sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

ANO NOVO: um oceano inteiro para navegar

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do Primeiro Dia do Ano Novo.
Uma "santa travessia" para 2017 a todos.


“Foram às pressas em Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura” (Lucas 2,16)

Hoje começamos mais um “novo ano”. Segundo S. Gregório de Nissa, “na vida cristã, vamos de começo em começo, através de começos sem fim”. Recomeçar contínuo, no qual nos colocamos sempre de novo à escuta do Espírito para nos deixar conduzir por Ele em direção ao vasto oceano da vida.
O Evangelho de hoje nos revela que o caminho para uma vida expansiva começa no acesso a uma simples gruta, para acolher a admirável profundidade que a cena do nascimento de Jesus des-vela e que, em seu nível mais interior, fala de todos nós. Ali nos encontramos com um recém-nascido e seus pais, com pastores, com um presépio, com uma mulher que “guarda” um segredo, com a glória e o louvor de Deus... Os pastores, o presépio, o recém-nascido... representam a realidade inteira: somos nós mesmos, é tudo o que nos envolve neste preciso momento, são todos os seres... Toda a cena, marcada pela simplicidade, quer introduzir-nos em um Silêncio admirado e agradecido, pleno de luz e de encanto.
Trata-se de um convite a aprofundar no Mistério que aí se expressa. Tudo está aí; quando sabemos olhar descobrimos que tudo está cheio da Presença que dá sentido à nossa existência e nos move a uma vida sempre mais ampla.

É incrível que a pequenez e a vulnerabilidade sejam os cartões de visita de Deus. O Natal é o memorial desta verdade, que normalmente esquecemos. Deus não nos estende a mão a partir de cima, senão que se mostra necessitado a partir de baixo; Ele nos ajuda a partir da debilidade, da fragilidade, como se não houvesse outro modo de poder ser compassivo.
As primeiras testemunhas deste intercâmbio foram alguns pastores. Para seus contemporâneos, eles não eram bem-vistos; no entanto, são eles que acolheram com assombro a grande novidade, imperceptível para aqueles que estavam “cheios de si”; eles estão despertos enquanto outros dormem.
Em um primeiro momento, receber de golpe tanta luz os cega, e o medo se apodera deles. Sempre que temos possibilidade de mais luz em nossa vida, rondam também os medos. Ver de novo, ver outras coisas diferentes daquilo que acreditávamos ver, que temos nos acostumado a ver, é também nascer de novo, e toda transformação se encontra bloqueada pelo medo. Ao lado do medo, dentro de sua concha, a pérola da alegria aguardando ser descoberta.
Precisamos despertar o pastor interior que há em nós, nossa capacidade de atenção e vibração com a vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender.

A luz e a voz põem os pastores em marcha. Preciosas mediações que mobilizam sua busca e encaminham com prontidão e rapidez suas vidas para o encontro. Os sinais são mínimos, cotidianos, demasiado simples: um menino, umas faixas, um lugar onde os animais frequentam...
Eles não tinham visto nascer outros meninos de noite e em condições de pobreza? Por que aquele ia ser diferente? Como poderia esta indefesa criança trazer tanta alegria, tanto amor, tanta paz? Precisam ir juntos para descobrir isso: “Vamos até Belém para ver”.
Há muito que ver em Belém, mas nem todos os olhares podem recebê-lo. Há olhares opacos que não se alegrarão, e olhares desconfiados que não o entenderão. Somente os olhares e os passos dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa. Uma paz que, a partir deles, transbordará.

Esta cena de hoje, tão despojada e carregada de luz, será a plataforma de lançamento para este Novo Ano que começa. Ao entrar na Gruta de Belém e na própria gruta interior, muitas perguntas provocativas brotarão e nos mobilizarão a assumir este novo tempo (kairós) com mais inspiração.
Como será este novo ano? Quê desejo e busco de verdade? A quê me dedicarei meu tempo mais precioso e importante? Quê seria para mim algo realmente novo e instigante neste novo ano?
Lembro-me de uma publicidade que apresentava este slogan: “Qual foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?”
Continuarei vivendo sem saber exatamente o que quero, nem para que vivo, passando de preocupação em preocupação, através de preocupações sem fim? Viverei de forma rotineira e normótica, ou aprenderei a viver com espírito mais criativo?

O “novo” deste ano não virá a nós de fora; a novidade só pode brotar de nossa interioridade. Como cuidar essa dimensão interior, que às vezes parece tão atrofiada? É da interioridade destravada que brotam

dinamismos expansivos que nos projetam em direção a vastos horizontes.
Descobrimos na entranha da natureza humana a força do “magis”, a exigência de infinito e de transcendência que cada um carrega no seu eu mais profundo, impedindo-o de instalar-se na mediocridade de sua vida.
Todo ser humano vive, nas raízes do seu coração, uma tensão para o “mais”, que sacode o adormecimento ou a satisfação descompromissada, na qual poderia sentir a tentação de instalar-se.
Nada mais contrário ao “mais” que a vida instalada e de alguma maneira acomodada, que consistiria na pura repetição mecânica dos mesmos gestos e das mesmas ações, ano após ano.
Também se opõe ao dinamismo do “mais” uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da novidade, da criatividade, a capacidade de questionar-se e de uma orientação nova, a audácia de arriscar, de fazer caminhos ainda não percorridos ou abertos à aventura e às surpresas.

É assim que a vida, em lugar de estancar-se em si mesma no mecanismo de repetição, se converte em história, atravessada por uma busca e uma vontade de construção contínua de si mesma.
Para aquele que deixa manifestar no coração de sua vida a inquietude que o habita, o “Novo Ano” vem remover e questionar a satisfação demasiado tranquila e fácil; tempo instigante que sempre pede ir mais longe, mesmo que seja a preço de muita luta e esforço.
 “Querer e buscar mais” significa não contentar-se com um compromisso reduzido, com um fechar-se num mundo pequeno, no qual o dinamismo do desejo aberto ao infinito se afoga.
A expansão de horizontes e de sonhos deve ser buscada no mais íntimo do coração, mediante o descentramento de si mesmo, como impulso para os “grandes espaços”.
O que desbloqueia a força do busca e do compromisso é o encontro com a Criança de Belém; estar diante dela implica sacudir de si toda forma de apatia e de fraqueza, rechaçar toda tendência à acomodação e toda tentação de apegar-se a medidas muito reduzidas, ao tédio e ao costume.

Texto bíblicoLucas 2,16-21

Na oração:  Todo encontro com a Criança Divina desencadeia um movimento expansivo da vida: o que me prende? O que me atrofia? O que me limita?...
- 2017 será um ano a mais, dedicado ao ativismo, acumulando tensão e nervosismo ou terei tempo para o silêncio, o descanso, a entrada na gruta para o encontro com Aquele que se “humanizou”?

- A partir do “olhar” admirado dos pastores, desejo viver, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do meu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a serenidade, a modéstia a alegria simples de estar juntos...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

“Um Menino é a resposta de Deus às nossas perguntas”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da noite de Natal.
Que a celebração do Natal faça brotar o que há de mais "humano" em cada um de nós.
Um "humano Natal" a todos!

“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lucas 2,12)

Natal: estamos em um tempo que nos fala do essencial: um Deus que se faz carne, o divino que se faz humano; o eterno se estremece diante do que é terno; o infinito abraça amorosamente a fragilidade...
Viver este mistério é viver em Deus, compreender até onde chega a loucura de amor de um Deus que se humaniza para que nos humanizemos. “A humanidade de Cristo é a humanidade vivida à maneira de Deus, ou melhor, vivida por Deus” (José Arregi).

“Deus se humanizou”: tal expressão revela que a Misericórdia de Deus significa também ternura.
Apareceu um Menino: apareceu a ternura e a doçura do Deus que salva. Na fragilidade de uma criança se esconde e se revela a grandeza divina. Uma antiga tradição religiosa afirma que a maior seriedade de Deus aconteceu quando Ele virou menino. Louca aventura amorosa de Deus!
No rosto de uma criança se faz visível a Misericórdia que desce sempre mais abaixo, que nasce no ventre da terra e se faz terra fértil.

Segundo Jacob Boehme, místico medieval, Deus é uma Criança que brinca..
É nessa atmosfera “infantil” que Deus se aproximou de nós. Não veio como um imperador poderoso nem como um sumo-sacerdote ou um grande filósofo. Deus pode ser encontrado não na estrada suntuosa do domínio e do poder, mas na estrada da doação, da partilha, da solidariedade... A única explicação da “descida” de Deus é seu “amor compassivo”. Ele mergulhou na nossa fragilidade fazendo-se uma criança pobre, que nasce na periferia, no meio de animais, deitada numa manjedoura... para que ninguém se sentisse distante d’Ele, para que todos pudessem experimentar o sentimento de ternura que uma criança desperta e sobre quem nos dobramos, maravilhados. Criança não infunde medo; todos se aproximam dela. Pequenino com os pequeninos, Deus nos faz proclamar silenciosamente:
                “Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).
É a fragilidade de uma criança que ativa em nós a atitude da expectativa, da novidade, do assombro...
Cada nascimento é um sinal, um imenso milagre, uma bela promessa, um profundo chamado. Viver é milagre. Só ser já é milagre. E o maior milagre é a ternura que cuida, nutre, consola. Isso é “Deus”.

Dizia o pintor Pablo Picasso que tornar-se criança leva tempo, e poderíamos acrescentar que somente o encontro com o Deus Menino nos devolve a pureza e a inocência primordiais. Quando nos fazemos presentes junto à Criança eterna, então brota em nós o impulso para a renovação de vida, o despertar da inocência escondida, o encontro com novas possibilidades de ação que correm em direção ao futuro.
O Natal é essa ternura que ilumina a história humana, o cosmos do qual somos parte. É a confissão de que a bondade gera e sustenta a vida. É crer que tudo está eternamente movido por um pulsar profundo, criador, maior e mais poderoso que o universo, mais terno e pequeno que o coração de um recém-nascido. É a promessa de que o bem prevalecerá.
Ao recuperar o olhar de assombro e de espanto no interior da Gruta de Belém, nossa mente se abre à imaginação e ao sonho, começamos a considerar as infinitas possibilidades para ser e conviver, brota a alegria do novo, do que está nascendo a cada instante, de explorar recursos inéditos e desconhecidos.
Natal é o tempo para acolher com ternura o que é germinal, o pequeno, o que nasce nos movimentos sociais e humanitários alternativos e nos grupos eclesiais que se empenham por um mundo novo e por uma Igreja mais sintonizada com o sonho de Deus. É o momento de sair para os excluídos, para aqueles que não podem chegar até nós.

Ao entrar na gruta para contemplar o Menino-Deus, conectamos, ao mesmo tempo, com o mais profundo do coração humano, carregado de compaixão e generosidade. A bondade humana é uma faísca que pode se atrofiar, mas jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Da “Gruta de Belém” à “gruta interior”: esta é a aventura que nos leva a crescer, amar e compartilhar com os outros o dom da vida; aprender a ver nas pessoas a grande reserva de bondade, altruísmo e generosidade que carregam dentro de si; nunca conformar-nos com a injustiça e a violência, semeando cordialidade e gentileza a todos (as); e, sobretudo, ser mestres da esperança. “...porque é de infância, meu filho, que o mundo precisa” (Thiago de Mello).

O Menino Deus, em Belém, nos oferece uma maneira nova de olhar a realidade e a fragilidade de tantas pessoas. A contemplação de Jesus em seu nascimento nos ensina a contemplar a fragilidade e a exclusão
humana como uma forma de presença de Deus. Deus está entre nós como fragilidade, nos excluídos, nos pobres, nas carências de todo tipo, em cada uma de nossas limitações. Por isso mesmo, sair, descer ao encontro das carências humanas, é uma forma de peregrinação para o coração do Deus mais vivo e surpreendente. Com os mesmos passos com que nos aproximamos da fragilidade dos que sofrem, também nos aproximamos de Deus.
A partir dessa debilidade podemos sentir que passa por nós a força de Deus, seu santo braço, que transforma, com nossa ajuda, toda a realidade.
Se Deus correu o risco de encarnar-se, de nascer pobremente e crescer como salvação a partir da exclusão deste mundo, já não há excluídos para Ele, ninguém fica fora d’Ele. E o lugar principal para a festa é ali onde Ele aparece: nos aforas, onde não há lugar, onde tudo parece esgotar-se e é condenado a crescer em meio às ameaças e às intempéries das situações humanas.

O Nascimento de Jesus é um atrevimento, uma verdadeira ousadia, uma surpresa inimaginável...; na verdade, o Natal é a manifestação do impossível que se faz possível no coração de Deus.
“Ele é o eterno Menino, o Deus que faltava; o divino que sorri e que brinca; o menino tão humano que é divino” (Fernando Pessoa).
Agora temos um Deus menino e não um Deus juiz severo de nossos atos e da história humana. Quê alegria interior sentimos quando pensamos que seremos julgados por um Deus Menino! Ao invés de condenar-nos, ele quer conviver e entreter-se conosco eternamente.


Texto bíblicoLucas 2,1-14

Na oração: Que saibamos escutar a nossa criança interior que clama por ser amada, acolhida, curada de tanta mesquinhez, intolerância, e indiferença.
O Natal é como um poema; nele Deus se revela como uma Criança, pois nos mostra que a vida é sempre dom, novidade que destrava a humanidade para expandi-la por inteira. Que o Deus Menino que vai nascer nos mostre o caminho da verdadeira beleza da vida, e a graça de nunca perdermos a alegria de ser e viver.
Deus seja louvado!

Um abençoado Natal a todos!

O silêncio do “homem justo”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para o 4º Domingo do Tempo Litúrgico do Advento (Ano A).

O Pe. Adroaldo também recomenda acessar o blog Sobre Todas as Coisas do prof. Eduardo Machado, onde poderá ser encontrada uma inspirada Novena de Natal.

Endereço do blog: <http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/?view=magazine>


“José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo”

A única coisa que o Evangelho nos diz de José é que era um homem justo. Este adjetivo, de profundas raízes bíblicas, nos quer dizer que era reto, íntegro, autêntico, bom, etc..., tudo o que podemos encontrar de positivo em uma pessoa humana. O homem justo é aquele que, como Abraão, acolhe na fé o plano de Deus e com Ele colabora. José é “justo” porque adere ao misterioso desígnio de Deus, é justo porque se “ajusta” ao modo de agir de Deus, arrisca com Deus, embora os contornos do Seu Plano permaneçam obscuros e, em certos aspectos, incompreensíveis.
José se coloca, portanto, na linha das grandes figuras da história da salvação. Sua atitude é um exemplo de silenciosa dedicação ao Reino. É o homem de uma grande nobreza de coração que, no silêncio da fé, acolhe o mistério que não compreende. Ele também teve sua “anunciação”; também teve que dar seu “sim” a Deus no mistério do desconhecido.
O “justo” José viveu no dia-a-dia a fidelidade a Deus. Mateus repete três vezes que ele se levantou para fazer o que lhe fora revelado como Vontade de Deus. José soube acolher também, na obediência e no amor despojado, a missão que Deus lhe confiou.

José é o homem do silêncio; de fato, uma das coisas que mais chama a atenção é que ele não pronuncia palavra alguma em nenhum dos relatos evangélicos nos quais aparece. Diríamos que os relatos apresentam a figura de um homem silencioso. Sua existência está atravessada pelo silêncio. José é o homem que vive e atua no silêncio.
Mas entendamos bem. Este silêncio não se deve a que José seja um homem de caráter introvertido, isolado, fechado sobre si. Pelo contrário, trata-se de um silêncio interior, intenso, grávido de conteúdo. Precisamente o que as cenas evangélicas mais destacam é que José escuta atentamente o que lhe é anunciado e ele responde instantaneamente, com gestos decididos. Poderíamos dizer que suas ações são suas palavras e suas palavras não pronunciadas se convertem em gestos eloquentes que manifestam a grandeza de sua alma.

Nos relatos de aparição de anjo, normalmente se dá um intercâmbio de palavras entre o mensageiro e a pessoa à qual é enviado. No caso de José, no entanto, nunca há diálogo. Nos três momentos em que o anjo do Senhor aparece a José dá-se o mesmo esquema: o anúncio da mensagem e a resposta decidida de José por meio da ação. José não pede explicações nem sinais confirmadores; obedece e pronto.
Quando recebe o anúncio de que Maria estava grávida por obra do Espírito Santo, imediatamente faz o que lhe havia dito o anjo do Senhor e toma consigo a sua mulher. No caso da fuga ao Egito, o anjo, além do mais, pede a José colocar-se a caminho: pede-lhe uma prontidão que o desenraiza de seu ambiente, que o desinstala de sua própria terra para viver no estrangeiro.
Quando o anjo lhe adverte da perseguição de Herodes, imediatamente se levanta, toma o menino e a sua mãe durante a noite e se retira ao Egito. O mesmo acontece quando o anjo do Senhor lhe diz que pode voltar a Israel porque tinham morrido aqueles que buscavam tirar a vida do menino.

Os textos destacam a atitude de disponibilidade obediente e prontidão confiada de José.
Seu silêncio não tem nada de ingênuo, não é o silencio daquele que nada sabe ou não quer complicar sua vida. José está, sim, ciente de que sua esposa está grávida; está ciente que o menino está em perigo e, por isso, o leva ao Egito; está ciente de que seu filho se perdeu e, por isso, o busca. E como está ciente, tem medo. Não um medo que o paralisa, mas um medo inquietante, que o impulsiona a buscar soluções respeitosas para com sua esposa e lhe move a tomar decisões valentes, como a de emigrar em busca de um lugar onde refugiar-se. José se arrisca como resultado de uma reflexão, feita possível graças a um silêncio que escuta, valoriza e discerne.
Toda a vida de José é descrita pelos evangelistas em segundo plano. Esse saber estar na “sombra” para não “fazer sombra” a outros, esse escutar e discernir a vontade divina, essa preocupação pelo bem-estar dos demais, esse silêncio contemplativo e radical que lhe permitia aprofundar na realidade, essa prontidão na “obediência à fé” e essa disponibilidade sem fissuras à graça foram as qualidades com as quais José entrou em sintonia com Deus, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação.

A figura silenciosa de José des-vela e denuncia o “palavreado crônico” que nos esvazia. Ele nos mobiliza a viver o silêncio atento e que escuta. Quando calamos e fazemos silêncio começamos a escutar a nós mesmos e a Deus, que fala silenciosamente “em sonhos”.
Há uma diversidade de silêncios. Existe o silêncio dos mortos ou o silêncio daquele que não tem nada que dizer, porque sua vida está vazia. Existe o silêncio cheio de tristeza do desamparado, que sofre, chora e perdeu toda esperança. Existe o silêncio tenso que se estabelece quando duas pessoas que não se amam se veem obrigadas a estar em um mesmo lugar. Existe o silêncio respeitoso diante de um enfermo ou diante de uma tragédia; existe o silêncio cheio de amor que brilha no olhar daqueles que se amam. E existe o silêncio daquele que escuta atentamente o que o(a) amado(a) tem a lhe dizer.
Sem dúvida, este último silêncio é o que melhor caracteriza a José de Nazaré. Os Evangelhos o apresentam como um homem sempre pronto a escutar a voz de Deus que fala através dos acontecimentos de sua vida e da vida daqueles que foram confiados aos seus cuidados.

Carecemos do silêncio transformador neste nosso mundo. O ruído inunda as ruas, os lugares de trabalho, as casas e até os corações. O ruído atordoa, tem efeito devastador, provoca a revolta, agressividade e um estado de ânimo convulsionado. Com o barulho, o espírito humano se acomoda, se anestesia, se dopa. O funcionamento normal do cérebro fica debilitado. A pessoa não sente, não pensa, não tem serenidade para decidir. Todas as expressões de vida se atrofiam. A criatividade seca, os sonhos desaparecem e o ser humano torna-se incapaz de escutar a música harmoniosa de toda a Criação...
Num contexto de ruídos atrevidos, tanto na cidade como em nossos lugares de “repouso”, torna-se mais do que necessário uma “cultura do silêncio”, que permita re-descobrir o nosso próprio interior, escutar a voz dos anjos indicando os melhores caminhos a serem trilhados.
Tony de Mello nos diz: “O silêncio não é ausência de som, mas ausência de Ego”.
A carência do silêncio em nossa vida nos faz seres superficiais. Com efeito, a cultura pós-moderna decretou o fim do silêncio: vivemos imersos nos mais diferentes ruídos. E o silêncio, por sua vez, está se vin-gando de nós, criando vazio, superficialidade, palavras sem sentido, já não sabemos quem somos, para onde andamos e o que queremos...
É indispensável “fazer silêncio” para entrar em contato com a realidade, sobretudo para abrir espaço ao Outro dentro de nós, para acolhê-Lo, para ouvi-Lo e entrar em sintonia com sua Vontade.

Nos murmúrios interiores do coração ali encontramos os sinais da presença viva de Deus.

Texto bíblicoMateus 1,18-24

Na oração:
Durante a contemplação devemos deter-nos particularmente na figura de José. Ele, no seu silêncio, teve seus pensamentos próprios, suas preocu-pações, suas perguntas dilacerantes e suas dúvidas angus-tiantes. Mas Deus nunca deixou de atuar no meio das suas noites, dúvidas, provações. E, no momento oportuno, o libertou dos seus medos e lhe deu a conhecer sua Vontade.
- Neste Advento, reservar momentos de silêncio e preparar-se para acolher Aquele que, no silêncio pleno, vem fazer morada em seu interior.

domingo, 11 de dezembro de 2016

ADVENTO: olhos e ouvidos expansivos

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para o 3º Domingo do Tempo Litúrgico do Advento (Ano A).

“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo...” (Mateus 11,4)

A vivência cristã depende da sensibilidade e enquanto esta sensibilidade não for evangelizada não podemos ter certeza de atuar evangelicamente na vida.
É preciso “evangelizar os sentidos” para que eles encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé e poder reagir diante da realidade com uma sensibilidade nova, diferente, transformadora, convertida.
E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”. O Advento é tempo favorável para expandir os sentidos e assim ser presença diferenciada e comprometida no contexto onde vivemos.

Vivemos numa cultura que nos assalta por todos os sentidos, através de técnicas minuciosamente estudadas para invadir-nos e instalar-se nas dimensões mais profundas de nossa afetividade, de tal maneira que vejamos e escutemos a realidade segundo seus próprios quereres e interesses.
Com isso, os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhes corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Nossos ouvidos, assaltados pelos ruídos virtuais, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em aparatos eletrônicos nos parece uma perda de tempo.
A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais.

Talvez a pior enfermidade que hoje padecemos seja a de ter perdido a capacidade de assombro e de agradecimento, ou seja, a capacidade de abertura aos outros e ao Outro. Talvez hoje, mais do que nunca, precisamos de uma ascese que purifique nossos sentidos de tantos estímulos que invadem nossa intimidade, nos intoxicam, nos aprisionam e deturpam nossa sensibilidade, impedindo-nos de perceber como os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (vv. 5 e 6).
Somente mediante uma acolhida contemplativa do Evangelho podemos transfigurar nossos sentidos e converter nossa sensibilidade. À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de estar presentes no mundo à maneira de Jesus de Nazaré, em sua terra e com sua gente.

Advento é tempo propício para re-educar os sentidos, de maneira a torná-los mais oblativos e expansivos.
Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
O mestre de Nazaré desenvolveu a sensibilidade no seu sentido mais belo. Nele, ela se tornou mais do que uma característica de sua personalidade, mas uma arte poética. Era criativo, observador, detalhista, perspicaz, arguto, sutil. Destilava prazer nos pequenos eventos da vida e, ainda por cima, conseguia perceber os sentimentos mais ocultos naqueles que o cercavam. Conseguia ver encanto numa pobre viúva e perceber as emoções represadas numa prostituta. As dores e as necessidades dos outros mexiam com as raízes de seu ser. Conseguia mesclar a segurança com a docilidade, a ousadia com a simplicidade, a autoridade com a capacidade de apreciar os pequenos detalhes da vida. Por ser um exímio observador, o mestre da sensibilidade se tornou um excelente contador de histórias e parábolas.

Jesus não idealizou a realidade; Ele a contemplava como o Pai a contemplava, e se aproximava dela como o Pai mesmo se aproximava. Seu modo de olhar e sentir a realidade permitia-lhe captar a maneira de atuar do Pai, para poder unir-se a Ele em seu trabalho criador. “Meu Pai trabalha sempre, e eu também trabalho” (Jo 5,17).
Com sua presença inspiradora e através de palavras e gestos compassivos Jesus trazia à luz a vida nova escondida e atrofiada entre os escombros da enfermidade e da exclusão. Ele revelava-se como Aquele que era o “Esperado”, Aquele que vinha aliviar o sofrimento humano, destravar a vida e abrir um horizonte de esperança aos pobres e doentes.
A contemplação e o seguimento de Jesus não nos transformam a fundo se não atravessa todas as camadas de nosso ser, começando pela nossa sensibilidade; em outras palavras, a transformação do coração exige uma renovação de nossa sensibilidade.
O(a) seguidor(a) de Jesus, com seus sentidos cristificados, não fugirá dos desafios e dos dramas da realidade, mas ali se revelará presente de maneira inspirada, buscando entrar em sintonia com Aquele que destrava todas as amarras que oprimem e desumanizam.
Olhar e escutar a partir de Jesus, olhar e escutar como Jesus, olhar e escutar a partir dos olhos daqueles que sofrem... essa é a dinâmica própria do tempo do Advento. Trata-se de um convite a iluminar nosso olhar e afinar nossos ouvidos, às vezes muito apagados pela mediocridade de nossa vida; outras vezes opacos pela falta de esperança em nossa capacidade de levar adiante a missão que Cristo nos confia.
O olhar e o escutar não são atitudes neutras, senão que há fatores que as limitam: o lugar a partir de onde se olha e se escuta condiciona o que se vê e o que se ouve. O olhar e o escutar estão, muitas vezes, marcados também pelas ideias e visões distorcidas que temos da realidade.

Jesus nos convida, no Evangelho de hoje, a fazer um exercício especial da visão e da audição; o que Ele nos pede é expandir os sentidos para entrar em sintonia com as pessoas que nos cercam, para perceber a Presença do Invisível, que se revela ao mundo como mistério e transparência.
Há um modo de ver, de ouvir, de sentir e de pensar que nos entorpece e nos isola em nosso pequeno mundo estreito e autocentrado, enquanto que há outro modo que nos abre e nos lança ao mundo, e que o vai revelando como presença e transparência de Deus. Os sentidos devem ser portas e janelas abertas que nos fazem viver na atitude de contínua “saída”.
Jesus insiste: quem não está desperto, quem não abre bem os olhos, quem não afina o ouvido..., o mistério divino lhe ficará oculto. No descobrir, no “ver” as pessoas às quais costumamos excluir de nosso campo visual cotidiano, começa o vislumbre, a visibilidade de Deus entre nós... É aí onde encontraremos sua pegada. É aí onde nos “esbarramos” n’Aquele que esperamos neste Advento.

Texto bíblicoMateus 11,2-11

Na oração: Os sentidos, cristificados na contemplação, nos impulsionam em direção ao outro e nos fazem acreditar na beleza e dignidade escondidas na fragilidade da condição humana.
- Mergulhar na realidade que nos cerca, por meio dos sentidos bem abertos e evangelizados, é deixar estremecer de vida divina a fragilidade de nossa condição humana.

- Na intimidade com Deus, ampliar bem os sentidos para tornar-se contemplativo no modo cotidiano de viver.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

“Sentir Maria”, a Imaculada

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar e se preparar para a Festa da Imaculada Conceição de Maria. 

Nesta festa, os católicos celebram a concepção da Virgem Maria sem mancha (mácula) do pecado original. O dogma (verdade de fé) da Imaculada Conceição diz que, desde o primeiro instante de sua existência, a Virgem Maria foi preservada por Deus, da falta de graça santificante que aflige a humanidade, porque ela estava cheia de graça divina. O dogma também professa que a Virgem Maria viveu uma vida completamente livre de pecado (Encyclical Mystici Corporis)


“...encontraste graça diante de Deus” (Lucas 1,30)

Certamente, cada “concepção” é um “mistério” de vida sagrada. Cada concepção é “in-maculada” e cada princípio de vida é santo, desde o “ventre” da mãe.
Hoje a liturgia celebra a festa da Concepção, dia do amor “secreto” de Joaquim e Ana, dia que marca o princípio do que será o caminho aberto na vida de Maria, que começa já no “ventre santo” de sua mãe.
Para além da realidade do puro pensamento, o “dogma da Imaculada” pertence à esfera do sentimento cristão. Nesse contexto, a comunidade cristã quis descobrir um “lugar de graça”, uma experiência, uma vida “sem pecado”, e viu que Maria, a Mãe de Jesus, é também Imaculada.

O “dogma da Imaculada” não é um dogma que se impõe à razão e que é preciso crer à força (isso seria imposição doutrinal), mas é o que ilumina e impulsiona o pensamento e o sentimento dos cristãos. Nesse sentido, um dogma que nos faz “sentir Maria”. Esse dogma expressa o fato misterioso de que ela foi transparente ao desejo de Deus, dialogando com Ele em liberdade, fazendo-se mãe do Filho divino. É um dogma aberto a todos os homens e mulheres que, por sua fé e seu compromisso, querem superar a trava do pecado, abrindo-se à vida pura da terra limpa, do amor imaculado, da justiça universal.
“Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. “Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor diante daquilo que a vida vai nos dar para viver.
É assim que se fala de Imaculada Conceição. O Verbo é concebido no que há de mais imaculado no ser humano, no que há de mais completamente silencioso e íntimo. Isto supõe que haja no mais profundo da pessoa um lugar onde não existe limitação, mas a fonte de onde nasce a vida.

Em todos nós, algo de bom, de inocente, de imaculado, continua a dizer “sim” ao incompreensível Amor... O ser humano é “capaz de Deus”. É preciso encontrar, entre nós mesmos, este lugar por onde entra a vida, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de intimidade, alguma coisa de mais profundo do que aquilo que se chama o pecado original.
Charles Peguy dizia que “Maria é mais jovem que o pecado”. Isto quer dizer que existe em nós alguma coisa de mais jovem e de mais profundo, anterior ao pecado, que é a beatitude original.
Falamos demais sobre o pecado original e muito pouco sobre a beatitude original. Existe em nós uma realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os nossos medos e feridas... É preciso encontrar a confiança original.
Maria é o estado de confiança original. Assim, os Antigos Padres viam nela um arquétipo da beatitude original, a mulher da pura confiança, do sim original Àquele que É.
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.

Mas Maria não é Imaculada só (e sobretudo) em sua Concepção, senão em sua vida inteira; Ela se faz Imaculada, em atitude constante de diálogo com Deus e de abertura (entrega) ao serviço dos outros, por meio de Cristo, seu filho. Não reservou nada para si, tudo colocou nas mãos de Deus, para serviço e libertação da humanidade. Maria não dialoga com Deus para si mesma, senão em nome de todos os homens e mulheres e para o bem do mundo inteiro. Rompe assim a cadeia de mentiras, de egoísmo e de violência que tem suas raízes na origem da humanidade. Este é um dogma da Igreja que se reconhece em Maria e que quer também ser “imaculada”, colocando-se a serviço da obra libertadora de Deus.
Por isso dizemos que Maria é Imaculada com todos, por todos, para todos, para “nosso próprio bem e salvação”. Nesse sentido dizemos que ela é Imaculada como referência única de uma humanidade que também é capaz de escutar Deus e de responder-lhe; ela é Imaculada porque nos “des-vela” que também nós podemos romper as amarras que nos desumanizam; ela é Imaculada porque “re-vela” que o ser humano é “lugar” de abertura a Deus, que é possível viver em liberdade, dialogando com os outros, a serviço da comunhão e da vida.

Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito, terra da nova criação, templo do mistério.  Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história.
Ela não é um instrumento mudo, não é um meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que através dela o mesmo Filho Eterno possa entrar na história.
Toda envolvida pelo amor divino, Maria soube colocar-se, em total disponibilidade, nas mãos de Deus, para cumprir sua santa vontade: “Eis a serva do Senhor, faça-me em mim conforme a tua palavra”.
Por isso a “Imaculada Conceição” é um dogma teologal, ou seja, expressa a certeza de que Deus quis comunicar-se de maneira transparente com os homens; buscou e encontrou em Maria uma interlocutora privilegiada, capaz de escutá-lo e responder-lhe, compartilhando seu mesmo desejo de Vida plena. É um dogma sobre Deus, que não quer o “pecado” dos homens e mulheres, mas o amor que cria e dá a vida.
Uma tal comunhão com Deus excluía qualquer traço de egoísmo e de pecado. Só a plenitude da graça (“cheia de graça”) permitiu-lhe ser totalmente despojada de si para cumprir o projeto de Deus. Daqui brota a fé de que Maria, mesmo antes de nascer, foi preservada do pecado.

A festa da Imaculada Conceição leva-nos, portanto, a pensar em Maria como aquela que, movida pela Graça realizou-se como pessoa que acolhe o desejo de Deus e lhe corresponde com seu mais profundo desejo. Ao encarnar-se por meio dela, Deus não se impôs a partir de cima ou de fora, mas deseja e pede sua colaboração; por isso lhe fala e espera sua resposta, como indica o texto de Lucas, uma cena simbólica que pode apresentar-se como diálogo do consentimento: Maria respondeu a Deus em gesto de confiança sem fissuras; confiou n’Ele, lhe deu sua palavra de mulher, pessoa e mãe.
Ambos se uniram para compartilhar uma mesma aventura de amor e de graça, a história divino/humana do Filho eterno.

Para isso, a liturgia desta festa nos convida a focar a atenção no momento da Encarnação de Jesus, como fruto de um profundo diálogo entre Maria e o anjo de Deus. É no seu diálogo de amor fecundo com Deus que podemos e devemos afirmar que Maria é Imaculada. Nessa linha, a Igreja pode afirmar que Maria é (e foi se fazendo) Imaculada ao dialogar com Deus em profundidade pessoal.
Deus mesmo quis conduzi-la desde o momento de sua origem humana (concepção), como conduz cada homem e cada mulher que nascem neste mundo. Ali onde um frágil ser humano (uma mulher e não uma deusa), pode escutar Deus em liberdade e dialogar com Ele em transparência, surge o grande milagre: o Filho divino já pode existir em nossa terra.

Texto bíblicoLucas 1,26-30

Na oração: 
- Entoar um hino de louvor, reconhecendo as “maravilhas” de Deus em sua vida;
- Dar-se conta das beatitudes originais presentes no seu interior: 
compaixão, bondade, mansidão, busca da justiça e da paz...

domingo, 4 de dezembro de 2016

ADVENTO: tempo de nutrir-se interiormente

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para o 2º Domingo do Tempo Litúrgico do Advento (Ano A).


“O machado já está na raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada...” (Mateus 3,10)

As leituras do domingo passado nos falavam de velar, de vigiar, de estar desperto. Hoje falam aqueles que estiveram nessa atitude de sentinelas: os profetas. Situados em posições estratégicas, descobrem no horizonte a presença de sinais de vida ou de morte. Assim se convertem em vigias e mensageiros.
Neste 2º. Domingo de Advento, os profetas Isaías e João tem a palavra. A palavra de um profeta nunca é fácil de aceitar porque move a mudar, e isso não tem muita ressonância em nosso interior.
O profeta é o homem que vê um pouco mais além, ou mais profundamente que o restante dos mortais. Essa vantagem nasce de sua atitude de discernimento; ele não se contenta ou não se conforma com o que vê ao seu redor e busca algo novo. Essa novidade ele a encontra em sua própria interioridade, e ali percebe as exigências que seu verdadeiro ser pede, para ele e para todo ser humano.

O profeta é a figura chave neste tempo de Advento. Não se trata de um adivinhador do futuro; tampouco devemos pensar em um ser humano separado dos demais, que, por eleição especial, Deus vai lhe indicando o que é preciso dizer aos outros. Profeta é todo aquele que está desperto e com os olhos bem abertos.
Ele não é um porta-voz enviado a partir de fora, é sempre um explorador do “interior humano” e que tem a valentia de viver a partir das raízes profundas de seu ser.
À luz das profecias, o Advento nos revela que somos seres de enraizamento e de horizontes, de interioridade e de universalidade... O desafio consiste justamente em manter juntos o enraizamento e o horizonte. Encarnados, mas abertos à transcendência. Nesse sentido, transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
Somos convidados, neste tempo litúrgico, não apenas a nos expandir e a voar para o alto, mas, fundamentalmente, a descer e a buscar o chão onde nos enraizamos. Por um lado, ter horizontes nos faz romper barreiras e ultrapassar os limites, impulsionando-nos à busca permanente do novo e do inspirador.
Por outro lado, vamos tomando consciência que no mais profundo de nosso ser encontram-se as raízes que devem sempre ser alimentadas e avivadas, pois são elas que sustentam o ponto de partida para o novo, para uma verdadeira mudança e conversão. É da nossa interioridade que “há-de-vir” (advento) as possibilidades e os recursos que farão nossas vidas mais abertas e oblativas, semelhantes à vida d’Aquele que “desceu” até às profundezas da condição humana.

A verdadeira nobreza do ser humano consiste nisto: há nele um desejo, uma força latente, como uma energia fundamental, que o impulsiona a viver, que o ajuda a crescer e a melhorar continuamente, que aumenta a sua capacidade de resistência, que o estimula a alcançar aquilo que é o sentido de sua própria existência: a verdade, a liberdade, o bem, o amor...
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada e sustentada no caminho da maturidade humana, proporcionando-lhe saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da sua vida como um princípio ativo, dinâmico, criativo...
Quando esta “força vital” permanece atrofiada, a pessoa perde a direção, não desenvolve suas potencialidades e demite-se da própria vida. É decisivo saber descobrir e canalizar essas energias espontâneas, capazes de promover a integração e que são facilitadoras de mudanças frente à finalidade de sua vida.

No tempo do Advento, tomamos consciência que a raiz de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-la, alimentá-la e viver a partir dela constituem a plenitude de nossa realização.
Precisamos viver mais nas raízes de nosso ser; precisamos aprender a viver de uma maneira mais profunda e autêntica, a partir do núcleo mais íntimo de nosso ser.
E viver a partir de nosso ser essencial significa integrar e harmonizar todos os níveis de nossa pessoa: corpo, mente, afetividade, coração... com a fonte de nossa vida. Trata-se de descer em profundidade, de encontrar o nosso centro, aquele ponto de gravidade por onde passa o eixo do nosso equilíbrio pessoal.

Advento, tempo das raízes! Tempo oportuno que nos mobiliza a descer ao nosso chão existencial, a olhar o mais profundo de nós mesmos e da realidade que nos cerca, para descobrir ali os ricos recursos de vida que ainda não foram ativados. O novo vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão.
A fecundidade tem lugar no oculto, nas entranhas da terra.
Na vivência do Advento nos é pedido que mergulhemos os pés no “chão da vida”, como as raízes mergulham na terra de modo profundo, silencioso e lento.

Aqui, o caminho para Deus implica “descer” ao nosso próprio chão e viver em sintonia com todas as expressões de vida, numa fraternidade universal. Subimos, rumo ao Transcendente, quando descemos ao nosso chão. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio. A profundidade do enraizamento torna-se plataforma para poder alçar vôo e ir além dos nossos limites e interesses estreitos, rumo ao Todo infinito.

O Advento nos faz lançar raízes no mais profundo de nossa condição humana e despertar todas as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente, toda decisão de assumir-nos como cooperadores de um novo tempo. Das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; das entranhas abertas emergem dinamismos que nos levam a ser presença inspiradora e diferente no contesto onde vivemos.
A experiência cristã, portanto, implica “mergulhar os pés na terra”. Expressões do nosso cotidiano como “pôr os pés no chão”, “estar com os pés na terra”, significam enraizar-nos e comprometer-nos com a realidade que nos afeta.
Um “chão” é sempre mais que um simples chão: cada chão revela lembranças, referências, medos, saudades...; cada chão guarda histórias, presenças e tem força de memória. Há vida, pessoas, caminhos, acontecimentos, experiências...
Chão amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se..., ousar ir além, derrubar nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
“Chão humano e humanizante” porque carregado da presença divina. Cada pessoa é autêntico chão da eterna presença de Deus.
Onde nossos pés estão plantados? Onde nossas raízes existenciais buscam alimento?



Textos bíblicosMateus 3,1-12

Na oração:
“Orar com o coração” significa voltar os olhos mais para a interioridade, para poder reconstruir e reunificar as “forças” dispersas de si mesmo.

- Diante de presença de Deus desça à própria realidade interior, até atingir as raízes de seu ser, para que dali brote o novo que sustentará e dignificará o seu viver.