sábado, 26 de novembro de 2016

ADVENTO: modo criativo de esperar

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para o 1º Domingo do Tempo Litúrgico do Advento (Ano A).
O próximo domingo marca o início de um novo ano litúrgico: Advento. Segundo S. Gregório de Nissa "na vida cristã vamos de começo em começo, através de começos sem fim". Trata-se de um recomeçar contínuo, no qual nos colocamos sempre de novo à escuta do Espírito, para viver com mais intensidade o seguimento de Jesus Cristo.
Um santo Advento a todos!

“Por isso, também vós ficai preparados! Porque, na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mateus 24,44)

Em cada ano, no tempo do Advento, a liturgia da Igreja nos mobiliza a esperar. Nem sempre caímos na conta que tenhamos a Quem esperar. Então, nos dispersamos “esperando algo”, vivendo a lenta e inevitável fila das esperas.
Como seres humanos, fomos feitos para esperar: esperar um filho, esperar um trabalho, esperar o resultado de um exame médico, esperar que as coisas melhorem, esperar que saia o sol… Trata-se de uma sucessão interminável de esperas, algumas vezes infrutíferas, indesejadas e angustiosas, outras vezes surpreendentes, plenificantes… Às vezes esperamos sem saber muito bem o quê ou quem esperamos, como os dois personagens do filme “Esperando Godot”, que nunca souberam a quem esperavam, nem por que esperavam, nem se, efetivamente, chegaria o esperado Godot.
Outras vezes, a espera se vê realizada, mas o resultado da mesma é tão pífio, tão frustrante, que os “esperantes” terminam por pensar se valeu a pena tanta mobilização. Existem também esperas doentias, que provocam ansiedade, medo e nos paralisam; esperas centradas em nós mesmos.
Esperar, para quê? a quem? de onde nasce a necessidade de esperar?

Vivemos tempos carregados de “pressas” que nos mantém tensos; queremos resultados imediatos e nos angustiamos na impaciência. Mas a vida cristã precisa de muito Advento, muita espera e paciência. No interior de nossas entranhas brota uma voz serena: “Dá prá esperar?”
Só quem é movido a “sentir o tempo” de modo novo pode habitá-lo com intensidade em todas as etapas da vida. Cada momento esconde sua pérola e é muito instigante poder descobri-la.
A vida cristã é uma vida de espera, mas se trata de uma espera carregada de esperança. Esperar é uma forma de viver, um hábito de vida. Nós somos o que esperamos. “Só quem espera pode ver”.
Estamos no tempo litúrgico da espera, que nos motiva a esperar, mas a esperar com esperança, sabendo a Quem esperamos; mais ainda, sabemos que, Aquele que esperamos, já chegou, que já está entre nós, que as promessas esperadas já estão cumpridas. Deus vem a nós e a nossa espera ativa é a nossa maneira de ir até Ele. Aquele que esperamos já está presente, dando um sentido de eternidade à nossa espera.
Espera que nos faz criativos, intuitivos, sonhadores... Espera que nos faz sair de nós mesmos, abrir-nos à realidade que nos cerca e crescer em comunhão com tantos que nos esperam. Espera que nos descentra.
“Diga-me o que você espera e vou lhe dizer quem você é”. A espera revela nossa identidade, aponta para onde está nosso coração.

O “que” ou “quem” esperamos? Se não sabemos o que esperamos, a vida perde sabor e sentido; quem não espera, não busca, não amadurece. No supermercado da vida há muitas ofertas que pretendem preencher o vazio da espera, mas não tem consistência, não nos saciam, não nos preenchem, e não nos indicam um horizonte de sentido. O maior inimigo da espera é a dispersão, ou seja, apego ao imediato e à rotina da vida: “comer, beber, casar... como nos tempos de Noé”, Vivemos tempos de dispersão, cativados pela mídia, pelas ofertas alucinantes... Isso corrói nossa interioridade, nossa visão se atrofia e o horizonte fica obscurecido. A espera vigilante implica ampliar o olhar para além dos nossos pequenos interesses.
Advento é tempo propício para ampliar a visão. Deus não criou as fronteiras; podemos olhar mais além, lançar por terra os limites inventados, desfazer os muros que nos mantém numa vida normótica e repetitiva.
A espera vigilante pede um olhar de longo alcance e, ao mesmo tempo, um olhar que capta os pequenos sinais da Presença d’Aquele que sempre está vindo, no cotidiano da vida.
Na espera corremos dois riscos: fixar-nos somente no horizonte e aguardar vindas extraordinárias, fora do normal... desviando o nosso olhar das vindas d’Aquele que se faz presente na simplicidade da vida.
Outro risco é ter uma visão atrofiada, limitada ao cotidiano da vida e perdendo-nos na confusão de sinais e vozes que daí brotam. É preciso integrar os dois movimentos. É preciso ter um horizonte de sentido que nos ajude a discernir e distinguir tais sinais.
Do cotidiano aos largos horizontes (amplitude de visão e de vida) e dos largos horizontes ao cotidiano (dar sentido ao nosso chão cotidiano). “Não ter medo do máximo e caber no mínimo: isso é divino”.

Advento não é aguardar Alguém ausente; mas despertar para se fazer presente Àquele que está sempre presente. Esperar é “estar acordado”, no sentido de estar atento e também no sentido musical de “estar afinado”, sintonizado com a Presença que se “des-vela” sempre inesperada, surpreendente e provocativa.
Para dar lugar Àquele que vem sem cessar, é preciso alargar espaço em nossas vidas, expandir nosso coração, aliviar nossas agendas e realizar gestos de serviço que nos fazem crescer em comunhão.
A espera de Alguém desperta nossa sensibilidade para perceber que Aquele que esperamos já está presente; nós é que estamos cegos e surdos aos sinais e vozes de sua presença.
O convite de Jesus a viver vigilantes é um chamado a refazer nossa leitura dos acontecimentos, a aprender a lê-los a partir do amor que quer abrir passagem em nós.
Não estamos simplesmente “esperando Godot” para entreter o tempo e a vida. A espera não se reduz à espera mesma: ela tem conteúdo. O Salvador não cessou de vir; vem diariamente a nossos mundos (família, trabalho, relações, descanso...), vem para dar à nossa vida a profundidade e largura de seu amor, para que a Criação inteira recupere a beleza, a harmonia e a liberdade que desfrutava quando saiu das mãos do Criador.

A maneira de nos situar na vida muda quando ansiosamente esperamos Alguém: nosso coração se dilata e a vida se torna mais leve. Aquele que esteve, está e estará sempre presente, não vem para complicar nossa vida. Quantas pessoas vemos com o rosto sombrio, como se acreditassem que já não lhes aguarda nada novo, como se em suas vidas tudo estivesse pré-determinado, sem nenhuma possibilidade de mudança!
Advento quer abrir uma brecha naquilo que já conhecemos e sabemos para preparar-nos para receber a força incomparável de uma alegria que quer alcançar nossas vidas.
Esperar nos faz assumir a atitude de sentinelas que, numa posição elevada, é capaz de ler a realidade, vislumbrar o novo e assumir atitudes coerentes.
É de dentro das circunstâncias que atravessamos que Deus não cessa de nos buscar e de nos surpreender.

Texto bíblico: Mateus 24,37-44

Na oração: A espera do Advento é mobilizadora, pois ativa nossas melhores energias e desata ricas possibilidades latentes em nós.
Deus vem oferecer-nos infinitas possibilidades de viver de outra maneira.
- O que espero no início deste novo tempo litúrgico: esperar atrofiado, rotineiro... ou esperar criativo e ousado?

sábado, 19 de novembro de 2016

CRUZ: “Misericórdia vulnerável”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para a festa de Cristo Rei, que encerra o Ano Litúrgico.

“Acima d’Ele havia um letreiro: ‘Este é o Rei dos judeus’” (Lucas 23,38)

Pode nos causar espanto o fato da liturgia escolher, para a festa de Cristo Rei, a cena da morte de Jesus na Cruz. Para Lucas, o Reino de Jesus é essencialmente o Reino da reconciliação do ser humano com Deus. Em outras palavras, a reconciliação tem como centro a Cruz, ato supremo de amor e expressão visível da Misericórdia de Deus. Podemos, então, afirmar que a “A CRUZ é o lugar por excelência da revelação visível da Misericórdia de Deus”.
No mistério da Paixão do Filho se manifestou radicalmente a Misericórdia do Pai. Na Paixão encontramos a Misericórdia de um Deus que desceu e chegou até o extremo da fragilidade para manifestar a força reconstrutora de seu Amor. Se Deus “sofre”, é por seu excesso de Amor, desde o princípio.
A Cruz de Jesus expressa de maneira penetrante o Amor Misericordioso do Pai. Ela é revelação do Amor levado até às últimas consequências. Ela nos fala daquilo que Deus sente por nós.
                 “Deus é capaz de sofrer porque é capaz de amar. Sua essência é a MISERICÓRDIA” (Moltmann).
A Misericórdia torna o próprio Deus vulnerável e passível de um sofrimento livre, ativo, fecundo.
Se Deus fosse impassível (incapaz de sofrer) seria também incapaz de amar.

De fato, o mistério do “amor em excesso” de Deus, revelado no silêncio junto ao sofrimento inocente, chama-se misericórdia compassiva. Só o amor é capaz desse sofrimento compassivo. Porque é Amor puro, Deus usa de paciência, de presença silenciosa, de misericórdia ativa e, assim, salva de forma compassiva toda criatura em seu seio regenerador. Só Ele é capaz de assumir para si o sofrimento e a fragilidade humana, abrindo um novo horizonte de vida.
No N.T., o mistério da Misericórdia do Pai atravessa toda a experiência de Jesus, de sua missão, mas também de sua própria paixão e de sua Páscoa. No sofrimento e morte do Filho há a dor de dilaceração, fragilidade e silêncio do Deus Pai/Mãe, como em dores de parto por uma criação que ainda precisa da compaixão e da misericórdia maternal do Criador. Se o Criador sofre em dores de parto por sua criação, nosso sofrimento está em suas mãos, em seu seio. É a maternidade divina regeneradora de sofrimentos.

Sem a Cruz seria muito difícil convencer o ser humano do amor misericordioso de Deus, e mais ainda de seu apaixonado interesse por nos salvar. Mas, a partir dela, será sempre possível dizer ao ser humano que a Cruz de Jesus tem um sentido, e que a última palavra é “salvação”.
No Jesus crucificado se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes e crucificados da história; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofrida e excluída.
A “kénosis” de Jesus nos ensina, portanto, a encontrar Deus nos lugares onde a vida se acha bloqueada.
Deus “desceu” às zonas mais escuras da humanidade – sofrimentos, fracassos, amarguras, pecados... – para sentir como Seu nosso sofrimento e ali falar ao nosso coração. No silêncio, Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”, identificado com os sofredores, aqueles que sobram...

A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos.
 “Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
“Morreu de vida”: isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido recordar Jesus, olhando as chagas de seu corpo e as pegadas de sua vida.
O Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte.
A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor misericordioso.
Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter sempre viva a memória de todos os crucificados da história.
Mais uma vez, no alto da Cruz, a Misericórdia visível em Jesus revela-se expansiva, envolvente e salvífica.
Lucas, no evangelho de hoje, destaca diferentes reações das diferentes pessoas que estavam junto à Cruz. Elas representam toda a humanidade frente à Misericórdia solidária de Jesus. Por um lado, estão aquelas pessoas que não viram no rosto de Jesus o olhar misericordioso do Pai; parece não terem entendido a proposta de vida de Jesus. Por isso zombam, desprezam, pedem sinais...
Mas, por outro lado, do meio das zombarias e escárnios, alguém, tocado pelo silêncio e inocência de Jesus, deixa escapar uma surpreendente súplica: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Não se trata de um discípulo nem um seguidor de Jesus, mas um dos ladrões crucificados junto a Ele. Ele só pede que Jesus não se esqueça dele. E Jesus responde prontamente: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso”. Revela-se impactante que, dos lábios de homem derrotado e moribundo, brote uma palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a torna eterna, em um presente sempre atual: “hoje”.
Esta cena nos indica até onde pode chegar a Misericórdia: do meio da morte ela se revela, mais uma vez, geradora de vida, e vida eterna.
Agora, na Cruz, estão os dois unidos no suplício e na impotência, mas Jesus, com sua presença misericordiosa, o acolhe como companheiro inseparável. Morrerão crucificados, mas entrarão juntos no mistério de Deus.

Estamos encerrando o “Jubileu extraordinário da Misericórdia”; e a vivência da Misericórdia é a que impulsiona a Igreja para fora de si mesma, para as margens, onde acontece o sofrimento humano. Uma Igreja configurada pelo “Princípio Misericórdia” tem força e coragem para denunciar os geradores de sofrimento e morte, para desmascarar a mentira daqueles que oprimem, para animar e despertar a esperança daqueles que são as vítimas.
Quando isso ocorre, a Igreja é ameaçada, atacada e perseguida; mas isso mostra que ela se deixou conduzir pelo “Princípio Misericórdia”. A ausência de tais ameaças, ataques e perseguições significa, por sua vez, que a Igreja não está sendo fiel a esta misericórdia reconstrutora que se fez visível na Paixão e Cruz de Jesus Cristo. Se ela leva a sério a misericórdia e deixa transparecer no seu modo de se fazer presente no mundo, então ela se torna conflitiva.
Diante do supremo indicador do amor misericordioso de Jesus e do amor do Pai, abre-se para a Igreja uma inesgotável inspiração e uma referência única para ser, também ela, presença misericordiosa.

Texto bíblicoLucas 23,35-43

Na oração: recordar momentos significativos vividos neste Jubileu de Misericórdia que ora se encerra.
Mas a Misericórdia não se restringe a um jubileu, não é um evento; ela é habito de vida, pois é a marca distintiva de todo seguidor de Jesus: “Sede misericordiosos como o Pai”.

- Como deixar transparecer a Misericórdia do Deus Pai/Mãe no cotidiano de sua vida?

sábado, 12 de novembro de 2016

A crise não é acidente de percurso, é a essência da vida

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 33º Domingo do Tempo Comum - Ano C.

“Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu” (Lucas 21,11)

Aproxima-se o final de mais um ciclo litúrgico e a celebração eucarística deste domingo nos situa diante do último discurso de Jesus, anunciando a queda do Templo de Jerusalém e a presença das crises.
As crises são situações de passagem e fazem parte do crescimento humano, tanto pessoal como coletivo. Não há desenvolvimento sem períodos de ruptura e de descontinuidade. Mas, muitos permanecem paralisados diante do seu caráter ameaçante; acabam por retrair-se e isolar-se no medo.
No entanto, a crise revela uma excelente oportunidade para dispor-nos a avançar, dando um salto qualitativo e de crescimento. Inclusive ela pode ser ocasião propícia para ativar recursos e potencialidades latentes que em tempos de aparente harmonia ainda não tiveram chance de se manifestar. Em cada situação crítica que parece bloquear o caminho, saímos mais humanos e mais criativos.
Nas diversas sabedorias e culturas, como também na psicologia, sociologia, espiritualidade... as crises não só são inevitáveis, mas necessárias e convenientes, porque indicam a passagem de uma etapa a outra. Esta passagem é sempre incômoda, difícil e, inclusive, perigosa porque os elementos que tinham encontrado seu equilíbrio se desestabilizam. Necessita-se habilidade, coragem, tempo e paciência para que se encontre de novo a harmonia. As crises, portanto, não são acidentes de percurso, são a essência mesma do caminho.
O perigo está em permanecer nas manifestações externas e nas evidências imediatas da crise (terremotos, fomes, sinais pavorosos...), conduzindo-nos ao desespero e a sensação de perder o solo sob nossos pés. Só quem desce às profundezas de seu ser encontrará solo firme sobre o qual manter-se inabalável. O furacão revela um núcleo interior de calma e serenidade, enquanto ao seu redor espalha destruição e violência. O mar, nas suas profundezas encontra-se tranquilo, enquanto na superfície as ondas mostram-se agitadas.

A vida está atravessada por um misterioso impulso de “sempre mais”, dinamismo que caracteriza a essência do existir humano; ela está em permanente desenvolvimento e as convulsões fazem parte do processo de mudança e crescimento.
Em tempos de crise, tudo aquilo que nos dava segurança, parece desmoronar-se: o horizonte fica obscurecido, os valores perdem credibilidade, tudo passa por desestabilizações, rupturas, novas adaptações. Tal situação gera insegurança, medo, impotência e experiência de fracasso: projetos se esvaziam, a esperança se atrofia, a criatividade se petrifica...
O crescimento do ser humano não é linear senão que transcorre através de uma sucessão de rupturas.
A primeira é o nascimento, a crise maior de nossa vida, juntamente com a morte, que é a última. Nossa existência é um percurso entre duas rupturas nas quais se dá uma mudança qualitativa entre um modo de ser a outro. Nascer supõe abandonar o ventre materno para expor-se ao desafio da individualidade; morrer supõe deixar esta individualidade para entrar em outro modo de existência. Cada etapa de crescimento suporá um tipo de crise. Assim avança a vida, abrindo-se caminho sem cessar à custa de deixar os territórios familiares para adentrar-se nos inexplorados.
Atribui-se a Albert Einstein as seguintes palavras:
“Não pretendamos que as coisas mudem se sempre fazemos o mesmo. A crise é a melhor benção que pode acontecer às pessoas e aos países, porque a crise traz progressos. A criatividade nasce da angústia, como o dia nasce da noite escura. É na crise onde nasce a inventividade, as descobertas e as grandes estratégias. Quem supera a crise, se supera a si mesmo sem ficar superado. Sem crises não há desafios e a vida torna-se uma rotina, uma lenta agonia”.

O Evangelho de hoje nos convida a não permanecer na casca da vida. Jesus nunca fica na superfície das coisas; sempre vai às raízes. É mais fácil nadar à superfície da água que mergulhar nas profundidades.
Transitamos na casca da vida e esquecemos a verdade da vida; dá medo nos perguntar por aquilo que é essencial; preferimos, muitas vezes, permanecer no superficial, no acidental.
Quando resistimos encontrar com o essencial, afastamo-nos do nosso próprio ser original; quando fugimos do essencial vivemos no vazio. Porque, encontrar-nos com o essencial é deparar-nos com nossa verdade. E isso é doloroso. Custa-nos olhar no espelho de nossa verdade. E se temos medo da própria interioridade, ficamos à mercê dos ventos, tempestades e terremotos. Tudo parece sem solo, nada confere firmeza.

Os tempos difíceis e de crises não devem ser tempos de lamentos ou de desânimo. Não é a hora da resignação, da passividade ou da fuga. A ideia de Jesus é outra: em tempos de crise “tereis ocasião de testemunhar a vossa fé”. É então, precisamente, quando nos é oferecida a melhor ocasião de dar testemunho de nossa adesão a Ele e a seu projeto.
Pertence à crise o aspecto dramático e a sensação da perda dos pontos de orientação. Por isso se impõe a coragem de saber esperar o decantamento da água turva (“em tempo de crise não se toma decisão”).
O tempo de crise revela-se também como o momento para cultivar um estilo de vida cristã, paciente e tenaz, que nos ajude a responder às novas situações e desafios sem perder a paz nem a lucidez.
 É tempo de discernimento que possibilita uma nova forma de vida.

Jesus, ao falar da destruição do Templo de Jerusalém não estava interessado na destruição dos edifícios, e sim, na destruição da vaidade e do orgulho humano; não vislumbrou a ruina dos muros e das pedras, e sim a ruína da vanglória. Sua presença rompe muralhas, afasta as pedras que impediam a manifestação da Vida.
Em Jesus ocorre algo totalmente novo. Ele traz uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos esquemas; o Evangelho é uma novidade que rompe velhas muralhas.
Dizer: “não ficará pedra sobre pedra” é o mesmo que dizer: “não ficará orgulho sobre orgulho, opressão sobre opressão, injustiça sobre injustiça…” Há muitas pessoas encerradas em seus próprios muros, fechadas em si mesmas, em seus interesses, vivendo um universo de egoísmo e exclusão. Vivem separadas dos outros e, quando encontram pessoas semelhantes, criam verdadeiras muralhas ao seu redor.
Cobrimo-nos de pedras, rodeamos nosso coração de muros,  construímos  muralhas que nos afastam dos outros e de Deus. É isso que somos convidados a fazer: destruir o templo de Jerusalém da solidão, fechamento, angústia, alienação, indiferença, rancor, medo e insegurança… Precisam desaparecer os templos abusivos onde adoramos o nosso “eu” e idolatramos a riqueza, o poder, o prestígio… É preciso derrubar as muralhas do preconceito, das idéias fixas, dos modos fechados de viver..., que impedem o fluir da vida. A Vida que habi-ta em cada um de nós. Há uma força interior que quer romper a casca e transbordar numa explosão vital multipli-cadora. É sobre as cinzas de nossas míseras ambições que o Reino de Deus plantará suas raízes.

Texto bíblicoLucas 21,5-19

Na oração: Para Jesus, a verdadeira beleza não está nas pedras do templo, mas na nossa interioridade, “casa de Deus e espaço de oração”. É o único lugar que permanece tranquilo e sólido diante das sacudidas existenciais provocadas pelas crises.

- Como você reage diante de suas crises: na fé, no sentido da vida, nos relacionamentos...

sábado, 5 de novembro de 2016

Santidade: Presença Misericordiosa

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho das Bem-aventuranças, indicado para a festa de Todos os Santos e Santas.

“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mateus 5,7)

A liturgia deste domingo nos motiva a fazer memória dos Santos e Santas, aquelas pessoas que, conhecidas ou anônimas, são presenças inspiradoras para nós que buscamos viver o seguimento de Jesus Cristo com mais autenticidade. Ao mesmo tempo, esta festa vem nos recordar a vocação à qual todos somos chamados: vocação à santidade. E santidade significa, na sua essência, ser presença misericordiosa.
Para Jesus, a Santidade é fundamentalmente a atitude e o modo de agir que deixa fluir os mesmos sentimentos e a mesma ação de Deus Pai: “Sejam misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
O chamado a prolongar o proceder misericordioso de Deus (sua Santidade), sempre tem um “mais” de amor, de paz, de mansidão, de justiça, de consolação..., recebido e vivido na relação com os outros, dentro do acontecer cotidiano e imprevisível da vida.

Portanto, é nas bem-aventuranças que encontramos um “modo de proceder” que nos faz crescer na direção da Santidade de Deus. É na vivência das bem-aventuranças que deixamos transparecer o que há de mais divino em nós; ao mesmo tempo, elas fazem emergir o que há de mais humano em nossas vidas.
A plenitude do humano só se alcança no divino, que já está presente em nós. Ser santo(a) é aspirar ser mais humano a cada dia, destravando e expandindo o amor que Deus derramou em nosso interior.
Quando acreditamos que para ser santo(a) temos de anular os sentidos, reprimir os sentimentos, submeter a vontade, centrar a vida nas renúncias e sacrifícios… nós estaremos nos desumanizando.
Quando colocamos a santidade no extraordinário, estamos nos afastando da referência evangélica. Se cremos que santo é aquele que faz o que ninguém é capaz de fazer, ou deixa de fazer aquilo que todos fazem, já caímos na armadilha do ideal de perfeição. E a perfeição não justifica e nem salva o ser humano. Não fomos chamados para sermos “perfeitos” mas para sermos “santos”; e a santidade é vivida em meio às fragilidades e limitações da vida cotidiana, inspirando-se sempre na santidade de Deus.
É na medida que nos fazemos mais humanos que mais nos santificamos. Ser santo(a) é ser humano(a) por excelência.

As bem-aventuranças des-velam o verdadeiro rosto do(a) santo(a). Quem é ditoso(a)? Quem é bem aventurado(a)? Quem é feliz? Dizer que são felizes os pobres, os que choram, os mansos, os misericordiosos, os que tem fome e sede de justiça, os perseguidos... é um contrassenso para o nosso contexto social, onde ditoso é aquele que mais acumula bens, que tem mais poder, mais prestígio..., sem se preocupar com a situação dos outros.
Só conhecendo a intenção de Jesus é que poderemos descobrir o sentido das bem-aventuranças. Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta do verdadeiro sentido da santidade.
Não bastam os meros sentimentos interiores, mas é preciso atitudes práticas que nos fazem sair de nós mesmos e nos movem ativamente ao encontro do outro.
Poderíamos dizer que as Bem-aventuranças são a quinta-essência do seguimento de Jesus.

Jesus, ao subir o monte das bem-aventuranças, promulga seu programa de “felicidade e ventura”.
Ele compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para nos aproximar de Deus, e para que cada um se realize como ser humano que é, não é estabelecer proibições, mas fazer propostas que mais e melhor se harmonizem com nossa condição humana, com aquilo que mais desejamos.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível.
Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de vida que Jesus nos confiou é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
As bem-aventuranças não são leis para simplesmente evitar o mal, mas o potencial humano que, quando ativado, espalha criativamente, por todos os lugares, a Bondade e a Beleza divinas.  Expressam, de modo conciso e explícito, o coração mesmo de Jesus e seu desejo ardente de contagiar a todos os que se encontravam com Ele. A felicidade proclamada era já uma realidade presente na Sua pessoa e na Sua missão.
Jesus nos convida a viver uma felicidade que já está em marcha. A vida é movimento e as bem-aventuranças possibilitam a passagem de uma vida suportada para uma vida plenamente assumida.
Nelas, Jesus nos desperta para sairmos de nossa paralisia e fixação, colocando-nos em marcha através de nossa fome e sede de justiça, através dos lutos que temos de superar e das oposições que temos de enfrentar, através da mansidão, da busca da paz…

O núcleo do ensinamento de Jesus está na quarta e quinta bem-aventuranças. A atitude central do discípulo do Reino é a misericórdia e a fome de justiça; uma fome de justiça que brota da misericórdia, e uma misericórdia que se expande não no mero assistencialismo, mas na fome e sede de justiça. Convertidas em princípio de felicidade, a misericórdia e a fome de justiça são o dinamismo e o motor de toda verdadeira humanização; esta é a nota fundante do Evangelho, o princípio de todo amor cristão, entendido de forma universal, como amor que cria, ajuda, pacifica, eleva..., enfim, abre um horizonte de sentido.
As demais bem-aventuranças são como círculos concêntricos que nascem em torno à atitude fundamental da misericórdia e da fome de justiça.
A terceira e a sexta bem-aventuranças: de um lado uma pessoa aflita, condoída, sofredora, com um  pesar pela situação do mundo, pela dor das vítimas; ou seja, a fome e sede de justiça e a misericórdia lhe deixam um certo entristecimento, compatível com muitas alegrias. De outro lado, essa dor faz com que, aquele que reage com misericórdia e fome e sede de justiça, tenha o coração limpo: a fome de justiça vivida com esse tipo de dor limpa o coração. E os corações limpos encontram a Deus.
A segunda e a sétima bem-aventuranças: aqueles que tem misericórdia e fome de justiça são mansos. A mera indignação pode torná-los violentos, mas a misericórdia os faz mansos, não violentos. E também, precisamente por essa mansidão, serão atores de paz, serão pacificadores.
E chegamos ao último círculo desta atitude central: quê acontece com aqueles que adotam esta atitude? Tornam-se “pobres com espírito”. A fome de justiça e a misericórdia aproxima-os dos pobres, despoja-os de muitas coisas... Esses são os pobres pelo Espírito. Eles tem o coração desprendido; por isso se tornam pobres e, em paralelismo com isso, são perseguidos por causa da justiça.

Texto bíblicoMateus 5,1-12

Na oração:  Marcado pelo espírito das Bem-aventuranças, movido por um olhar novo e um coração ardente, entre em comunhão com a realidade tal como ela é; sinta o mundo como “sacramento de Deus” e seja capaz de descobrir e apontar os sinais de esperança ali presentes; revele uma presença afetiva, marcada pela ternura, compaixão e por isso geradora de misericórdia; presença comprometida solidariamente com o Projeto de Jesus, na vivência da mansidão e na busca a paz...

- Reze as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-o viver a dinâmica das bem-aventuranças.


quarta-feira, 2 de novembro de 2016

“...E as vidas ficam diferentes”

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do Dia de Finados. O texto consiste em uma reflexão para ajudar a fazer memória daqueles (as) que já vivem a "páscoa definitiva" e que estão "encantados" no nosso coração e no coração de Deus.


“Esta é a vontade d’Aquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (João 6,39)

Ao celebrar o “Dia de Finados”, todas as culturas e religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se pode dizer, ou o que só pode ser dito com muito recato: que a morte é passagem, travessia, nascimento; que nela entramos no processo definitivo de libertação, de transformação, de acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à Santidade de Deus...
Toda expressão de vida flui para a morte. E o ser humano é o único animal que sabe que vai morrer.  No entanto, inventa toda sorte de artifícios para não assumir este destino que lhe é insuportável. Mesmo estando frente à morte dos outros, pensa ainda poder escapar desta decisiva hora.
Esta é a realidade dura de aceitar nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limi-tes, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte são expulsas da experiência humana. A morte é distante e virtual: procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Quando ela está perto, nós nos afastamos dela, ou então, ela é afastada para locais específicos.

No entanto, a vida marcada pelo medo da morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação cristã de ser filhos(as) do dia e da luz.
O medo da morte impede viver adequadamente o presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a escravizar-nos e angustiar-nos a ponto de impedir-nos viver a vida com sentido, qualidade e prazer. Ela nos golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana.
A negação da morte sempre cobra um preço – nossa vida interior se trava, nossa visão se encolhe, nossa razão se esconde, nossos sonhos se atrofiam...  No final, o auto-engano toma conta de nós.
Todos morremos, mas há mortes e mortes. Na cultura da “pós-modernidade líquida” a morte se apresenta como termo, ruptura e aniquilação. Somente os que não viveram seriamente, os que esbanjaram sua vida em caprichos e superficialidades, os que semearam dor e morte ao seu redor, os que asfixiaram a vida e não se importaram com os outros, tem medo de morrer.
Os que aceitaram sua vida e se atreveram a vivê-la seriamente, os que a viveram como dom que se entrega, aceitam sua morte e a esperam de modo sereno e livre, como o descanso devido depois de uma jornada trabalhosa e fecunda. Assim como uma missão cumprida devidamente dá alegria ao sonho, uma vida bem vivida dá alegria à morte. Porque a vida valeu a pena, também vale a pena morrer.

A experiência cristã nos revela que, como criaturas, somos mortais e dotados de liberdade; é por isso que nós nos interrogamos sobre o sentido da vida; somos capazes de viver a vida como um projeto expansivo e inspirador e que podemos transformar a morte no último e supremo ato de nosso viver.
E a morte só pode ter um sentido e significado se a vida também os tiver; quando alguém sabe “para quê e para quem vive”, realizando sua original missão, pode morrer em paz. Aqueles que vivem intensamente enfrentam com grande serenidade seu envelhecimento e a proximidade da morte, vendo nela mais uma etapa no processo normal de seu amadurecimento e de sua realização.
Aquele (a) que é conscientes de ter vivido por alguma causa, de ter levado uma vida plena, pode dar sentido e significado espontâneos ao último ato de sua existência, a morte. É o modo como alguém vive que qualifica a morte. Há mortes que, para além da inevitável dor que causam aos familiares e amigos, provocam paz, agradecimento, vontade de viver seriamente, de se levantar da superficialidade e da mediocridade.
Para a fé cristã, a morte é travessia para a comunhão plena. Último passo. Por isso, não pode ser escondida; antes, preparada. A fé des-vela a morte como momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas. Assim ela nos dá maior responsabilidade diante da nossa própria vida.

Diante da memória dos entes queridos que já fizeram a “travessia pascal”, a morte se transforma em “boa notícia”, pois eles (elas) se atreveram a viver como Jesus viveu. Viveram para dar vida e morreram para defendê-la. Viveram a vida como entrega e sua morte foi uma consequência lógica de seu modo de viver. Levaram a existência até os limites de suas possibilidades e fizeram dela uma semente permanente de vida. A lembrança da vida e da morte dessas pessoas continua semeando vontade de viver com autenticidade. Elas derrotaram a morte.
De fato, o modo de viver de Jesus recebeu o sim definitivo de Deus e nos mostra que a vida entregue para dar vida é o caminho para derrotar a morte e continuar vivendo. No acontecimento infinitamente doloroso da morte de Jesus se revela e se promete o sentido último do viver e do morrer humano.
“Re-cordar” (visitar de novo com o coração) aqueles (as) que estão no coração de Deus é abrir-se para a vida, não somente para aquela vida plena do mundo futuro, mas também para uma mais profunda qualidade desta vida presente.
Nesse sentido, afirmar a ressurreição não é consolo ilusório, nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada, de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, de viver dando morte à morte, curando feridas, levantando corações, semeando esperanças...
A ressurreição nos faz compreender que a travessia por este mundo não consiste em outra coisa senão no tempo da gestação concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, possamos aprender a viver de amor e contemplar a obra d’Aquele que é Fonte e Destino final da vida.

A vida e a morte não são, portanto, inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs inseparáveis.
Morre-se ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer.
A vida é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de toda a vida. As decisões fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós rondamos a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.
A experiência cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Viver sem morrer é viver menos; tira a seriedade da vida (L. Boff).
Só assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se.

Por isso, celebrar “Finados” nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ao mesmo tempo, aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente.
Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior para com a vida, saboreando a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”

Texto bíblicoJoão 6,37-40


Na oração: Re-visitar e entrar em comunhão com aquelas pessoas que “morreram de tanto viver”; “encantadas” no coração de Deus elas continuam sendo inspiração e referência para poder assumir a vida com mais paixão.