sábado, 27 de outubro de 2018

Tecendo Olhares

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 30º Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Mestre, que eu veja”!’” (Mc 10,51)

Continuamos fazendo caminho com Jesus, rumo a Jerusalém. Estamos na última cena, antes de entrar na “cidade santa”, onde acontecerão os mistérios centrais da nossa fé: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
Detenhamo-nos em alguns detalhes que o evangelista Marcos deixa transparecer no evangelho deste domingo, para uma maior assimilação do modo de ser e agir de Jesus.
O cego Bartimeu é o símbolo da marginalização: está fora do caminho, jogado na sarjeta, sem poder se locomover, percebendo como os outros vão passando por ele, dependendo deles, de suas esmolas e de seus cuidados, porque não podia fazer outra coisa. Trata-se de um homem na beira do caminho, que vive às custas da bondade ou da maldade dos outros e, na maioria das vezes, à mercê da indiferença de todos; um homem sem ofício nem benefício e sem serviços sociais que o sustentassem ou o acompanhassem; um ser humano de quem ninguém queria se aproximar porque era tido também como impuro; um cego sem companhia, sem possibilidade de ser amado, habitando na solidão física e psíquica, com o agravante de sentir-se julgado e culpado, sem possibilidade de defesa, porque a sentença já era pública.
A situação de Bartimeu já estava determinada, ou seja, a exclusão; ele aparece aqui como alguém consciente de sua situação desesperada, de seus limites e de que sozinho não poderia superá-los. Mas não fica resignado com sua situação; este é o ponto de partida. Daí o grito por compaixão, quando percebe que Jesus passa por perto.
Como cego, não tem outro meio de chamar a atenção de Jesus senão gritando. Muitas pessoas próximas se irritam e o mandam calar a boca, mas ele o chama mais alto ainda. Ele investe toda sua força nessa oportunidade única e vai até Jesus, expressando assim sua alegria em encontrá-lo e em receber a sua ajuda.

Jesus é aquele que ouve, para e chama justamente aquele cego cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia. Ele interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua proteção, sua segurança, seu teto..., e entra na luz do olhar de Jesus. Sai de seu fechamento (o manto era considerado um prolongamento da pessoa); desfaz-se do que lhe trazia segurança e recupera sua dignidade: “pôs-se de pé”.
Ao lhe perguntar - “o que queres que eu te faça?” -, Jesus está ativando o protagonismo no outro, estabelecendo um diálogo de tu a tu, sem intermediários, oferecendo-lhe a possibilidade de afirmar-se diante de alguém, de ter uma palavra que é escutada (não só um grito que se instala como música de fundo para os transeuntes indiferentes), de expressar os desejos de seu coração, de “empalavrar” suas aspirações e esperanças. O espaço de diálogo experimentado devolve ao cego a confiança, conecta com suas forças resilientes, lhe confere autonomia e o mobiliza a entrar no caminho de Jesus.

A capa que antes acompanhava o cego e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representa é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor. Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo olhar, salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.
Bartimeu viveu a experiência de uma profunda “travessia”: antes, cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola; agora, com a visão recuperada, pode fazer a sua escolha: “...e seguia Jesus pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...
Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; o estranho se tornou familiar; a liberdade se tornou gratidão; a exclusão se tornou seguimento...

Ao “fixar seu olhar” em cada um(a) de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos(as) a fazer eleições mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual plural com amor, com entusiasmo e criatividade.

Precisamos suplicar como o cego do relato de Marcos: Mestre, que eu veja!”, para poder reconhecer e agradecer, descobrir portas onde antes víamos muros. Hoje somos afetados por muitas cegueiras: não vemos aqueles que economicamente não são contados, e há milhões de pessoas consideradas invisíveis.
Estamos ameaçados pela cegueira da segurança, da intolerância, do preconceito..., e aqueles que são diferentes nos parecem estranhos. As telas frias dos aparelhos eletrônicos tiram o brilho e o calor de nosso olhar e petrificam o nosso coração. Vivemos cegos pela pressa e pelo auto-centramento; e as rupturas humanas, as divisões e o ódio, embotam nossos sentidos e nos cegam a respeito de nossa unidade essencial.
É preciso deixar que o Evangelho e os outros vão nos tirando as vendas, vão nos curando a visão, vão nos despertando para que possamos chegar a ser homens e mulheres de olhos grandes, que contemplam a vida em sua profundidade e em sua vulnerabilidade, e também em suas infinitas possibilidades.

Sabemos que toda a realidade nos entra pelas janelas de nossos olhos. Cultivar a espiritualidade em nossa vida cotidiana tem a ver com aprender a olhar de outra maneira, e aprender a observar sem qualificar, sem medir, sem emitir juízo, simplesmente, recebendo o que existe, deixando-o ser, dando-lhe espaço.
Uma visão sadia, é aquela que sabe ver o outro no melhor de si mesmo, em seu mistério único, em sua originalidade, em todo seu potencial latente ainda por acontecer; e que sabe também aceitar suas arestas, sua parte de sombra, sem rejeitar nada. Um olhar que descobre uma sensibilidade por debaixo da aparente aspereza, que reconhece a benção que se oculta por detrás da ferida. Um olhar amável e incondicional que oferece o espaço para que os nós existenciais comecem a se desatar e a vida possa fluir.
Que possamos olhar através dos outros e ativar dentro de nós aquela bem-aventurança: “Ditosos vossos olhos porque vêem” (Mt 13,16).
A oração é o ambiente natural para mobilizar-nos, expandir nosso olhar e preparar-nos para o grande salto da vida: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão....


Texto bíblicoMc 10,46-52

Na oração: Chegaremos algum dia a aprender, como Jesus, a olhar através dos olhos dos simples e pequenos deste mundo?
Quando nos abrimos a outros olhares, quando chegamos a poder olhar pelos olhos daqueles que estão em um lado da vida diferente do nosso, expande-se em nós a capacidade de perceber e agradecer a realidade.
Nosso modo de olhar depende do lugar onde pisamos: olhar burguês, olhar preconceituoso, olhar intolerante...
- Faça um pequeno exercício de “olhar a si mesmo” com o olhar do pobre, do excluído, daquele que pensa e sente diferente... Como você se sente?

domingo, 21 de outubro de 2018

IGREJA: comunidade de servidores

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 29º Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Quem quiser ser grande seja vosso servo” (Mc 10,43)

Jesus segue o caminho para Jerusalém; enquanto isso, vai revelando aos seus discípulos as consequências de sua entrega em favor dos últimos e excluídos. Pois, todo aquele que investe sua vida a serviço da vida, sempre encontrará oposições, perseguições e morte.
Marcos, ao anunciar três vezes a paixão de Jesus, está revelando o preço da fidelidade ao Reino de Vida. Ao descrever, depois de cada anúncio, a resistência e a incompreensão dos discípulos, está nos advertindo sobre a dificuldade do verdadeiro seguimento. Depois do primeiro anúncio, Pedro quer desviar Jesus do caminho de fidelidade que o levará à Cruz e morte; depois do segundo, os discípulos continuam discutindo quem era o maior entre eles. Hoje, no terceiro anúncio da paixão, os dois irmãos, Tiago e João, pretendem sentar-se, um à direita e outro à esquerda de Jesus, no seu Reino Não há maior contraste entre a atitude do Mestre e a de seus seguidores; estão em diferentes amplitudes de onda.
Os outros dez se indignaram. Esta reação é apenas um sinal de que todos estavam na mesma dinâmica. Os outros discípulos tinham as mesmas ambições dos dois irmãos, mas eram covardes e não tinham a coragem de manifestá-las. Também no protesto pelo que o outro faz podemos manifestar o desejo de fazer o mesmo. Como a imensa maioria dos cristãos, continuamos tentando manipular Deus em nosso proveito.

Seguindo a linha do profetismo crítico, Jesus desmascara a trama oculta da busca do poder: “Sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam”. Dessa forma alude a uma conduta que, a seu juízo, é clara entre os poderosos deste mundo.
Embora manifestem o desejo de caminhar com Jesus, Tiago e João deixam transparecer que carregam no coração o impulso para dominar e impor-se sobre os outros. Esta busca de poder destrói a paz e as relações entre os membros de uma comunidade que se diz seguidora daquele que não buscou o poder, mas o serviço.
Jesus apostou na vida de todos os seres humanos e não se deixou subornar por nenhum poder destruidor de vidas. Ele convidou ao serviço e à solidariedade como novidade radical.
Sua fidelidade ao Reino se tornou transparente e iluminadora no seu ministério em favor da vida.
O Deus que Ele nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres.
O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais nobres que pareçam ser. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.

Por isso, os discípulos de Jesus (e toda a Igreja) devem renunciar toda expressão de poder, os métodos de força, imposição e domínio que os poderosos deste mundo exercem sobre as pessoas.
Não há, para Jesus, um poder mau (próprio dos tiranos) e outro bom (que seria próprio de seus discípulos). Todo poder é, no fundo, destruidor, toda imposição é má. Por isso, Jesus não quer melhorar o poder (convertê-lo), mas superá-lo na raiz, isto é, não deixar que ele se manifeste.
Jesus não veio fundar hierarquias entendidas em chave de honra, poder e prioridade social ou espiritual. Ele iniciou, sim, um movimento humanizador, onde o poder não tem lugar. A partir daqui, é que se entende seu apelo ao seguimento, que implica uma inversão a respeito da ordem antiga: o poder (desejo de domínio) deve tornar-se gratuidade, gesto de amor desinteressado pelos outros, serviço comprometido...
Os discípulos tiveram dificuldades em compreender que o Seguimento passa pela implicação pessoal na solidariedade com as minorias e excluídos, pela denúncia do poder dominador e manipulador, gerador de morte. Eles queriam um líder triunfador que dividisse o poder com eles; por isso, lhes custou crer que a marca do Mestre de Nazaré é a vida que se doa para que o outro viva.

Ao colocar-se nessa atitude de serviço em relação ao mundo, a comunidade dos(as) seguidores(as) espelha-se em seu Senhor, que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida por todos. Estar a serviço é uma atitude gratuita que brota do amor, que faz a pessoa “sair” de si mesma e ir ao encontro do outro; coloca seu centro de atenção não em si, mas no outro e na coletividade, visando o bem de todos.
A atitude do serviço é o oposto do egoísmo autoreferencial, que leva o indivíduo a viver somente para si,
tendo em vista os próprios interesses. O caminho do Seguimento de Jesus descontrói essa lógica rasteira do egoísmo interesseiro e descortina perspectivas novas que, pela doação de si no serviço generoso, abrem os horizontes da pessoa para o verdadeiro sentido da vida e da realização humana.
Amar servindo e servir amando: este é o sentido de nossa missão cristã.
Tal amor e espírito de serviço concretizaram-se na generosa doação de tantos cristãos que, ao longo dos séculos, ofereceram e continuam oferecendo a vida a serviço dos outros em hospitais, creches, orfanatos, asilos, escolas, universidades, e numa infinidade de projetos e pastorais que atendem, sobretudo aos mais necessitados. Assim, a Igreja presta serviço formando gerações, influenciando culturas, salvando vidas, infundindo e consolidando valores em meio a sociedade onde se situa.

Jesus, com seu modo original de ser e viver, nos coloca diante da tentação que sempre nos ameaça: o gosto do poder, da comodidade, das pompas, do querer ser como os “chefes das nações”, de ter privilégios, de ser servido. Sua proposta de vida é de uma sabedoria e de uma humanidade finíssima; seu horizonte é o serviço.
Todos temos algo ou muito dos “filhos de Zebedeu” em nosso interior. Quanta afetividade mal resolvida procura se satisfazer com doses de poder! Essas doses na veia existencial é a morfina para acalmar problemas mais profundos. Os sedativos não curam nada, mas nos deixam anestesiados.
Quanto mais desintegrada a afetividade, mais despóticos e tirânicos nos tornamos. Os fanatismos, as intolerâncias, a violência e o ódio, o afã de se impor sobre os outros..., tem sua incubadora em uma afetividade não ou mal resolvida. Mesmo quando, na prática, não temos chances de exercer o poder, nos projetamos e nos identificamos com alguém que visibiliza as mazelas de nossa interioridade não integrada.
Portanto, mudar poder por serviço é a chave. A partir do serviço, a hipocrisia e a corrupção do poder se estatelam contra o solo; o serviço nos situa todos no mesmo nível, o horizontal: ninguém é mais que ninguém. Aclarando que serviço não é servilismo, que é do que se vale qualquer poder.
Jesus propõe o serviço como uma verdadeira revolução e é Ele quem dá o primeiro passo, rompendo esquemas, indicando que o caminho não é o poder que se impõe, mas a “descida” solidária.
Todos somos chamados à revolução do serviço, crentes e não crente, de todas as religiões e culturas. Coloquemos a serviço da vida os dons particulares, as habilidades, a profissão, os estudos, a sabedoria herdada de nossos antepassados, a capacidade de denúncia diante dos abusos, a luta contra a corrupção e a hipocrisia, a violência e o ódio.
Como cristãos, somos chamados a um “serviço amoroso”, gerador de vida e vida em plenitude.


Texto bíblicoMc 10,35-45

Na oração:
Na intimidade com o Senhor, perguntar-me:
- Minha presença no mundo e na Igreja é carregada de esperança? É inspiradora e servidora? Está a serviço da vida ou da morte?
- Em que posso crescer no serviço eficaz? Onde devo atuar? Como sair do “serviço repetitivo” e sem criatividade?

- No serviço, sou o “centro” ou o centro é o outro?

sábado, 13 de outubro de 2018

Vida com Sabor de Eternidade

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 28º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


“...que devo fazer para ganhar a vida eterna”? (Mc 10,17)

Ao começar a narrar a cena do jovem rico, Marcos nos faz cair na conta que o encontro acontece quando “Jesus saiu caminhando”. O caminho é o lugar dos encontros surpreendentes, do diálogo com o diferente, da amplitude de vida... A itinerância é o modo próprio de Jesus viver e, portanto, também é a marca do discipulado.
Ao mover-se de um lugar a outro Jesus se põe em condições de acolher o outro, de deixar-se afetar por suas buscas e perguntas existenciais. Abandona os lugares seguros e corretos para dirigir-se, não só às margens da história, mas também ali onde estavam outros homens e mulheres com inquietações diferentes, com outras visões e experiências..., mas carentes de sentido.
Toda saída implica deixar para trás lugares conhecidos, experiências que funcionaram, certezas adquiridas, crenças, valores, referências fixas...; enfim, tomar distância daquilo que parece nos dar mais segurança. Em outras palavras, toda saída, todo êxodo, implica uma profunda experiência de despojamento, um exercício para tornar leve a equipagem, uma confrontação com o novo e o diferente que, tantas vezes, assusta e provoca medo.
Nossos estilos de vida cristã e nossas estruturas precisam de uma transformação, uma itinerância, que só acontece quando corremos o risco de sair de nossas estufas mofadas e entrar nos novos espaços abertos, quando deixamos os lugares seguros e percorremos as ruas, ali onde acontece a vida das pessoas, procurando acolher todo o humano no coração.
Precisamos transitar novas sendas, exercer uma sadia auto-crítica com respeito a ideias, linguagens, estilos de vida, modos de compreender a fé, etc., que temos recebido e nas quais nos encontramos seguros e tranquilos. Precisamos passar de um olhar auto-referencial e moralizador a um olhar que corre o risco de encontrar-se com os olhos dos outros, dos diferentes, que se abra a novas aprendizagens e não tema as mudanças; de um olhar superficial a outro olhar capaz de perfurar a realidade até descobrir o Deus que “a todos dá a vida, respiração e tudo mais” (Atos 17,25)

 “Ao sair caminhando, quando veio alguém correndo...”. O encontro dá-se no caminho de Jesus para Jerusalém, e o homem que vem à sua procura (no começo, Marcos não oferece nenhum outro dado sobre ele, deixando o “efeito surpresa” para o final), aproxima-se correndo, como que fustigado por uma urgência implacável, e se ajoelha diante de Jesus, com respeito, como se visse nele seu último recurso para encontrar resposta à pergunta que lhe angustia.
Não vem a Jesus como outros personagens, oprimidos pela enfermidade, mas sim a partir de uma inquietude interior: “o que fazer para ganhar a vida eterna”? Não parece preocupá-lo a vida terrena, pois sua subsistência estava garantida; ele pergunta por uma vida definitiva, própria do mundo futuro: como evitar que a morte seja o fim de tudo? Quê fazer para “ganhar outra segurança”?
Podemos dizer que os evangelhos des-velam dois tipos de perguntas dirigidas a Jesus:
A primeira é: “Senhor, o que devo fazer para ganhar a vida eterna”? Esta pergunta nunca sai da boca de um pobre, mas de quem já tem assegurada a vida terrena e, agora, preocupa-se com a “poupança celestial”. É o caso do doutor da lei, de Nicodemos, do homem rico... A resposta de Jesus é, no mínimo, irônica, pois brota de uma pergunta que visivelmente o incomodava.
A outra pergunta é bem diferente: “Senhor, o que devo fazer para ter vida nesta vida? Pois, sou cego e quero enxergar, tenho a mão seca e preciso trabalhar, sou paralítico e quero andar, minha filha está doente e quero vê-la curada...”
Em outras palavras, “o que devo fazer para ter vida em plenitude”? Esta pergunta só é feita pela boca dos pobres. Pobreza é estar ameaçado num direito fundamental de vida. A esses, Jesus respondia com seriedade e acolhida. Interessante como a espiritualidade de Jesus era a de quem gerava vida, sobretudo para aqueles que estavam ameaçados em sua vida, dom maior de Deus. Ativava a Vida nesta vida.

No evangelho deste domingo, o jovem expõe sua inquietude pela vida eterna em termos de posse (“ganhar”) e, em relação aos mandamentos, diz que os “observava”. Em sua resposta, Jesus emprega os mesmos termos, mas em outra direção: não naquela da posse ou da herança, mas naquela do despojamento, do desprendimento, do esvaziamento e da entrega... Isso é “o que lhe falta: vai, vende, dá, segue-me...”
A inquietude do jovem estava centralizada na vida eterna, e Jesus responde apontando para esta vida, arrancando-a de um fatal “ponto morto”; diante de sua preocupação com o “além”, Jesus indica-lhe o “aquém”. O caminho para conseguir a outra vida (“um tesouro no céu”) passa necessariamente por uma maneira criativa e oblativa de usar os bens, tendo como horizonte de vida o mundo dos pobres.
“Uma coisa lhe faltava”, não para herdar a vida definitiva, mas para realizar em si mesmo o projeto de Deus, para encontrar a felicidade que não possuía e a plenitude à qual sentia-se chamado. Todo acesso a um “tesouro no céu” passa por um modo concreto de “gerenciar” o tesouro que se possui aqui, ao estilo de Jesus (“depois, vem e segue-me”). Participar da vida de Deus, que é o que consiste a vida eterna, é participar em sua prodigalidade e em sua generosidade já nesta vida.
A nova sabedoria pede capacidade para deixar-se surpreender e que os “diferentes” irrompam em seu mundo, mudem seus ritmos, as dinâmicas, desestruturem seus tempos e seus espaços..., revirem seus modos de viver, pensar, sentir e fazer; requer que a vida deixe certezas herdadas, e esteja disposta a re-inventar-se, quebrando “modos fechados” de ver o mundo, para depois reconstrui-los à luz de uma perspectiva mais ampla.

O espanto se apoderou do jovem: sentia-se diante de uma encruzilhada, na qual era convidado a deixar para trás todos os caminhos já frequentados, e adentrar-se em outro absolutamente novo e cheio de surpresas;  mudar o “modo de proceder e viver” que estava acostumado, desconectando-se de seus apegos às riquezas; atrever-se a crer numa palavra que afirmava que a vida plena, feliz e abundante que ele buscava, estava mais em deixar que em possuir; acolher o apelo para renunciar tudo aquilo que até esse momento, constituía sua segurança, e abrir-se a uma vida de partilha solidária....
Sentiu vertigem e se afastou devagarinho, consciente de que os olhos do Mestre continuavam fixos nele, esperando talvez que fizesse meia volta.
Jesus, ao fixar seu olhar no interior do jovem, o desafiou a colocar-se “em movimento” (“vem comigo”), pronto para começar algo novo, uma nova existência que não lhe era familiar e que o faria percorrer caminhos desconhecidos, sendas que não sabia por onde o levavam, porque estava fora da sua “ bolha de conforto”, confirmada pelo seu grupo social e religioso. Jesus o convidou a fazer caminho com Ele.
No entanto, o jovem escolheu a estabilidade, o lugar que lhe era familiar e que lhe dava segurança. Atrofiou sua vida e esvaziou-a do sentido de eternidade.


Texto bíblicoMc 10,17-31

Na oração:
Para identificar aquilo que sobra e que vai se tornando um “peso”, é bom tomar distância e considerar nossa vida a partir de outra perspec-tiva. É preciso parar e atrever-nos a acessar a esse recipiente vital onde vamos acumulando e perguntar-nos: quanto do que possuímos faz tempo que não usamos ou não precisamos? Quanto do que ali vemos ocupa um lugar desnecessário? Que encontramos ali que não nos enche de esperança? Que vemos ali que pode ser passível de ser mudado? Se tivéssemos que fazer limpeza, por onde começaríamos?... No nosso mundo interior, é necessário esvaziar para encher, tirar para deixar lugar para aquilo que é essencialmente importante e decisivo.
- Por que não colocar um pouco de ordem na sua mochila vital? O que lhe está sobrando?

- De verdade, de que você quer preencher sua vida? Está sua vida cheia de Vida?

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Aparecida: A Mãe que nos Acompanha

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da festa de Nossa Senhora Aparecida.

“A mãe de Jesus estava presente” (Jo 1,1)

O papa Francisco, em uma homilia proferida no Santuário Nacional de Aparecida, convidou a "nos deixar surpreender por Deus" constantemente.
Deus espera que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”.
O papa nos mostrou como modelo de surpresa a história do Santuário: três pescadores depois de um dia inteiro sem apanhar peixe encontram, nas águas do Rio Paraíba, a imagem da Senhora Aparecida. Sabemos que os pescadores, após encontrarem a imagem milagrosamente, têm uma pesca abundante e conseguem o que precisavam para atender ao conde de Assumar. O Papa Francisco vai além, vai ao essencial desse episódio para entendermos melhor como Deus atua: “Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera, torna-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe? Deus sempre surpreende, sempre nos reserva o melhor”.
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer.
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprendemos e nos fazem um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Em Maria nos inspiramos para viver também uma presença inspiradora em nossa existência cotidiana.

Maria foi aquela que, como ninguém, abriu-se ao Deus surpreendente e deixou-se conduzir por Ele. Dela não se diz muito nos evangelhos, mas o que ali se diz nos revela uma presença surpreendente, capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido.
Sua presença revela um gesto profético de solidariedade e de anúncio: presença que aponta para uma outra presença, a de seu Filho. Sua presença dignifica e revela um novo sentido à presença de Jesus numa festa de Casamento.
É o evangelista João quem nos apresenta Maria em sua verdadeira missão de presença mobilizadora e mediadora junto a Jesus. Não porque ele fale muitas vezes dela, mas porque a situa claramente nos dois momentos-chave da vida de Jesus: no início, quando faz adiantar a Hora, e na Hora da Cruz.
No relato da festa de casamento em Caná, o evangelista, com uma frase tipicamente sua, quer realçar um aspecto que muitas vezes nos escapa. Ele nos diz: “a mãe de Jesus estava presente”. E desta maneira, pela primeira vez, João apresenta a Virgem Maria em seu evangelho. E a nomeia como a mãe de Jesus. E será a primeira e única vez em que nos relata algumas palavras de Maria. Só duas frases curtas: a primeira é para avisar o seu Filho que o vinho tinha acabado“Eles não têm mais vinho”.
Maria, que sempre se revelou como uma mulher atenta à realidade, certamente andou pela cozinha da casa e se inteirou da dificuldade dos noivos e do problema que significaria interromper a festa do casório. Com sua sensibilidade feminina, entendeu a difícil situação e soube que atitude tomar.
Em outras palavras, Maria é aquela que sabe entrar em sintonia com os sentimentos dos outros e construir vida festiva, e vida em abundância. Ao sussurrar no ouvido de seu Filho - “Eles não têm mais vinho” - ela se revela sensível e atenta às necessidades das pessoas que vivem ao seu redor e as põe em comunicação com Aquele que pode remediar tais necessidades. O vinho simboliza o dinamismo da vida, a alegria, a festa contínua, a celebração...
E disse a segunda frase que ficará para sempre como um grande convite para todos os seguidores e seguidoras de Jesus: “Fazei tudo o que Ele vos disser” É como se esta frase fosse a condensação da mensagem e da atitude de Maria no evangelho. Ela se apresenta como caminho que conduz ao Caminho verdadeiro; foi aquela que mais conheceu e mais seguiu seu Filho; precisamente por isso, sua presença é capaz de alimentar em todos nós a confiança em Jesus e nos acompanha até Ele.

Porque estava presente a Deus, Maria fez-se presente nos momentos decisivos de seu Filho, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe que acompanha com ternura.
Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.
Trata-se de uma presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana; uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.

A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria des-vela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias  que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Disto se trata: aprender dos outros; recarregar nossa própria história de um horizonte diferente, no qual cabem outras possibilidades e outras responsabilidades; descobrir uma perspectiva mais ampla que ajuda a formular melhor o sentido de nossa própria vida.
Em Maria descobrimos a verdadeira vocação de todo ser humano. Ser como Maria não é uma simples meta a alcançar, pois partimos da mesma realidade da qual ela partiu. O que estamos celebrando, nesta festa da Mãe Aparecida, nos indica o ponto de partida de nossa trajetória humana, não o ponto de chegada.
E fazer este percurso vital é abrir-nos às surpresas do Deus Surpreendente.



Texto bíblicoJo 2,1-11

Na oração:
Por onde você tem transitado normalmente? Somente por lugares conhecidos, junto às pessoas amigas? Sua presença eleva, anima, desperta os outros?
Você se deixa afetar pelas presenças provocativas? os pobres? os marginalizados? as minorias?...


sábado, 6 de outubro de 2018

Voltar ao Princípio para Criar algo Novo

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 27º Domingo do Tempo Comum (Ano B).


“No entanto, desde o princípio da criação Deus os fez homem e mulher” (Mc 10,6)

O Mestre Jesus, em sua itinerância missionária, depara-se com diferentes perguntas sobre aspectos da vida, pessoal ou comunitária. Todas elas acabam se revelando uma ocasião privilegiada para Ele anunciar a Boa Notícia do Reino.
No evangelho deste domingo, partindo da pergunta que lhe fazem, Jesus não foca tanto na questão do divórcio (ou repúdio), quanto no lugar e na dignidade da mulher; sua resposta vai centrar-se em outra direção, pela qual não lhe haviam perguntado.
Para Jesus, não se pode tolerar uma lei machista segundo a qual o marido pode abandonar a sua esposa como se fosse uma mercadoria; os dois são pessoas com a mesma dignidade.
O que isso significa é bem simples: situar o homem e a mulher em pé de igualdade. Ou, dito de outro modo, desativar o machismo que, como ainda hoje em nosso contexto, leva a considerar a mulher como “propriedade” do homem ou, ao menos, como aquela que deve estar ao seu serviço.
É claro que tais atitudes machistas contradizem flagrantemente aquele primeiro princípio bíblico que falava de “ser os dois uma só carne”.

Na realidade, a atitude de Jesus é coerente com toda sua trajetória. Se algo fica claro, no relato evangélico, é seu posicionamento decidido a favor dos “últimos”, dos “pequenos”, das “crianças”, das mulheres...
Por tudo isso, não parece casual que, depois do relato no qual defende a igualdade da mulher com relação ao homem, apareça a cena de Jesus abraçando as crianças.
Seja qual for o motivo da pergunta feita pelos fariseus, a resposta de Jesus vai se centrar neste ponto: a “intuição primeira” (e, portanto, também o “horizonte”) para a qual tende a relação amorosa entre homem e mulher: “o que Deus uniu o homem não separe”. Mas Deus não une pelas leis canônicas e sim pelo amor cuja intenção é a plena comunhão entre duas pessoas. Uma coisa é a indissolubilidade canônica e outra é a fidelidade que o casal deve atualizar cada dia e em cada instante de sua convivência.

No meio de uma cultura marcadamente machista e patriarcal, Jesus desativou o machismo e rompeu com tabus intocáveis, adotando uma atitude de reconhecimento e valorização da mulher em nível de igualdade com o homem; e isso desde “o princípio”, ou seja, por vontade divina. Em um contexto no qual o mundo feminino era invisível, Jesus o fez visível, superando preconceitos e atitudes de dominação.
Ao renunciar sacralizar a sociedade patriarcal de sua época, Jesus restituiu à sua fonte original a relação entre homem e mulher, o matrimônio e a família.
Mulheres e homens aparecem em seu projeto como iguais, sem prioridade de um sexo sobre o outro.
No discipulado igualitário de Jesus, as mulheres encontraram espaço para se desenvolver em liberdade, rompendo a submissão à ordem patriarcal.
Jesus as emancipou e as fez companheiras itinerantes, em companhia dos homens, para escândalo daqueles que olhavam o corpo da mulher como perigoso e contaminante.

Sabemos que o ser humano se humaniza quando em companhia, e uma estável relação de casal alcança o grau mais profundo de realização humana. Esta é a chave de todo o discurso de Jesus.
Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. É Deus mesmo que atrai mulheres e homens para viverem unidos por um amor livre e gratuito. O matrimônio é a verdadeira escola do amor. Nenhuma outra relação humana chega a tal grau de profundidade.
O amor não é puro instinto, não é paixão, não é interesse, não é simples amizade nem simples desejo de um querer mútuo. É a capacidade de ir ao(à) outro(a) e encontrar-se com ele(ela) como pessoa, para que, no mútuo crescimento e experimentando-se como dom, ambos possam se ajudar para serem mais humanos. E uma das qualidades mais bonitas do amor é que deve estar crescendo toda a vida.
“O amor é faísca de Javé” (Cant. 8,6-7)
Nesse sentido, o matrimônio não é uma realidade estática, mas dinâmica, é chama divina, é mudança, é abertura ao novo, é projeto a ser construído cotidianamente a dois, é movimento na direção de um “Amor maior”, “amar melhor”, fundado sobre o amor incondicional de Deus.

A questão fontal, portanto, não é só disciplinar, de ascese e de uma moral rígida, mas a mística do amor; sem ela, o matrimônio se reduz a “um castelo de cartas” que se desmonta facilmente.
O Vat. II define a vida matrimonial como “comunhão de vida e de amor”.

1.       Comunhão de amor. Não de amor como mero enamoramento transitório; homem e mulher uniram-se em matrimônio não só porque se queriam, senão para plenificar o amor entre ambos.
2.       Comunhão de vida, porque prometeram percorrer, mutuamente unidos, o caminho de sua vida, não meramente “até que a morte os separe”, mas “até que a vida inteira, percorrida em uníssono, os una por completo”.

Ao envelhecer juntos, meta desafiante, consuma-se o matrimônio. Assim é que se realiza a vida juntos, fazendo-se companhia digna, ajudando-se mutuamente a se tornarem mais humanos; uma companhia experimentada como dom, com alegrias e sombras, querendo-se muito e também sendo mútuo suporte, mesmo no outono da vida.
Por isso, ao falar de “indissolubilidade matrimonial”, é preciso assumir com lucidez e serenidade o caráter processual da relação de “duas pessoas unindo-se” em “comunhão de vida e amor”.
Os trâmites legais que certificam o consentimento conjugal se firmam em um momento. Mas a união de duas pessoas em “comunhão de vida e amor” não é momento, mas processo; não tem efeito instantâneo a partir de uma declaração legal, nem de uma fusão biológica, nem de um artifício mágico, nem sequer de uma benção religiosa; não é uma foto estática e morta, mas um processo dinâmico e vivo.
A expressão “sim, eu quero”, não é uma fórmula mágica que produz automaticamente um vínculo indissolúvel. Para o casamento, basta meia hora. Para a consumação do matrimônio “de maneira humana”, é preciso uma vida inteira.

Por isso, ao invés de usar a expressão “um casal unido”, deveríamos optar por esta outra: “um casal unindo-se”. O casamento é um momento, mas o matrimônio é um processo; o matrimônio deve ser re-inventado, re-construido cada dia. Isso implica ser criativo na maneira de vivê-lo, buscar novas expressões, novos gestos... A cada dia, o casal deveria dizer, um ao outro: “Hoje eu te recebo novamente como minha esposa/meu esposo, e te prometo ser fiel, na alegria e na tristeza...”.
A indissolubilidade matrimonial não é um caráter selado a fogo como um carimbo, mas uma meta, fim e horizonte do processo em direção a uma profunda unidade de vida: “Serão os dois um só ser” (Gn 2,24); unidade sem costuras, na qual não se nega a diferença, mas esta fica integrada ou abraçada na Unidade maior que nada deixa fora.
“Projeto a dois”, mas sem anular a identidade, a originalidade do outro. O amor faz do homem e da mulher não “duas metades” que se encontram, mas dois inteiros que se doam, e que generosamente acolhem e transbordam o Amor de Deus semeado em seus corações, desde sempre.
Por isso, nas congratulações do dia do casamento, este deveria ser o desejo expresso aos noivos: “que realizeis vossa união, acompanhando-vos mutuamente através de uma longa vida”.

Texto bíblicoMc 10,2-16

Na oração:
Toda opção vocacional - matrimônio, vida consagrada, sacerdócio, solteiro(a) - é marcada com o selo do “sim”. É preciso, continuamente, re-encantar o “sim” e carregá-lo de sentido, de afeto, de ternura... Sim que se prolonga...
O “sim” proclamado diante de Deus, torna-se sagrado, compromete, faz cúmplice... Não é um “sim” que se fecha, mas que se expande, repercute nos outros, desencadeia outros “sins”... Sim com a marca da coragem, da ousadia... que arranca do imobilismo e desperta o sentido dos pequenos “sins” cotidianos.
- Fazer memória dos “sins” que significaram um salto qualitativo na sua vida.