quarta-feira, 20 de março de 2024

Domingo de Ramos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o relato da "Entrada de Jesus em Jerusalém" - Domingo de Ramos.

Humanizar nossa Jerusalém através de relações mais amorosas

Depois de um longo percurso quaresmal chegamos às portas das celebrações centrais da nossa vida cristã: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo.

Nas celebrações da Semana Santa, muitas vezes corremos o risco de nos deter no secundário e esquecer o essencial. E o mais essencial é que as diversas celebrações (procissões, via sacra, liturgias...) nos aproximem e nos façam crescer na identificação com o protagonista principal: Jesus de Nazaré.

Por isso, precisamos voltar constantemente ao Evangelho para compreender o mais essencial sobre Jesus. Recuperemos, como diz o Papa Francisco, o frescor original do Evangelho.

E a primeira coisa que o Evangelho nos diz é que Jesus foi um buscador de alternativas.

Ele não foi conivente e nem compactuou com a estrutura social-política-religiosa de seu tempo, que era profundamente desumanizadora. Sonhou novas possibilidades de vida e novas relações entre as pessoas. Por isso, ao anunciar o Reino, transgrediu a situação vigente e, a partir das periferias, foi despertando uma alentadora esperança nos corações dos mais pobres e excluídos, vítimas de um mundo fechado.

Jesus sempre sonhou com uma “nova humanidade”.

A Campanha da Fraternidade deste ano (“Vós sois todos irmãos”) constata esta realidade: há profundas divisões e conflitos em nossa sociedade, rompendo as relações fraternas e acentuando mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força. A Paixão de Jesus continua na paixão dos excluídos, das vítimas e de todos os rejeitados de nossos ambientes.

A vida de Jesus foi uma grande subida em direção a Jerusalém; e nesta subida, segundo os relatos evangélicos, Ele desconcertou a todos. Evidentemente, desconcertou as pessoas mais religiosas e observantes da religião judaica: fariseus, escribas, sacerdotes, anciãos...

Ele desencadeou na história da humanidade um “modo de viver” que quebrou toda estrutura petrificada, sobretudo religiosa, constituindo um “movimento” ousado que colocava o ser humano no centro.

Este movimento, desencadeado na Galileia, chega agora às portas da “cidade santa”, Jerusalém. Aquele homem que movia multidões por todo o país, por sua pregação e milagres, não é um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso deixou de ser provocativo, transgressor e perigoso. E tudo em nome da vida.

Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar para onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão, de justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar onde se cumpriria a esperança dos povos.

Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava re-criar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...

Jesus entra na grande cidade de Jerusalém montado num jumentinho, sinal da humildade e da simplicidade; sinal da pobreza evangélica, que são os verdadeiros sinais de sua messianidade. E morrerá desnudo em uma cruz, em meio às chacotas e burlas de todos.

Não basta pregar a pobreza; é preciso descer ao mundo dos pobres. Não basta falar dos pobres; é preciso fazer-se pobres com os pobres, partilhando a mesma pobreza. É preciso menos sapatos lustrados e mais pés cheirando a pó dos caminhos. Deus não necessita de Ferraris e Mercedes; a Deus lhe basta um jumentinho.

As nossas cidades também estão se revelando, cada vez com mais intensidade, como espaço de grandes rupturas e violências, lugar de exclusão e isolamento, visibilização de uma desumanização trágica.

Também os muros estão voltando à moda. Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Os muros, no interior das cidades, são muito concretos: muros sociais, religiosos, políticos, culturais... Com tantos muros é impossível estabelecer relações de fraternidade e reconciliação.

O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.

Por causa de seu tipo de vida e de sua espiritualidade, o(a) seguidor(a) de Jesus desenvolve uma relação específica com o espaço urbano. Para ele(ela), a cidade é também o espaço para a busca e o encontro de Deus. Podemos falar de um “típico modo de proceder cristão” em sua referência ao espaço urbano.

A cidade é uma realidade humana que pode e deve ser iluminada pelo Evangelho, sustentada pela graça, animada pela esperança da vinda do Reino. É necessário aprender a ler a cidade com os olhos caridosos, pacientes, misericordiosos, amigos, fecundos, cordiais...

É preciso reconhecer o bem profundo que habita o coração de tantas pessoas da cidade; é necessário perceber e sentir a força da ação do Espírito em cada canto da cidade e em cada rosto anônimo que encontramos.

Deus constrói a cidade perene, a cidade sem muralhas, a cidade da plenitude e da amizade, a cidade da fraternidade na qual todos se reconheçam como irmãos e irmãs sob um único Nome e sob um único Céu. Deus é o grande arquiteto; é Ele quem constrói, para a humanidade, a imensa cidade na qual todos se reconhecem fraternos, próximos, ternos...

Como seguidores(as) de Jesus, é preciso voltar a pôr o coração de Deus no coração da grande cidade”, para renová-la a partir de dentro.

Faz-se necessário uma opção por adentrar e viver imersos, com todas as consequências, no interior dos grandes centros urbanos, em seu coração, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus, que pulsa ao ritmo dos despossuídos, dos excluídos, dos sofredores e dos sedentos por uma vida mais digna.

Nosso zelo e amor pelo Evangelho e pela semente do Reino que nele está contida, deve favorecer o advento de uma “Nova Jerusalém”; é preciso cuidar o coração do “ser humano urbano”, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde receptáculo, para que o Espírito do Senhor possa pousar-se e habitar nele como num ninho acolhedor, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...

Uma das tarefas prioritárias do cristão de hoje é ajudar as comunidades cristãs a criar espaços fraternos de silêncio, de oração, pulmões que impedirão a asfixia de nossas grandes cidades;

* encontrar lugares de silêncio pacificador” na vida pública;

* nossas instituições devem ser escolas do silêncio habitado”.

A espiritualidade urbana deve nos possibilitar “paradas” com a finalidade de olhar em profundidade e “ler” tudo à luz da Palavra de Deus. A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde...  onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...

Para oração:

+ Leia atentamente o Evangelho indicado para a procissão de ramos; prepare-se para fazer uma contemplação: Mc 11,1-10

+ Com a imaginação recrie o cenário evangélico: a cidade de Jerusalém, o grande Templo, a diversidade de pessoas... Com a chegada de Jesus, montado em um burrinho e uma grande multidão, faça-se presente, procurando olhar as pessoas, escutar o que elas dizem, observar o que elas fazem...

+ Faça um colóquio com Jesus, expressando sua admiração pela atitude ousada e corajosa dele. Fale com Ele sobre sua presença na cidade onde mora: desejo de ser presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras...

+ Traga à “memória” o que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?...

+ Procure descobrir “sinais do Reino de Deus” no meio do ritmo frenético de sua cidade.

+ Traga à mente nomes de pessoas corajosas e criativas que contagiam e fazem crescer a esperança na sua cidade.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Desata a Vida de Deus que já Está em Ti!

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 5º  Domingo da Quaresma (2024).

 “Quem se apega à sua vida, perde-a” (Jo 12, 25)

O percurso quaresmal está chegando ao seu cume; aproxima-se o desenlace final de uma vida entregue em favor da vida. Jesus sente o clima pesado de rejeição por parte das autoridades religiosas. Estamos no cap. 12 do quarto evangelho. Depois da unção em Betânia e da entrada triunfal em Jerusalém, e como resposta aos gregos que queriam vê-lo, João põe na boca de Jesus um pequeno discurso que não responde nem aos gregos, nem a Felipe e André. Mais uma vez Jesus fala da Vida, da sua vida; Ele tem plena consciência que não viveu em vão: viveu des-centrado, investiu suas melhores energias vitais em favor de uma causa, sua vida deixou transparecer um profundo sentido.

Compreendemos melhor o evangelho deste domingo se o situamos no contexto da última viagem de Jesus a Jerusalém: nesta viagem se entrelaçam a vida e a morte com muita força.

E, ao chegar a Jerusalém, proclama de novo o triunfo da vida, como fizera durante sua itinerância pela Galileia. Ele nos revela esta verdade, nem sempre muito clara para nós: embora pareça que a vida se decompõe como o grão de trigo, na realidade, o que acontece é uma eclosão de sua fecundidade. Embora pareça que amar os outros e entregar a vida, dia após dia, é uma perda, na realidade é o maior ganho, porque nossa limitada vida se transforma numa vida plena, intensa, com sentido (eterna). Embora pareça que pôr-se a serviço do Reino é perder a liberdade, na realidade significa investir o melhor que há em nós, potencializando nossos recursos para investir numa causa mobilizadora, que é a causa do mesmo Jesus. Embora estejamos tão perturbados como Jesus, desejando que nos livre de qualquer processo que conduza ao sofrimento e à cruz, há um horizonte de glorificação e plenitude. Onde nos situamos neste confronto entre a vida e a morte?

A vida e a morte não são inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs inseparáveis.

Morre-se ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer.

A vida é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de toda a vida. As decisões fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós rondamos a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.

A experiência cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Vida sem morte é irresponsável; viver sem morrer é viver menos. Tira a seriedade da vida.

Só assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se.

A consciência de nosso próprio fim nos leva a pensar num sentido para a existência, para que não termine no vazio e no absurdo. Podemos afirmar, então, que “a morte está na vida”.

Entre os valores humanos fundamentais está o sentido.

A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é fundamental na existência humana.

- Por que vivemos? Para que vivemos? Quanto vale uma vida e o que vale na vida?

- Quem quer ficar ancorado? Quem não aspira preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões,

gestos, lições, projetos, ideias e sentimentos?

Qual o sentido da vida? Pergunta inquietante e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando: “vale a pena viver?”

Ninguém tem uma razão pela qual viver se não tem ao mesmo tempo uma razão pela qual morrer.

O ser humano tem necessidade de uma causa, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, impulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um objetivo no qual acredita apaixonadamente. E a ele dedicar-se com tudo que é e possui. Com intensa paixão.

Sabemos que, para viver uma vida verdadeiramente humana, precisamos de sentido. Segundo Nietzsche, “aquele que tem um porquê pelo qual viver pode tolerar praticamente qualquer como”.

Para Victor Frankl, fazemos a experiência do “sentido da vida” quando respondemos aos questionamentos da situação concreta em que vivemos, permitindo-nos a nós mesmos confiar em um “sentido último” que podemos chamar ou não de Deus.

Ao perder o sentido de sua origem e do seu fim, o ser humano perde o sentido da própria vida.

Portanto, o sentido da vida é algo que experimentamos visceralmente, sem que saibamos explicar ou justificar. Não é algo que se constrói, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos de onde vem nem para onde vai; é uma intensificação da vontade de viver a ponto de nos dar coragem para morrer por aquela causa que dá à vida o seu sentido.

É uma transformação de nossa visão de nós mesmos e do mundo, na qual as coisas se integram como uma melodia; isso nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos por um sentimento oceânico, sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões cósmicas.

Por trás do ritmo acelerado e estressante dos nossos tempos, esconde-se um enfraquecimento do sentido da existência. A crise pós-moderna que vivemos revela este traço sinistro: as pessoas não percebem mais razões e causas pelas quais se entregar, pelas quais dar a vida. E assim não encontram igualmente motiva-ções para viver intensamente. Segundo S. Inácio, uma pessoa vale pela causa à qual se entrega.

Muitas vezes, nossas fomes viscerais, nossos desejos que nos devoram as entranhas, nossos sonhos que nos inquietam... não encontram canais amplos para jorrar. E então se atrofiam, permanecendo reféns de uma triste mediocridade. “E a mediocridade não tem lugar na cosmovisão de Inácio” (Pe. Kolvenbach).

Surge então a “normose” que mina as forças, atrofia os sonhos e mata a criatividade. E o pior de tudo: anestesia a paixão. Se não há paixão naquilo que fazemos, tudo vira rotina cansativa, não há empenho e nem compromisso possível.

Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, é não perder a capacidade de amar, de vibrar, de buscar... Aqueles que são movidos pela paixão apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.

Inspirados pelo evangelho deste domingo, somos convidados a tomar consciência de como estamos gerenciando esta dinâmica: viver para nós mesmos (ego) ou entregar a vida (oblação).

Enquanto o ego for o centro, doar soa estranho; ele só se preocupa consigo, conquista, executa, quer ser o melhor (“se outros perdem, eu ganho”) e é obeso por natureza (ego inflado); devorador.

Se alguém quer me servir, siga-me...”. “Diakonos” significa servir, mas por amor. É no serviço e no seguimento de Jesus que as potencialidades de vida são ativadas.

Jesus convida a segui-lo no caminho que acaba de traçar, ou seja, doar a vida a serviço da vida. Seguir Jesus é entrar na esfera do divino, é deixar-nos conduzir pelo Espírito. Nossa vida só se reveste de pleno sentido quando se põe a serviço da Vida maior. Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de decisão, de entrega, de oblação.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 12,20-33

Na oração:

Examine, à luz do coração misericordioso do Pai, o percurso quaresmal vivido; des-velar estas três dinâmicas: a da gratidão, a do perdão e a da compaixão.

Em que medida elas se fizeram presente ao longo deste tempo litúrgico.

- São três atitudes que mobilizam o “melhor” que há em cada pessoa; três dinamismos que dão sentido à própria existência e abrem horizontes inspiradores; três forças que revelam a essência da vida cristã: identificação com Aquele que as viveu em plenitude.

terça-feira, 5 de março de 2024

Quaresma, tempo para ativar a luz interior

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo da Quaresma (2024).

“Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” (Jo 3,21) 

Avança o tempo quaresmal e, neste quarto domingo, nos encontramos com um discurso de Jesus, essencial para compreender seu percurso até a Páscoa. Este texto faz parte do profundo diálogo que Ele manteve com Nicodemos. Este era um rico fariseu, mestre em Israel e membro do Sinédrio, mas com uma concepção do judaísmo mais aberta e com o convencimento de que Jesus era um enviado do Deus de Israel.

Nicodemos foi encontrar-se com Jesus de noite; não queria ser visto pois não lhe convinha. Sua boa reputação como mestre fariseu poderia vir abaixo se as pessoas descobrissem que ele foi ao encontro de Jesus, aquele que, com sua presença, havia provocado agitação na cidade de Jerusalém.

Na realidade, a noite não só era o cenário que o envolvia; Nicodemos precisava de luz diante da obscuridade que o habitava. Suas dúvidas sobre quem era Jesus iam crescendo na medida que este realizava sinais em meio ao povo.

O evangelho deste domingo poderia ter vários títulos, todos eles interessantes: aqueles que buscam na noite da vida; os cristãos anônimos noturnos; diálogo noturnos que falam de grandes amanheceres...

De fato, nesse encontro entre Nicodemos e Jesus fala-se de “grandes amanheceres”. É possível que Nicodemos visse algo estranho e interessante em Jesus e procurasse cooptá-lo para seu grupo.

E, no entanto, Jesus inverte totalmente a situação e lhe faz grandes anúncios.

Talvez, se não tivesse sido de noite, Nicodemos não teria se colocado em caminho. Ele é nosso espelho; o que acontece com ele, também se faz presente em todos nós.

Assustam-nos as dúvidas, as interrogações, as dificuldades que encontramos para entender o que acontece ao nosso redor e em nosso próprio interior. Mas, bendita noite que nos inquieta e nos tira de nossa anestésica comodidade! Bendita noite que nos move a nos perguntar os “porquês” e os “comos” e põe em questão nossa vida! Bendita noite que nos faz buscadores de sentido!

Por isso, o mestre busca o Mestre, o homem busca o Homem. E este lhe fala de “nascer de novo”, de nascer do Espírito. “Como pode ser isto?” E Jesus re-situa Nicodemos em seu caminho de fé.

Jesus, conhecedor de nossa humanidade, confirma a Nicodemos a existência da noite, a sua e a do mundo. Fala-lhe de obscuridades, da cegueira que nos leva, às vezes, a amar mais as trevas que a luz, do mal que provoca infelicidade.

Com suas palavras e ações, Jesus colocou em questão as verdades mais profundas de Nicodemos, aquelas certezas que o haviam configurado, aqueles pilares sobre os quais havia assentado, até então, sua vida e seu ensinamento da Lei.

Jesus reaviva sua memória para que Nicodemos não fique aí: “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Jesus lhe oferece palavras de vida, que lhe recordam a possibilidade de eleger o bem, de agir na verdade, de caminhar para a luz.

E assim, no meio da noite, Nicodemos recupera a luz. Porque Jesus é a Luz; o Amor é a luz.

Foi a Ele de noite, e n’Ele encontrou a luz.

Uma luz tão intensa que o tirou de sua obscuridade, transformando sua vida; e, na morte de Jesus, será o próprio Nicodemos quem abraçará o corpo do crucificado para envolvê-lo em lençóis e perfumes.

O mestre dando testemunho público de seu amor ao Mestre; o homem fazendo-nos fixar nosso olhar no Homem, levantado na Cruz, para que n’Ele encontremos a Luz.

Quaresma é um tempo privilegiado para “descer” em nossas noites e responder estas perguntas: por que fugimos tanto de nós mesmos e de Deus? Por que preferimos viver iludidos, sem buscar a luz presente no nosso próprio interior? Porque costumamos praticar essa mentira com muita frequência: pensamos de um modo, mas em nossa maneira de viver não atuamos como pensamos, senão que buscamos manter as aparências, para que os outros tenham boa imagem de nós?

Jesus desmascara nossas mentiras existênciais; é preciso escutar suas palavras: “Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus”.

O símbolo da luz está muito presente na Bíblia (e na vida). A luz é o princípio da criação da vida (Gn 1,3). O povo que vivia nas trevas, viu uma grande luz (Mt 4,16). Eu sou a Luz do mundo (Jo 8,12; 9,5).

A primeira ação e palavra de Deus no relato da Criação é precisamente dar existência à Luz, a Luz que é a

consciência e a capacidade de compreender, de dar sentido à realidade criada. Deus separa a Luz das trevas e o evangelho de hoje nos recorda que viver na Luz nos encaminha para a verdade do que somos.

Podemos eleger entre viver a partir da força da Luz, que nos move a fazer o bem, a realizar ações inspiradas pelo Deus-Amor, a co-criar uma nova humanidade..., ou viver a partir da tirania das trevas que nos enreda na obscuridade das armadilhas, justificações e a supremacia de nossos egos. Caminho complexo, de avanços e retrocessos, mas se nos situamos sob a influência da Luz poderemos avançar sem perder o horizonte da Vida eterna, eternizando a nossa vida, como plenitude do que já somos, mas ainda não plenamente.

Costumamos empregar o símbolo da luz nos momentos mais importantes da vida: as mães “dão à luz”. Quando alguém morre, pedimos a Deus Pai que lhe “conceda a luz eterna”. Em situações difíceis não vemos a luz, a saída. Às vezes, nos encontramos com pessoas que “não tem luz” ou nós mesmos somos carentes de luz por fraqueza, cansaços, falta de sentido etc.

Como cristãos, nos aproximamos d’Aquele que é a Luz, para que Ele ilumine nossa vida e nós transmitamos, reflitamos um pouco de Sua luz. Como cristãos, somos como João Batista: não somos a luz, Cristo é a luz.

A vida nos convoca a ser luz: como pais e mães de família que iluminam a vida de seus filhos; como companheiros e amigos que se iluminam mutuamente; uma comunidade religiosa deve deixar transparecer a luz presente em cada membro; a responsabilidade de um educador, de um mestre é grande à hora de iluminar, de ensinar mais com seu testemunho que com sua ciência; os psicólogos, os médicos iluminam também a vida, os problemas das pessoas; os presbíteros, os catequistas tem a responsabilidade de transmitir a luz de Cristo. A luz cristã está presente nos corações compassivos e misericordiosos.

A chama não precisa fazer um “esforço” para iluminar. Na nossa essência, já somos luz, carregamos a chama da luz divina; o que se requer de nós é não bloqueá-la. Isso implica atitudes de autenticidade e de transparência; “andar na verdade”.

Assim como a chama ilumina por si mesma, a luz brota em nós quando vivemos de uma maneira oblativa, sendo canais transparentes pelos quais ela flui. A nós, como a chama, basta ser o que somos e viver em coerência com isso. Então, crescerá em nós uma atitude de esvaziamento do ego e de liberdade interior: deixaremos que a Vida flua, sendo presenças iluminantes em cada recanto e em cada situação de nosso cotidiano. Sejamos transparência da luz divina!

Texto bíblico: Evangelho segundo João 3,14-21

Na oração:

Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando em seu interior a faísca da luz divina, que o(a) tornará lúcido(a) para dar uma direção oblativa à sua vida; ao mesmo tempo, confirme se esta luz se revela como inspiração para viver o espírito solidário e o compromisso com aqueles que estão perdidos no mundo das trevas e da exclusão.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Jesus, o Homem das “Grandes Viradas”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo da Quaresma (2024).

“...espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (Jo 2,15)

O simbólico ataque frontal ao Templo foi determinante para Jesus ser considerado como um subversivo e um blasfemo pelo sistema religioso e político de seu tempo. Os quatro evangelhos fazem referência a esse fato, o que mostra como indubitável e decisivo.

Jesus foi um profeta que viveu de tal maneira que quando começou a atuar e falar em público, entrou em conflito com os responsáveis da religião e os mais estritos observantes.

Jesus oferecia uma visão diferente daquela visão oficial do Templo; Ele olhava o mundo a partir de baixo, um olhar rente ao chão capaz de provocar uma reviravolta em tudo o que existe; Ele não se submeteu aos ditames das hierarquias políticas e religiosas de seu tempo.

Jesus foi o profeta da liberdade. Cumpriu perfeitamente a profecia de Isaías de proclamar a liberdade aos cativos da lei religiosa, e a liberdade aos oprimidos pelo sistema. Pensou e atuou completamente independente, à margem da mentalidade oficial imposta pela religião estabelecida e pela política do império. 

Ao “virar as mesas e espalhar as moedas”, Jesus estava atacando diretamente o tributo ao Templo e, com ele, ao sistema econômico religioso dominante. O Templo era, para Jesus, uma empresa que explorava economicamente o povo. De fato, o culto proporcionava enormes riquezas à cidade e aos comerciantes, sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados. A ação de Jesus atingiu, portanto, um ponto nevrálgico: o sistema econômico e ideológico que o Templo representava em Israel.

O Templo era “casa do mercado”, e ali o “deus” era o dinheiro. Ao chamar a Deus “meu Pai”, Jesus não o identifica com o sistema religioso do Templo. A relação com Deus não é “religiosa”, mas familiar, está no âmbito da casa familiar. A relação se dessacraliza e se familiariza. Na “casa do Pai” já não pode haver comércio nem exploração, sendo casa-família que acolhe a quem necessite amor, intimidade, confiança, afeto.

Jesus derrubou as mesas dos cambistas e jogou as moedas ao chão, para dizer que a vida não se faz de moedas, mas de intercambio direto de vida. Jesus está supondo aqui que pode haver um mundo sem bancos, um mundo de encontros pessoais... Um mundo onde o valor supremo é o corpo e a palavra...

Jesus, na sua vida pública, nos revelou que Deus não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e que ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele revela seu rosto naqueles que vivem no amor mútuo e na entrega da própria vida. Ao mesmo tempo, Jesus denunciou o “deus” manipulado pelos representantes religiosos e que justificavam os seus poderes sobre as consciências das pessoas.

A espiritualidade de Jesus planta suas raízes fora do Templo, em um território “profano”; é, pois, uma espiritualidade laica. Jesus de Nazaré se retira ao deserto para orar e a outros lugares não oficiais, e não é membro da comunidade dos essênios. Sente profundamente sua religação com o Pai, dialoga com Ele, se alimenta interiormente dessa relação íntima, mas retorna ao mundo, à história na qual se encarnou.

Os fariseus e sacerdotes, por sua vez, queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...

O Templo, como não pode ser o lar dos filhos e filhas afligidos da casa de Israel, será destruído.

O lugar da Presença que alimentava as esperanças de Israel se converteu em cova de bandidos; o Templo passou a ser gerido pelos traficantes da dor, aqueles que fazem sofrer em nome de Deus.

Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava.

Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua consciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus. 

O conflito de Jesus foi o conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última: o “poder religioso”. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.

Jesus desmontou o “seu deus” e atirou por terra “seus podres poderes”. Ainda hoje, de acordo com o Deus

em quem se crê, justifica-se o poder daqueles que socialmente aparecem como seus representantes.

De fato, o “poder religioso” é o mais nefasto e desumanizador.

Aquele “dia de entrada no Templo” foi uma autêntica manifestação de desafio; Jesus transgrediu ousadamente ao “expulsar os vendedores e cambistas” instalados no Templo. E essa foi a “sua hora”: desmascarar a manipulação e extorsão com as quais o poder religioso exercia sobre o povo oprimido.

Quando os chefes religiosos perguntam a Jesus com que autoridade desafia o poder estabelecido, Ele respon-de: “Destruí este Templo e em três dias o reedificarei”. E o evangelista acrescenta: “Ele se referia à própria pessoa”.

O lugar do verdadeiro culto é a Pessoa mesma de Jesus; culto que se expressa na identificação e no seguimento d’Aquele que se revelou radicalmente livre perante todas as instituições religiosas.

O templo e a lei devem ficar submetidos e devem estar a serviço do ser humano; portanto, este não pode ser objeto de nenhuma manipulação.

Jesus diz que o autêntico templo de Deus é cada pessoa e que esse templo não há quem o destrua. Ele revela que o ser humano é o grande valor querido por Deus, e que o sábado, a lei e o Templo são meios para facilitar a humanização; e a vida humana está revestida de sacralidade e não os altares, os templos e os costumes antigos.

Em outro relato (Jo 4, 23) Jesus afirmara que o Pai não é adorado em nenhum templo, mas em “espírito e em verdade”. Ali onde há “espírito”, ali onde há “verdade”, ali está Deus. Este mundo não precisa de templos, mas “espírito e verdade”. O ruído das ruas é também “eco de Deus” como o silêncio dos mosteiros. Pretender expulsar Deus de nossa realidade é pretender o impossível. São nossos olhos que estão cegos e que não consegue ver a Deus presente nela.

A grande tragédia é que aqueles que se consideram pessoas de fé tampouco O veem, ou melhor, não querem ver a presença de Deus em tantos lugares “profanos”. Aqueles que se consideram “religiosos” parece que só querem ver a Deus em determinados espaços, em seus templos e em seus ritualismos.

Mas Deus se revela presente em tantas pessoas pobres, necessitadas, nas realidades profanas nas quais há amor, embora talvez não haja ritos ou manifestações piedosas. Muitas vezes, os ritos religiosos não modificam nossas condutas, mas, o efeito que produzem é tranquilizar nossas consciências.

Chega-se ao extremo de harmonizar tanta fidelidade religiosa com tanta infidelidade ética ou simplesmente com tanta desumanização.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 2,13-25

Na oração:

Há um tipo de “templo” que está caindo também hoje. Que faremos? Chorar sua queda? Contemplá-lo indiferentes? Ajudar a derrubá-lo? Se não começamos a destruir nossos “templos sagrados” não faremos o caminho do Reino.

A ação profética de Jesus nos obriga a revisar nossa visão de “templo”. Todo ser humano é “templo de Deus”.  O tema da CF deste ano – “Fraternidade e amizade social” - deve despertar em nós uma nova sensibilidade para alargar nosso círculo de amizade e nos aproximar daqueles que são “os amigos do Rei Eterno”, ou seja, os pobres e excluídos.

- Você consegue discernir a presença de Deus nas realidades “mundanas”: na vida concreta, no ambiente familiar e de trabalho, no protesto dos excluídos, na sensibilidade ecológica de muitos, nas buscas sinceras de muitas pessoas, nas diferentes expressões de amor daqueles que são considerados “ateus” ...?