somos responsáveis, se não respondemos humanamente aos diferentes desafios que a vida nos apresenta, estaremos fechando a saída, alimentando infelicidade para nós mesmos, tornando a convivência impossível e destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre.

Libertados do “círculo infernal da culpa”, agora sim, podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa. Temos diante de nós a nobre missão de transformar a realidade em Reino, e isso não será possível enquanto vivermos aprisionados nas malhas da culpa; enquanto a lei, o pecado e a culpa nos enredarem, não será possível perceber a novidade do Reino, que conduz à própria liberdade e à dos outros, à própria aceitação de si mesmo e à aceitação e ao amor aos outros.
O “Deus de Jesus” é Aquele que nos des-centra e nos lança à realidade, com toda a dureza que esta pode nos apresentar em muitos momentos de nossa existência; em lugar de solucionar os problemas, Ele prefere nos dinamizar para que nós mesmos trabalhemos na busca de soluções. Deus é a plenitude de todas as aspirações humanas. Não há porque temer o Deus de Jesus.


Texto bíblicoLc 13,1-9

Na oração:
Examinar com cuidado a origem dos sentimentos de culpa, pode produzir um grande avanço no caminho da saúde interior e espiritual. Es-clarecer, desmascarar a culpa, pode ser muito libertador, pois fortalece nossa atitude esperançosa; nossa  relação com  Deus, com o mundo e com os outros revela-se mais transparente e otimista.
- Sua relação com Deus tem a marca da confiança amorosa ou está carregada de culpa paralisadora?

domingo, 17 de março de 2019

A Transparência de um Rosto

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo do Tempo da Quaresma.

“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29)

O evangelho deste domingo recorda a Transfiguração de Jesus no monte (o Tabor da vida), face a face, diante do Pai e diante de seus três amigos, revelando assim seu rosto diante de todos. Ele quer que o vejam, que todos o vejamos (com Moisés e Elias), descobrindo assim o rosto do “Deus invisível” no rosto dos homens e das mulheres, para compartilhar com eles(as) vida e conversação.
O evangelista Lucas insiste em centrar a atenção do rosto de Jesus, que “muda de aparência”, se ilumina e aparece como revelação de Deus. Neste tempo quaresmal, Jesus nos faz subir ao monte e se transfigura (se desnuda e se reveste de glória), para que descubramos seu rosto, para que o vejamos, o contemplemos, de forma que saibamos quem Ele é, e possamos dialogar com Ele, em admiração, beleza e compromisso de seguimento evangélico. Pois bem, esse rosto de Deus que se ilumina em Jesus sobre a montanha se estende e se encarna no rosto de cada ser humano, sobretudo dos mais pobres e excluídos.

Dessa forma, Jesus identifica a estética (beleza do rosto) com a ética: move-nos a descobrir Deus nos rostos dos outros, acolhê-Lo presente nestes rostos e dialogar com Ele; deixar-nos interpelar por cada um destes rostos (enfermo, encarcerado, estrangeiro, excluído...), pois eles são em Cristo (sobre o Tabor da história) a beleza e presença suprema de Deus.
É muito frequente na Bíblia a menção à Face de Deus para indicar a sua presença e o reconhecimento recíproco entre Ele e o ser humano. “É tua face, Senhor, que eu procuro, não me escondas tua face” (Sl 27,8).
A face humana tem sempre muito a dizer; por isso, é preciso iluminá-la com a transparência da Face de Deus. E, assim, a face humana se tornará, cada vez mais, face divinizada.
A revelação bíblica, ao afirmar que Deus se “fez rosto” e que o ser humano é imagem de Deus, privilegiou o rosto humano. No entanto, hoje, a “deformação do rosto de Deus” ameaça essa face humana, desprezada pela violência preconceituosa, pela intolerância e pelo anonimato das grandes cidades.
Daí a urgência de uma reflexão sobre o rosto que se abre à eternidade, ao inesgotável, e que nos conduzirá ao “Rosto dos rostos”, o de Deus “humanizado”, para permitir-nos decifrar nele a face humana e o ícone do ser humano divinizado. Além disso, todo rosto, por mais desgastado ou destruído que esteja, revela-se único e inimitável, para quem consegue ver com o olhar do coração.

Nós conhecemos os rostos, temos familiaridade com os rostos, aprendemos a colher as suas expressões e nelas ler o interior da pessoa. Na realidade, não vemos com os olhos, vemos com o nosso rosto.
Dizendo de outro modo: o “olhar” não se encontra nos olhos, mas no rosto. Os olhos nada dizem, mas o rosto com que olhamos guarda um segredo. É o rosto que desvenda o mistério do olhar. O rosto da mãe revela à criança o segredo do seu olhar. E o rosto da criança revela à mãe o segredo do seu olhar.
A palavra é a linguagem dos pensamentos, o rosto a linguagem das emoções, uma linguagem universal, não ensinada e não aprendida em parte nenhuma, mas por todos compreendida. As emoções falam a mesma língua em todos os tempos e lugares.
A face humana é carregada de sentido. Fala, sem utilizar palavras; diz, sem soltar a voz. De repente, a face humana apresenta-se, comparece inesperadamente.
A face humana é mistério. Ata e desata segredos. É presença. Está exposta a todos. É patente. Está aí. Pode ser vista, pode ser comentada, pode ser seguida.

As expressões do semblante, o olhar, a voz, o sorriso, é uma linguagem na linguagem, um dizer no dizer, um texto inconsciente, nascido das profundezas, que se insere no texto verbal consciente. Palavras e expressões do rosto andam juntas e se interpenetram. As expressões do rosto falam mais do que as palavras, porque manifestam inúmeros significados a partir da personalidade humana; elas completam, confirmam e por vezes contradizem o que é dito com palavras e revelam, muitas vezes melhor que as palavras, a veracidade da pessoa. Acrescentam um complemento inconsciente de cor e de verdade às palavras, às vezes absolutamente contra a vontade de quem fala. A sua espontaneidade imediata precede as intenções.
A linguagem do rosto vem do fundo. Falamos do “rosto interior”; nas suas expressões aflora o íntimo do indivíduo, o mundo dos seus estados de ânimo, os quais, sendo intrinsecamente não verbais, fogem à linguagem articulada. E é uma linguagem verdadeira porque as emoções não mentem. Na face humana, escondem-se mensagens intrigantes. A face expressa a identidade da pessoa; ela revela o universo humano, é cenário de certezas, de decisões, de dúvidas, de aspirações, de dramas, de temores, de arte...

Nesse sentido, a transfiguração re-vela outra realidade de Jesus e nossa; este “mistério” nos des-vela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.
A transparência é algo mais estável e faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus. Tem a ver com a capacidade de conhecer-se a si mesmo e de comunicar aos outros a verdade de si mesmo, que se visibiliza no rosto iluminado.
Tomamos este conceito como aquela qualidade de uma pessoa que vive e se manifesta aos outros por atos e por palavras, de maneira que fica clara sua verdade, seu sentido de pertença à comunidade dos seguidores de Jesus e sua confiança nos demais membros da mesma comunidade.

Não basta contemplar rostos humanas; importa deixar-se interpelar por eles. É preciso ser perspicaz para ler e interpretar o sentido da face humana. Só quem é transparente, possui um olhar límpido para captar o “mistério” escondido no rosto do outro. Ao contemplar um rosto, o olhar chega ao coração humano, ali onde se encontra o sabor divino mais genuíno na vida da pessoa. E quando somos capazes de olhar em profundidade o rosto do outro, com simplicidade podemos encontrar no coração dele uma “imagem” de meu próprio coração. O olhar transfigurado deve ser portador do bom aroma que atrai ao encontro e à fraternidade.
Em nosso corpo, o “rosto” tem uma importância muito especial: através dele e de seu olhar, nos mostramos e somos percebidos e encontrados. O rosto, o olhar, dão ao nosso corpo sua beleza verdadeira, tão diferente da beleza postiça dos cosméticos, das joias e vestimentas. É a beleza de um rosto que nos leva para a transcendência, a santidade. Quem se unifica e se dilata encontra, sem buscá-lo, seu verdadeiro rosto, porque a beleza do rosto, é “epifania da pessoa”. O verdadeiro rosto nasce do coração, quando este se transfigura.


Texto bíblicoLc 9,28-36   

Na oração:
Deixe que o Espírito lhe conduza até onde seus medos não ousam chegar, dentro da luz, da verdade, e da vida plena.
- É dentro de uma luz mais clara que o seu verdadeiro
rosto se revela, se refazem todos os caminhos e se superam todos os conflitos.

- Coloque-se diante de tantos rostos humanos: faça um “percurso”, começando pelos rostos mais próximos e familiares; lentamente, vá ampliando sua visão acolhendo os rostos dos mais distantes, excluídos, rostos desfigurados, sofridos, rostos que sofrem preconceitos, julgamentos... Por detrás da aparência de cada rosto, capte a presença do “rosto divino”; entre em sintonia e comunhão com todos os rostos, constituindo o grande painel do rosto universal da humanidade. Em cada rosto humano, sinta ressoar a voz do Pai: “este é o meu(minha) filho(a), o(a) escolhido(a)”.

sábado, 9 de março de 2019

QUARESMA: tempo precioso para afinar nosso interior

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 1º Domingo do Tempo da Quaresma.

“Não só de pão vive o homem” (Lc 4,4)

Antes da Quaresma, carnaval...; o carnaval é o tempo dos disfarces, o tempo das máscaras, quando ninguém quer mostrar seu próprio rosto e cada um se esconde detrás de seu próprio disfarce. Às vezes, temos a impressão que é preciso sempre estar usando máscaras, trocando-as de acordo com as circunstâncias.
Somos os mesmos, mas disfarçados. Somos os mesmos, mas dissimulando nossa identidade e revestindo-nos de qualquer outro personagem. Debaixo da aparente segurança, pulsa um rosto temeroso; detrás de uma face risonha há uma expressão de dor.
Agora, quando se apagam os ecos do carnaval, é tempo de tirar as “maquiagens”. Começamos o tempo quaresmal, o tempo do “des-velamento” (tirar o véu, ou a máscara), tempo privilegiado para deixar transparecer nossa verdade mais profunda e nossa real identidade.

Mas, o mais curioso é que a Quaresma começa também com um “disfarce”. Com as tentações, percebemos que elas não são outra coisa senão o disfarce do “demônio” para enganar e enredar Jesus. Se examinarmos bem qualquer das três tentações, nos daremos conta de que são “disfarces do mal” “sob a aparência de bem” (S. Inácio).
A tentação tem muito de sedutora e maliciosa; aí está precisamente sua força de atração. A tentação é uma sedução que atrai irresistivelmente nossa liberdade, exerce uma fascinação que nos deslumbra.
Acaso alguém quer o mal pelo mal? Acaso alguém quer afastar-se de Deus livre, voluntária e conscientemente? A mentira reveste-se de algo que a esconda e a apresente como verdade.
A tentação necessita revestir-se do bem para que nós a aceitemos livremente.
A tentação nunca apresenta o rosto descoberto. Sempre aparece escondida e disfarçada. E assim foram também as tentações de Jesus. Tratava-se de demonstrar que realmente era Filho de Deus; ou de fazer-se poderoso e dono do mundo; ou simplesmente demonstrar que nada lhe iria acontecer e que ganharia a admiração de todo o mundo se pulasse da parte mais alta do templo.
Mas, onde está o verdadeiro “disfarce” das tentações de Jesus? Está justamente no fato de procurar justificá-las com a Palavra de Deus. Portanto, utilizar Deus como uma justificação e legitimação para alimentar o ego, para fazer-se o centro, para dominar...  E esta é a pior tentação e o pior dos disfarces.

Os evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) colocam o relato das tentações de Jesus no início de sua atividade pública. Talvez, com isso, eles estão nos dizendo que, antes de começar o percurso quaresmal, é necessário confrontar-nos com nossos próprios “demônios interiores”.
Sem ter passado por aí, o mais provável é que comecemos a ver “demônios” nos outros, ou que estejamos à mercê dessas forças que permanecem ocultas, mas bem ativas, em nós, conduzindo-nos aonde não queríamos ir.
Os “demônios” dos quais o relato evangélico deste domingo fala são três e que caracterizam bem o nosso ego: o ter, o poder e a vaidade (aparentar). É neles onde o ego se entrincheira e onde se apega para sentir-se que é “algo”. Bens materiais e consumismo, poder e influência, imagem e prestígio: eis aí os interesses do ego. Então, é quando o instinto de viver se transforma em obsessão pela saúde e pela vida longa;
o instinto de ter se transforma em cobiça de acumular sempre mais; o instinto de valer, em obsessão pelo prestígio e pelo poder. É a deriva do coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda.
Se nos damos conta, o que se busca detrás deles, é uma mesma coisa: segurança. Precisamente por isso, a maneira de “desmascarar” esses “demônios” é reconhecer suas artimanhas e descobrir a falsidade de suas promessas.

O relato das tentações de Jesus não é “história” mas teologia; não é crônicas de um acontecimentos, mas as tentações são descaradamente reais. Empregando símbolos conhecidos por todos, os evangelhos nos querem fazer ver uma verdade espiritual fundamental: a vida humana se apresenta sempre situada entre dois movimentos internos opostos: um, de saída de si, de vida expansiva, aberta a todos, comprometida...; outro, de retração, de medo, de fechamento no próprio “ego”. Trata-se do “joio” e do “trigo”, presente nas raízes de nosso ser. A questão fundamental é esta: “qual dos dois dinamismos alimentamos em nossa vida?”
Que as tentações sejam três, não é casual. Trata-se de uma síntese perfeita de todas as relações que o ser humano pode desenvolver. A tentação consiste em entrar numa relação equivocada conosco mesmo, com os outros e com Deus. Uma autêntica relação humana com os outros depende, queiramos ou não, de uma adequada relação conosco mesmo e com Deus.

1ª. tentação: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. A tentação permanente é deixar-nos levar pelos instintos, pelos apetites, pelas “afeições desordenadas”. Ou seja, fazer em todo momento o que o ego exige. É negar-nos continuar crescendo e superando a nós mesmos, porque isso exige descentrar-nos, sair do círculo fechado do “eu autossuficiente”.
Nossa grande tentação hoje é converter tudo em pão. Reduzir cada vez mais o horizonte de nossa vida à satisfação de nossas necessidades, viver obcecados por um bem-estar sempre maior ou fazer do consumismo indiscriminado e sem limites o ideal quase único de nossas vidas.
Estamos vendo claramente que uma sociedade que arrasta às pessoas para o consumismo sem limites e para a auto-satisfação não faz outra coisa senão gerar o vazio e o sem-sentido nas pessoas e alimentar o egoísmo, a falta de solidariedade e a irresponsabilidade na convivência.

2ª. tentação: “Se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”. O poder, em qualquer de suas expressões, é a idolatria suprema. O poder traz sempre consigo a opressão, nunca é mediação de libertação. Adorar a Deus não significa incensar um “deus exterior”. Trata-se de descobrir o que de Deus há em nós e viver em sintonia com Ele. Nosso autêntico ser não está no ego aparente, mas no “eu profundo”. Se descobrimos nosso ser essencial, não nos importaremos esvaziar nosso falso eu e, em vez de buscar o domínio sobre o outros, buscaremos o serviço para com todos.

3ª. tentação: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo”! Realizar um ato verdadeiramente espetacular, para que todos vejam o quão grande somos. Todos nos exaltarão e nossa soberba chegará ao limite.
A resposta é esta: que deixemos Deus ser Deus. Aceitemos nossa condição de criaturas e, a partir disso, alcancemos a verdadeira plenitude.

Que esse tempo quaresmal possa ser um tempo precioso para “afinar” nosso interior: sermos mais sensíveis à realidade que nos cerca, buscar nela as pegadas de Deus que nos conduzem ao encontro, e deixar-nos alcançar pela graça de um Pai que deseja para todos nós a felicidade e a alegria.


Texto bíblicoLc 4,1-13

Na oração: Para chegar a teu verdadeiro ser, é preciso atravessar teu próprio deserto. Liberta-te de tudo que acreditas ser, para chegar ao que és de verdade. Somente em teu próprio deserto se desvelará o sentido verdadeiro de tua vida. Isso sim, impulsionado pelo Espírito.
Sozinho e no deserto, tens que tomar a decisão definitiva.
A “terra prometida” já está aí, do outro lado de teu falso eu. Mantém-te em silêncio, até que se derrube o muro que te separa de ti mesmo: o muro do poder, da vaidade, da riqueza... Deixa que a luz, que já está em teu interior, te invada por completo. Serás feliz e farás felizes àqueles que vivem junto de ti.
- Como sermos fiéis seguidores(as) de Jesus se não somos conscientes das tentações mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e estilo de vida? Desmascará-las e “dar nomes”.

terça-feira, 5 de março de 2019

QUARESMA: receber o perfume de nossas cinzas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Quarta-feira de Cinzas da Quaresma.


“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)

Quaresma é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, com os outros, com o mundo e conosco mesmo.
No Evangelho fala-se das “práticas quaresmais” da ORAÇÃO, ESMOLA e JEJUM, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de proceder de Jesus. Que sentido tem, para nossa cultura, estes três gestos que são propostos para uma vivência fecunda da Quaresma?
Em primeiro lugar, são três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), um mergulhar no mistério de Deus (oração) e ser capaz de ordenar e dirigir a própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam.
Vividos a partir da identificação com Jesus Cristo, os valores da ORAÇÃO, da ESMOLA e do JEJUM esvaziam nosso “ego” para nos aproximar dos pobres e excluídos, encher-nos de compaixão e misericórdia, exercitar-nos na prática do bem e da bondade, acolher o outro com sinceridade, perdoar gratuitamente, cuidar com ternura e admiração tudo o que nos cerca, encantar-nos com o mistério da vida, deixar-nos envolver pela graça e permitir que o amor circule em nós e no mundo, gerando vida em abundância.
Trata-se de um “modo de proceder” permanente, não só para o tempo quaresmal.

Há “quaresmas” na vida que nos atingem “fora do tempo”, em qualquer momento do ano; quaresmas que não queríamos viver e que sabemos que não nos resta outra alternativa a não ser passar por elas: enfermidades, momentos de crise, etapas de ruptura, tempos de luto por um ente querido que se foi...
Mas há quaresmas que são a vida mesma, o tempo cotidiano de muitas pessoas, especialmente dos mais empobrecidos e sofredores de nossa sociedade. Todas estas realidades não são mudas: fazem chegar seus gritos a cada um de nós e nos falam de nossa limitação, de nossa fragilidade, de nosso pecado...
Quando os fiéis entram na fila para receber, sobre suas cabeças, um pouco de cinzas, na quarta-feira que dá início à Quaresma, eles não estão fazendo um ato derrotista, nem expressando uma tristeza inútil, nem mergulhando na escuridão daquilo que o fogo destruiu. Eles estão fazendo uma profissão de fé na força da esperança. Mesmo que tudo pareça arruinado, há uma potência interior que não permite ao ser humano desistir de si mesmo nem dos outros. Ela recobra a energia do perdão, o ânimo para prosseguir no caminho da vida, a confiança nas pessoas, a amizade que ficou ameaçada.

Nossas cinzas tem um valor muito diferente segundo sua origem. A imagem de uma mulher abatida diante do incêndio de sua casa e que perdeu todos os seus pertences, não é igual à cinzas de uma chaminé da casa de campo. “Cinzas: de quê?” Essa é a questão.
Nossas cinzas são uma recordação da fragilidade na qual nos movemos na vida: o que perdemos, desperdiçamos da vida que nos foi dada; o amor aos outros que queimamos inutilmente; a terra calcificada de nossas indiferenças e de nossas cumplicidades; os sonhos que não permitimos que chegassem a ser realidade, queimados pela chama da nossa intolerância; os bons desejos que deixamos à beira do caminho, destruídos lentamente pelos pavios fumegantes...
De tudo isso temos que nos revestir; isso é o que carregamos sobre nossas cabeças, que se inclinam com humildade, ante o gesto sagrado. A sorte que temos é que nos é anunciado também um caminho novo, abre-se diante de nós um caminho para percorrer, desperta-se o fogo novo do amor, ativa-se uma nova energia criativa, mobilizam-se inéditos recursos internos... para dar uma nova feição ao nosso seguimento de Jesus.
Portanto, no sentido bíblico, a cinza é força, espírito, vida, projeto, síntese e realidade carregada de futuro. É esperança, é ressurreição; é renovação e conversão, de tudo o que é nosso e dos outros. É comunhão e renascimento. A cinza é purificação.

A finalidade da imposição das Cinzas e a vivência das práticas quaresmais (oração, jejum e esmola) é nos ajudar a fazer uma “travessia interior”. Não se trata de viver a Quaresma só retocando, com certa “maquiagem cristã”, o exterior de nossa vida. É preciso deixar que a Graça de Deus encontre liberdade para transitar pelos recantos mais “escondidos” do nosso eu profundo. “E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa”. Nosso coração há de empapar-se desta Graça, desse afeto a Jesus e ao seu Reino, que nos conduzirá até à alegria da Páscoa.
Precisamos de tempos, silêncios, espaços..., para criar um ambiente favorável para o encontro verdadeiro com Aquele que sempre vem ao nosso encontro; é preciso sair do espaço cotidiano, rotineiro, para entrar em outro espaço, amplo, provocativo, surpreendente... e deixar-nos afetar pelas coisas de Deus.
Re-descobrir o próprio lugar interior é sinal de maturidade e sabedoria de vida.
Esse lugar nada tem a ver com o êxito social, ou o reconhecimento dos outros. É um lugar interior, uma atitude de prontidão em ultrapassar todas as camadas exteriores de si mesmo e chegar à dimensão mais profunda, que nem sequer temos palavras para expressá-la. Um lugar no qual não importa nem o que os outros opinam a respeito de nós, nem sequer a ideia que fazemos de nós mesmos. Um espaço íntimo, lugar de serenidade e de intimidade, a partir do qual a Graça tem plena liberdade de atuar.
Esse lugar só se pode indicar como “o escondido”, onde aprendemos a decifrar a vida, onde temos acesso aos recursos e às riquezas mais nobres que des-velam nossa verdadeira identidade.

Ali, “no escondido”, é onde devemos acudir para orar, para tornar possível a emergência do “Deus escondido” em nós e nas transformações de nossa vida. Um lugar onde não contam os reflexos e as imagens, mas a realidade primeira, a que fica desvelada a partir do coração, o nosso interior, o centro vital que somos e a partir do qual nos nutrimos e vivemos.
“Entrar em casa” expressa bem uma atitude de movimento de fora para dentro, da rua onde transitamos indiferentes para o lugar onde vivemos a “mística do encontro”. Além disso, “entrar no quarto” indica um sinal especial de intimidade recolhida: é ali, onde é preciso fechar a porta e esperar pacientemente “Aquele que mora no escondido”.
Trata-se de fazer a experiência de entrar no “escondido”, na gruta do Horeb, na fenda das rochas do Sinai, no interior da tenda do deserto, no coração e centro da vida... Ali é onde uma visão nova e diferente da vida é possível: a d’Aquele que vê no “escondido” e sabe derramar graças como uma medida sacudida e ampla: seu próprio Coração.
Precisamos re-avivar nossas pobres práticas quaresmais: fazer do coração um espaço humilde e rico; de nossas mãos, carícia e ternura; de nossos pés, desejo de proximidade e comunhão, para ungir com o azeite e vinho de nossa fragilidade tantos feridos e quebrados que se encontram às margens de nossos caminhos.


Texto bíblicoMt 6,1-6.16-18

Na oração:
Orar é um exercício de ida ao centro, encontrar-se consigo mesmo na essência do ser, e ali encontrar-se com Aquele que é o mais íntimo: o próprio Deus.
Portanto, orar nunca foi e nem será obrigação, regra, norma, lei, mandamento, ou outra coisa qualquer que uma pessoa se sinta forçada a fazer. No dizer de S. Inácio: “orar é uma conversação entre amigos”. Orar é um exercício das pessoas que querem se encontrar, centralizar-se, para sempre agir a partir do seu centro, e não a partir de outros centros (opinião alheia, costumes, moda, meios de comunicação, conveniência, tradição, etc.). Orar é um exercício disponível àqueles que querem ter vida a partir de sua própria vida, junto com o Autor da vida, levando vida a todos.
- Qual é do seu estado de ânimo ao iniciar o percurso quaresmal?

sábado, 2 de março de 2019

Coração Divinizado

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 8º Domingo do Tempo Comum.

“O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,45)

A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano em um sentido muito mais amplo que o das línguas latinas, que evocam a vida afetiva, a sede dos sentimentos...
O coração é o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que consiste, sobretudo, no lugar do encontro com Deus.
 “O sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração” (Olivier Clément).
Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre” onde se guarda/oculta o que é mais nobre em nós. Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que o coração está cheio” (Lc 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
É no “coração”  que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
O coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, da lei não escrita e da ação misteriosa de Deus. Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e plenamente em direção a Deus e ao bem.
No coração está gravada a imagem divina oculta, “o homem de coração oculto” (1Pd. 3,4). S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de Deus”.

Aqueles que descem às profundidades do seu interior ficam fascinados pelo esplendor daquilo que contemplam. O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; aqui, todo ser humano sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unifica-ção interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência...
Por ser livre e responsável, o ser humano é capaz de decisões e de realizações, de ser artífice de seu destino e de sua história. Ele sente por dentro o impulso para a expansão de si; ele escuta por dentro o chamado a viver e a viver em plenitude.
Nesse sentido, o “coração” é, de nossa parte, o espaço divino por excelência. “Só o amor pode adentrar-se no Deus que é amor”.
Assim, a descoberta do próprio ser profundo  aproxima cada um do autor da vida: Deus.
É no coração, “última solidão do ser”, que a pessoa se decide por Deus e a Ele adere. Aqui Deus marca “encontro” com cada um. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S. Agostinho).
Chegar ao lugar do coração é dom de Deus: “Eu lhes darei um coração para conhecer-me; saberão que eu sou o senhor. Eles serão meu povo e eu serei seu Deus; eles se converterão a mim com todo seu coração” (Jer. 24,7).
Eis o “lugar” onde poderemos estar em segurança, profundamente repousados.

Um coração que vibra harmoniosamente, de modo coerente, “com ondas de frequência elevada”, nos permite perceber a realidade de um modo igualmente harmonioso; sua energia radiante, transmissora de paz, de quietude, de confiança, de abertura, alcança os outros, tornando possível o sonho da unidade entre nós e aqueles que estão ao nosso redor.
Para os antigos monges, o contrário desta abertura de coração é a “sklerokardia”, ou seja, a “dureza de coração”, que impede a entrada em si mesmo e o encontro com os outros e com Deus. O coração pode palpitar ao ritmo da soberba ou da humildade, do amor ou do ódio, do egoísmo ou da generosidade. E está cheio de mesclas: de trigo e de joio.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não veem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.

A viagem para a própria interioridade, para a terra sagrada do coração, necessita de um hábil discernimento para conhecer as armadilhas e os “inimigos” que aparecem ao longo do percurso.

Quando, numa visão mais profunda de nós mesmos e do mundo, nos vemos como criaturas que surgem do amor de Deus, e quando essa visão é fruto de uma vivência interior e transbordante, começa a brotar no coração humano um movimento de unificação para Deus.
Esse movimento é feito de confiança, de canto, de amor, de entrega, de serviço...
Por ser imagem de Deus, e porque “Deus é Amor”, o coração do ser humano é capaz do melhor: tem, dada por Deus como dom da Criação, a potencialidade de amar aos outros com o mesmo amor com que Deus lhe ama, ou seja, com um amor gratuito e generoso.
Mas, por ser uma imagem ofuscada pela limitação e pela fragilidade, o coração humano é também capaz do pior: de negar sua origem e sair ao encontro com a realidade a partir de suas potencialidades necrófilas (forças de morte); de viver dando as costas a Deus e distorcendo a imagem essencial de seu Criador; de se preocupar com o “cisco” no olho do outro, assumindo atitudes intolerantes e julgadoras...

Quando nosso coração está centrado em Deus, ou seja, quando ele se percebe que vem d’Ele, vive para Ele e para Ele retorna, tudo está em seu lugar, tudo vai bem. É “árvore boa que dá bons frutos”.
As “coisas” não são obstáculos, e as pessoas muito menos. Nem sequer o nosso próprio e ambíguo “eu” é tentação.
Até nossos instintos mais primários ficam integrados nessa corrente de amor recebido e amor entregue.
Mas quando se produz um des-centramento do coração, dá-se um corte com a Fonte e, portanto, com seu destino; quando o coração é presa do “diá-bolos” (aquele que desune, que divide), então tudo começa a desandar: o “eu” inflado se converte num depredador; os instintos básicos se transformam em obsessões; a vida fica fragmentada e dispersa. Tudo se petrifica. O coração torna-se “oxidado”, pois seus impulsos oblativos não são ativados. “Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas”.
É a deriva do coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda.
Faz-se urgente re-conectar-se com a Fonte, onde o coração é continuamente gerado, sustentado, alimentado pelo amor de Deus que o irriga, que o restaura. O coração profundo pode estar desprezado, adormecido, fechado, mas não pode morrer.

Texto bíblicoLc 6,39-45

Na oração: A oração é o caminho interior que faz
                    você chegar até o seu próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de você mesmo, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde você é chamado a mergulhar no silêncio, à escuta de todo o seu ser.

- Nas profundezas do seu coração, acolha, escute e reconheça o murmúrio da voz de Deus, que, como um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o(a) acompanha, da nascente ao mar aberto.