“Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” (Jo 8,5)
Há em todos
nós uma dificuldade básica de nos tornar conscientes e responsáveis pelos
nossos erros. Em muitas ocasiões atua em nós um mecanismo de defesa, em forma
de negação e de cegueira, que pretende evitar a dor e a ferida interior da
culpa, preservando nossa auto-imagem e nosso narcisismo. Introjetamos em nós a
falsa ideia de perfeição; há uma cobrança social de que não
podemos fracassar; temos resistências em assumir nossa condição humana (húmus)
pobre e frágil; pesa sobre nossos ombros a força da falsa imagem de que somos
semi-deuses. Com isso, alimentamos escribas e fariseus em nosso interior,
centrados na lei e com as mãos cheias de pedras.
Efetivamente,
no relato evangélico deste domingo, Jesus desmascara aqueles que, com a lei na
mão, assumem a cátedra de juízes e projetam sobre os outros as próprias
mazelas: “quem dentre vós estiver sem pecado, atire a
primeira pedra”. A “primeira
pedra” é a que provoca todas as violências, alimenta
ódios, intolerâncias, rompe relações...; a primeira pedra é ponto de partida de
toda desumanização.
É verdade
que, literalmente, aquela “primeira pedra” é algo incômodo para quem deseja
lançá-la. No entanto, quando se trata de palavras, maledicências, fofocas,
calúnias, murmurações, suspeitas, “fake news”, julgamentos ..., não pensamos
nisso. São diferentes expressões da “primeira pedra”. São piores as pedras da
língua que as pedras que atiramos com a mão. Todas as desgraças sociais e
religiosas dependem da primeira pedra.
Depois da
primeira pedra produz-se uma chuva de meteoros. E todos correm para socorrer,
defender e justificar, não a pobre vítima, mas àquele que lança as pedras, integrando
suas violentas pedradas às daquele que iniciou a lapidação. Tudo por culpa da
primeira pedra, lançada com frequência e sem medir as consequências. Na
verdade, a primeira pedra, a primeira palavra, a primeira suspeita..., lançadas
com rapidez, são as mais contundentes e desencadeiam um processo destruidor.
Os olhos, a língua e as
mãos são expressões do coração; um coração petrificado
é gerador de pedras mortais. Normalmente, a petrificação
interior é sempre recheada de devocionismos externos, de práticas religiosas
alienadas, de ritualismos repetitivos, de moralismos estéreis... O legalismo
intransigente e inflexível desemboca no orgulho e na vaidade, levando a pessoa
a subir no seu tribunal, fazendo-se juíza dos outros.
Quando alguém
não reconhece a própria culpa, porque o próprio perfeccionismo o impede,
facilmente ele a projeta sobre os outros, num claro mecanismo de defesa. E
descarrega sobre outros a própria insatisfação, frustração e os próprios
sentimentos de culpabilidade. Assim, ele elege alguns “bodes expiatórios” sobre
os quais se projeta o próprio mal interno e, desse modo, procura aliviar o
íntimo mal-estar e o peso moral.
Quem tem
o coração petrificado não tem bênçãos a oferecer, mas pedras a serem atiradas.
Um coração
petrificado se expressa numa atitude de intolerância e insensibilidade frente
aos outros.
Tal atitude
a encontramos claramente na cena da mulher surpreendida em adultério, relatada
por João.
Aqui temos a
“pedra na mão”, magnífico símbolo da culpabilidade, disposta a ser
lançada sobre alguém em quem se projeta a própria maldade não reconhecida.
Numa postura
arrogante, os escribas e fariseus tomam para si o poder de julgar os outros, de
dar aos outros o que eles pensam que merecem (recompensa ou castigo, a vida ou
a morte).
O “arrogante”
é um ser petrificado: a lei é a sua; a palavra é a sua; a verdade é a sua; o
momento é o seu.
É por
isso que Jesus apela ao grupo dos agressores a que dirijam o olhar sobre seu
próprio interior e, no reconhecimento de seu próprio pecado, a pedra
possa cair de suas mãos.
A mulher
ficou livre. Os agressores, de outra maneira, também livres do engano de negar
sua culpa para projetá-la maldosamente sobre aquela pobre mulher.
Silêncio
e palavra configuram as duas
faces do relato do evangelho deste domingo.
Jesus escreve sobre a
terra; isso tem gerado especulações. Segundo France Quéré, com sua escrita
misteriosa, Jesus traça as grandes linhas do “código
da misericórdia”, que não pode se encerrar nos artigos de uma norma
jurídica, nem pode ser esculpida sobre a pedra.
Não se
escreve a misericórdia sobre matéria dura, e tampouco ela pode ser fixada sobre
o papel. Traça-se a misericórdia sobre a superfície delicada de um coração de
carne, simbolizada na matéria fofa da terra. A vida surge da argila, porque a
argila é maleável. Deus não tirou o ser humano da pedra.
Só a
terra é fértil; a pedra é estéril. E as pedras lançadas nunca produzirão frutos.
A misericórdia, sim, é fecunda: cria, re-cria, abre um novo horizonte de
vida...
“Ouvindo o que
Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos”. Também
aqueles que queriam lapidar a mulher receberam a luz da misericórdia, visível
no rosto de Jesus. O Mestre tirou a máscara que cobria o rosto de cada um deles;
tirou-os do anonimato e da maldosa cumplicidade do grupo, do corporativismo,
para pôr cada um frente à sua própria consciência. Obriga-os a se olharem por
dentro e não olhar mais a adúltera. Habituados a notar os defeitos dos outros e
a denunciá-los com ira, tinham perdido o costume de notar e preocupar-se com as
próprias más ações. Habilíssimos para descobrir as infrações dos outros, estavam
desacostumados a se sentirem pecadores, tendo sujas as mãos e a boca.
Convencidos de ter autorização para desempenhar o papel de juízes, já não
perguntam se, por um acaso, também eles não pertenciam à categoria dos
malfeitores, dos iníquos. Forçando os outros a dar conta de suas ações,
acreditavam finalmente dispensados de se olharem no espelho.
Desembarcam
como “justos” e agora regressam às suas casas com a patente de “pecadores”. São
colocados dentro da comunhão dos pecadores, ponto de partida obrigatório para
chegar a uma profunda conversão.
No fundo,
Jesus obrigou os juízes a se julgarem a si mesmos. Deste modo, o processo que
devia acabar com um escândalo, se interioriza. Desenrola-se a portas fechadas;
cada um “rumina” em sua casa. Nem sequer é preciso luz porque o rubor do rosto deles
podia ser percebido até na obscuridade.
Como diz Santo Agostinho,
no final se encontram a sós “miséria e misericórdia”.
Provavelmente a mulher
do relato não precisasse sequer de escutar aquelas palavras de Jesus: “também eu não te condeno”.
O que ela precisava era levantar os olhos. No
momento em que faz isso, a adúltera se encontra com alguém que a olha de
maneira diferente dos outros. Nunca tinha visto nenhum homem olhá-la dessa
forma.
Nada tem a temer diante daquele homem que traça sinais misteriosos sobre a terra. Ela toma consciência de que corresponde a ela dar finalmente uma resposta à provocação dos sinais esboçados sobre o pó. Trata-se de aproveitar daquela página de misericórdia, de confiança, de perdão que leu, não sobre a terra, mas no olhar dele. Volta para sua casa transformada, re-criada.
Texto bíblico: Evangelho segundo João 8,1-11
Na oração:
A “pedra
na mão” é fácil encontrá-la também em nossas vidas. O convite de Jesus a reconhecer
nosso pecado é a única via para que essa pedra não caia sobre nenhum inocente
e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da
mudança.
A arrogância
também é nossa; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de
nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de
nossas críticas amargas, dos comentários maldosos... A arrogância mora no nosso
desprezo e nas nossas ironias.
- Contemplar
as “pedras” presentes na própria mão (contra quem costuma lançá-las?...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário