sábado, 30 de janeiro de 2016

JESUS, “o homem embriagado com a Palavra”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

“Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca” (Lucas 4,22)



 “Nós somos palavra”. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, criamos pontes, abrimos horizontes e chegamos a lugares jamais imaginados ou tocados pelos nossos pés.

Quando não existe a troca de palavras, ditas e ouvidas, a vida é mutilada nas suas expressões mais vitais, as espirituais. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana.



A palavra tem os atributos divinos. Os próprios textos sagrados nos dizem que “Deus é Palavra” e, em Jesus, ela se faz carne.

Chegada a plenitude dos tempos, Deus disse sua Palavra definitiva e insuperável em Jesus. 

Ele, em sua vida e missão, prolonga a Palavra criativa de Deus; começa a falar uma Palavra sedutora a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica.

Palavra encarnada, Jesus sintoniza e ajusta sua palavra à palavra do Pai.

Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. A surpresa, o desapontamento e o conflito que Jesus provocou, ensaiam cada dia novas palavras e novos gestos.

Seu ensinamento, cheio de “autoridade” introduz uma perspectiva nunca ouvida antes; apresenta uma alternativa que as pessoas mais simples do povo entendem como revelação do Pai aos pequeninos.

No encontro com a realidade dos pobres e excluídos, Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida.

A partir das periferias do mundo surge um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos. É uma sabedoria que vem de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro.

Suas palavras revelam uma força “re-criadora”, que é o sentido belo do viver; através delas Jesus põe em movimento a realidade, reconstrói pessoas feridas em sua dignidade, comunica saúde onde há enfermidade, faz emergir a vida onde impera a morte.



As palavras tem um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras.

Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...

É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Suas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança.

Suas palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento...



É preciso, a partir do encontro com Jesus Cristo, “sentir” a palavra que proferimos a cada instante; verificar se a palavra pronunciada procura traduzir a palavra interior, se sabemos “empalavrar”, ou seja, “pôr em palavras” nossa realidade interior e exterior.

Desde o nascimento até à morte, continuamente estamos “empalavrando” nossos sentimentos, sonhos, aspirações... A palavra abarca todas as expressividades humanas. Ela não se reduz à oralidade: a gestualidade, a linguagem corporal, a presença solidária e compassiva... tudo isso também forma parte da palavra humana. Os comportamentos éticos e os valores também são formas de “empalavramento”.

As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento...

Não possuímos nada que tenha, ao mesmo tempo, o poder e a leveza das palavras.

Em todos os lugares aonde vamos somos cercados por elas; palavras murmuradas com suavidade, proclamadas em altas vozes ou berradas irritadamente; palavras faladas, recitadas ou cantadas; palavras em sites, em livros, em muros ou no céu; palavras de muitos sons, muitas cores ou muitas formas; palavras para serem ouvidas, lidas, vistas ou olhadas de relance; palavras que oscilam, que se movem devagar, dançam, pulam ou se agitam.

As palavras podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há palavras que ferem e há palavras que curam. Há uma palavra que constrói e uma que destrói, uma palavra que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança, outra que arrasa...

As palavras nos tocam e nos modelam; às vezes, elas nos tocam como brisa suave, outras vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou inquietação, de fé ou descrença, de amor ou ódio...

Há uma palavra pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas palavras, não resta mais nada a dizer.

Todos conhecemos pessoas destruídas pelas palavras, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo toque das palavras. A palavra tem uma força reconstrutora.



As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. Vivemos cercados de “palavras vãs”.

Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas liturgias, na Internet, nas redes sociais... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.

Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Elas são atrofiadas, manipuladas ou submetidas a um violento  esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência.

Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.

Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.

Quem sabe articular silêncio e  palavra é um verdadeiro artífice da vida.



Texto bíblico:  Lucas 4,21-30 



Na oração: 
Percorrer as palavras proferidas, normalmente, ao longo do dia: são palavras que elevam? curam? animam? Palavras marcadas pela esperança? Palavras carregadas de sentido? Palavras criativas?
Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
- Busque palavras nas profundezas de seu interior, palavras carregadas de sentido e de ânimo.

- Crie silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há atrás de suas palavras, de seus  sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade.
 

sábado, 23 de janeiro de 2016

As credenciais de JESUS e de seus seguidores

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo Comum - Ano C.


“Jesus voltou para a Galiléia com a força do Espírito...” (Lucas 4,14)


Depois do prólogo, saltando os relatos da infância, do batismo e das tentações, o texto evangélico que a liturgia nos propõe para este domingo nos situa no começo da chamada “atividade pública” de Jesus, com a proclamação daquilo que constitui seu “discurso programático”. Lucas quer apresentar Jesus como o “Ungido” de Deus, cuja missão consiste em ser “boa notícia” para todos.

Antes de começar a narrar o ministério público de Jesus, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsiona o Profeta da Galileia e qual é a meta de toda sua atuação. Os cristãos deverão saber em que direção o Espírito de Deus move a Jesus, pois segui-lo é precisamente caminhar com Ele na mesma direção.

Em Lucas 4,14 começa propriamente a vida pública de Jesus com este relato da pregação na sinagoga de seu povoado, depois de uma breve introdução geral na qual fala de seus ensinamentos nas sinagogas da Galileia. Ao aplicar-se a si mesmo o texto de Isaías, Jesus está declarando sua condição de “Ungido”.

Ele voltou à Galileia conduzido pelo Espírito.

Aqui está a chave. Só o Espírito pode nos capacitar para cumprir a missão que temos como seres humanos. Tanto no AT como no NT, ungir era capacitar alguém para uma missão. Paulo nos diz isso com uma claridade meridiana: se todos nós bebemos de um mesmo Espírito, seremos capazes de superar o individualismo, e entraremos na dinâmica de pertença a um mesmo corpo.


A primeira coisa que chama a atenção é a apresentação que Lucas faz de Jesus como alguém que é movido “pela força do Espírito”. Nem sempre somos conscientes das “forças” que nos movem em nosso viver cotidiano, tampouco das motivações reais que nos impulsionam a tomar certas decisões. Dois dinamismos atuam em nosso interior: um, de impulso para algo maior, para o serviço, para ser presença inspiradora; outro, de atrofia, de acomodação e medo. Qual das duas “forças” alimentamos em nosso interior?

Jesus chamava a atenção pela claridade de suas motivações e a coerência com as mesmas: é o homem íntegro e fiel, lúcido e transparente. Deixa-se conduzir pelo Espírito no mais profundo de si mesmo; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele.


Lucas descreve com todo detalhe o que faz Jesus na sinagoga de seu povo: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e se senta. Todos hão de escutar com atenção as palavras escolhidas por Jesus pois elas explicitam a missão à qual Ele se sente enviado por Deus. Ele começa a gritar uma mensagem nova e diferente, surpreendente e provocativa.

Estas são as credenciais de Jesus, aquelas que identificam sua personalidade e sua missão.

E serão também estas as credenciais que nos identificam como seus seguidores. Surpreendentemente, o texto não fala de organizar uma religião mais perfeita, de implantar um culto mais digno ou de apresentar novas leis, mas de comunicar libertação, esperança, luz e graça aos mais pobres e excluídos. É curioso que os traços distintivos de sua missão não fazem referência à sua relação com Deus; todos fazem referência à relação com as pessoas mais necessitadas e marginalizadas: os pobres, os cativos, os cegos.

Sua única preocupação é a missão de “anunciar o Evangelho”. Jesus não veio anunciar desgraças, castigos, nem impor medo através de uma religião moralista e legalista. Jesus veio anunciar “boas notícias”: uma vida digna e de esperança aos pobres; a liberdade àqueles que carecem dela; a vista àqueles que não podem ver. Jesus não faz proselitismo e nem nos convoca para seguir uma determinada religião, uma doutrina... mas para sermos presenças humanizadoras e libertadoras.



A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento humano; o sofrimento dos inocentes é a primeira preocupação d’Ele: não suportava ver as pessoas sendo exploradas e marginalizadas; não aguentava a dor dos outros, porque sua sensibilidade não tolerava isso. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...

Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem  e da mulher.

Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”.

E ao “fixar os olhos n’Ele” os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo.

As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.


Vamos, na oração, considerar algumas expressões do Evangelho de Lucas e que revelam a essência de uma vida que se deixa impactar pelo modo de ser e viver de Jesus:

- “Ungidos pelo Espírito”:  todos somos marcados, assinalados pela unção no Espírito. Carregamos a “marca” do Espírito: Espírito que não está sobre nós, mas dentro de cada um de nós; Espírito que nos habita e que nos conduz para fora de nós mesmos, em direção ao compromisso com os outros.

- “Enviados para anunciar o Evangelho”, ou seja, ser boa notícia para os outros através de nossa presença alegre e solidária. Não somos enviados para anunciar más notícias e desgraças, nem para alimentar culpabilidades nos outros, impondo falsos moralismos e legalismos que bloqueiam a vida das pessoas.

Somos enviados a anunciar aos tristes a alegria de Deus, aos pobres a esperança de um mundo mais humano, justo e fraterno, aos excluídos o amor de Deus, aos que nada contam aos olhos dos homens que eles são importantes para Deus.

- “Enviados a anunciar a liberdade aos oprimidos”: anunciar que Deus nos quer a todos livres; ser presença libertadora de tudo o que desumaniza o ser humano: pobreza e miséria, ignorância e violência, opressão religiosa, preconceitos, exploração...

- “Enviados a ativar a visão aos cegos” para que vejam as maravilhas que acontecem ao seu redor, para ver o rosto de Deus no rosto de cada irmão, para encantar-se com a beleza e grandeza da Criação, para contemplar a presença do Criador em tudo e em todos...

- “Enviados a proclamar o ano da Graça do Senhor”: a plenitude humana que Jesus começou a realizar se expressa como festa jubilar: ano de graça, tempo de júbilo que, conforme à tradição de Israel, se torna celebração de fraternidade, perdão das dívidas, libertação dos escravos, partilha das terras...

Neste “Ano jubilar da Misericórdia” somos convocados a ser presença reconciliadora em meio aos conflitos, a indicar para os desanimados a esperança da salvação, a viver como filhos de Deus e como irmãos, a viver a presença de Deus neles...


Texto bíblico: Lucas 1,1-4; 4,14-21


Na oração:

Hoje se cumpre essa escritura em ti”. Esse mesmo Espírito que atuou em Jesus, está atuando sempre em ti. Deus dá o Espírito sem medida. Se não descobres e não experimentas isto, nenhuma vida espiritual será possível. O Espírito te levará ao amor. O amor se manifestará em atitudes, que sempre beneficiarão os outros. A força do ego nos separa. A força do Espírito nos identifica.

Conecta com essa energia divina que já está em ti, e a espiritualidade será o que há de mais espontâneo e natural de tua vida.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Um convidado que “dá o que falar”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo do TEmpo Comum - Ano C.


“Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento” (João 2,2)



A festa está profundamente enraizada no coração do ser humano; ela proporciona o diferente, o novo, o exuberante, o utópico; revela o “homo ludicus” que brinca, canta, dança, transborda emoções, reúne companheiros em comunidade e celebra a vida.

A festa é ruptura com a monotonia e com a rotina da vida; é um momento no qual se deixa levar pela vida em vez de “carregá-la” nas costas como um fardo. É a própria vida, despojada do peso do cotidiano e vivida em plenitude; a festa é um “sim à vida” porque significa mergulhar na profundidade da existência, assumindo o que há de prazeroso, de positivo e de belo, para expressá-lo com alegria.

A festa é celebração comunitária de experiências e acontecimentos da vida. As circunstâncias podem ser variadas (casamentos, nascimentos, padroeiros, conquistas, colheitas, aniversários, datas importantes...), mas o essencial permanece: uma afirmação da vida, da amizade, da comunhão, e uma espécie de juízo de valor sobre nosso mundo e sobre nossa existência.

Ao valorizar determinados acontecimentos, a festa constrói a comunidade a partir de suas raízes e de sua história em vista do futuro; ela torna público o horizonte social dos participantes. Fazendo a festa, a comunidade descobre que foi a festa que a fez. Ela sim, re-cria a comunidade, re-criando os participantes.

Festejar não é ocultar as tensões, os conflitos... Mas, ao contrário, é um meio de assumi-los e superá-los.



Nas bodas de Caná, a novidade está numa nova forma de presença de Jesus, que não se encontra interessado, em princípio, por fazer coisas, por resolver problemas, senão para traçar uma presença como convidado. Ele não está aí para “arrumar” as coisas, mas para escutar e compartilhar um momento festivo. Ele se encontra presente de maneira gratuita, num gesto de solidariedade que transcende e supera toda atividade.

Segundo o evangelista João, a primeira intervenção pública de Jesus, o Enviado de Deus, não tem nada de “religioso”. Não acontece num lugar sagrado (sinagoga ou templo). Jesus inaugura a Sua atividade profética "salvando" uma festa de casamento que podia ter terminado muito mal. Trata-se do "primeiro sinal", onde nos é oferecida a chave para entender toda a Sua atuação e o sentido profundo da Sua missão salvadora. Convida-nos a que descubramos o Seu significado mais profundo.

"Havia um casamento na Galileia". Assim começa este relato em que nos é dito algo inesperado e surpreendente. Este gesto de Jesus ajuda-nos a captar a orientação de toda a Sua vida e o conteúdo fundamental do Seu projeto do Reino de Deus. Enquanto os dirigentes religiosos e os mestres da lei se preocupam com a religião, Jesus dedica-se a fazer mais humana e leve a vida das pessoas.



Os evangelhos apresentam Jesus concentrado, não na religião mas na vida. Viver o “estilo de vida” de Jesus não é só para pessoas religiosas e piedosas. É também para quem ficou decepcionado com a religião, mas sente necessidade de viver de forma mais digna e ditosa. Por quê? Porque Jesus contagia a fé num Deus festeiro, que não complica nossa vida, mas nos move a confiar n’Ele, que com Ele podemos viver com alegria pois Ele nos atrai para uma vida mais generosa, movida por um amor solidário.

A espiritualidade de Jesus não é a espiritualidade do sacrifício, do pecado e da culpa, da busca da perfeição, mas é a espiritualidade da felicidade e da alegria para as pessoas. Com sua presença, participando das bodas, das refeições festivas e dos banquetes, Jesus anunciava e indicava um outro mundo diferente, onde partilha-se a vida, a convivência, a alegria, abrindo espaço à participação de todos, sobretudo daqueles que eram excluídos da religião. É a alegria contagiante do Evangelho.

Para Jesus, Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos impulsionam a viver mais plenamente. Deus não quer que renunciemos nada do que é verdadeiramente humano. Ele quer que vivamos o divino no que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da renúncia como exigência divina é anti-evangélica.



A cena das bodas de Caná da Galileia não se limita simplesmente à ausência de vinho. O assunto é outro: o relato tem que ser entendido na perspectiva do Reino, na dinâmica do tempo messiânico. O texto indica que havia aí, em um lugar da casa, seis talhas de pedra vazias. O texto enfatiza que estavam vazias. São vasos destinados a conter a água da purificação, ritual dos crentes judeus. Porém estão vazias, secas. Este símbolo indica que o modelo religioso que Jesus encontrou está ressecado, vazio.





A mensagem para nós hoje é muito simples, mas demolidor. Nem ritos, nem abluções, podem nos purificar. Só quando saborearmos o vinho-amor da festa e da partilha, ficaremos todos limpos e purificados. Só quando descobrirmos o Deus presente dentro de nós e nas nossas realidades mais cotidianas, seremos capazes de viver a imensa alegria que nasce da profunda unidade com Ele.

Geralmente nos contentamos com as seis talhas de pedra para as purificações, preocupados com os ritos e as normas religiosas; esquecemos que o melhor vinho ainda não foi servido, pois está escondido no mais profundo de nós mesmos.



Na visão dos primeiros cristãos, que acabavam de se separar do judaísmo, a lei judaica, antes de ajudar, acabou dificultando a relação de Deus com seu povo. Por isso para eles era uma lei vazia, sem sentido, que somente gerava carga e não possibilidade de liberdade e de alegria. As talhas de pedra, destinadas à purificação, eram um símbolo que dominava a lei antiga. Esse modelo de lei criava com Deus uma relação difícil e frágil, mediada por ritos frios e carentes de sentido.

Com a presença de Jesus, a ritualidade, o legalismo, a norma fria e vazia, se transformam em vinho, símbolo da alegria, do júbilo messiânico, da festa da chegada do tempo novo do Reino de Deus.

A atitude de Jesus, sem nenhum tipo de imposição, vai revelando uma nova imagem e um novo conceito de Deus. Deus deixou de ser esse ser estranho e distante, que atemoriza o ser humano com o peso da doutrina e das leis, mas que revela sua face misericordiosa, ou seja, o Deus que caminha com seu povo.

Temos de eliminar, em nossa vida pessoal comunitária, com os sistemas religiosos desumanizantes, para conseguir entrar na dinâmica libertadora, inclusiva e festiva que Jesus inaugurou.



Texto bíblico:  João 2,1-11



Na oração:  
“Festeje a que torna Deus luz e garantia para os nossos caminhos; festeje a esperança que transporta os seres ao novo do amanhã; festeje o amor  que os torna fonte de crescimento e união.

Ao festejar o mistério que o carrega e atrai, será capaz de transformar o dever em prazer, a dor em dinamismo de renovação e a convivência em promessa que se há de revelar graça onipresente.

Enxergue em tudo a dádiva e repouse do cansaço; celebre a festa em clima de gratidão e nunca deixará de ser motivado para um novo entusiasmo, recompensado também em ritmo de morte-ressurreição”. (F. Cláudio V.B.)