quarta-feira, 28 de junho de 2023

Como integrar “Pedro e Paulo” em nossas vidas?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos (Ano A - 2023).

“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)

Neste domingo, a liturgia nos convida a “fazer memória” de S. Pedro e S. Paulo, dois personagens instigantes, inspiradores e motivadores para todos nós cristãos, seguidores(as) d’Aquele que continuamente nos desafia com sua pergunta: “E vós, quem dizeis eu sou?”

Não se trata de dar uma resposta teológica, mas de reforçar nossa adesão e identificação à pessoa de Jesus Cristo. Por isso, cada um responde de maneira diferente, porque não há um seguimento igual para todos.

Foi assim que, Pedro e Paulo, com suas personalidades tão distintas, deixaram-se impactar pela pergunta de Jesus e souberam responder com a vida; por isso, eles são referências para nós.

Há perguntas inofensivas, fáceis de responder e que não nos comprometem. O problema está quando nos fazem perguntas nas quais nos sentimos implicados.

Há perguntas que parecem ser de pesquisas; e há perguntas que nos des-velam por dentro. Há perguntas secundárias sobre as quais podemos dizer qualquer coisa. E há perguntas essenciais que nos movem a falar de nós mesmos. E essas perguntas doem porque são perguntas que desnudam o fundo de nosso coração. São perguntas que nos implicam naquilo que somos realmente.

O perguntar é ousado, instigante; perguntar contém desafio, provocação; leva dose de irreverência.

“Perguntar é mergulhar no abismo” (Exupèry). As perguntas têm uma força que não encontramos nas respostas. Enquanto perguntamos por alguém, palpita em nós um impulso, um interesse que não se apaga enquanto não sacia nossa curiosidade.

A pergunta é movimento; é a pergunta que faz emergir a novidade, pois ela ativa a busca por uma resposta criativa. Mais ainda, perguntar põe em crise certas convicções, ideias fechadas, modos arcaicos de viver...e nos mantém em busca permanente.

É neste nível que surge a pergunta de Jesus aos discípulos, na região de Cesareia de Filipe.

Ele não pergunta aos seus discípulos sobre o que pensam a respeito do Sermão da Montanha ou sobre sua atuação curativa juntos aos doentes da Galileia. Para seguir Jesus, o decisivo é a adesão à sua Pessoa. Por isso quer saber o que eles pensam e sentem, depois de um tempo de convivência com Ele.

Jesus propõe a pergunta fundamental, “e vós, quem dizeis que eu sou?”; uma pergunta exigindo que eles se examinem a sério, que tomem consciência do que pretendem, que explicitem as reais motivações que os levam a segui-lo. Responder à pergunta “Quem sou eu para vocês?” é fazê-los comprometer com um novo estilo de vida, é assumir o novo caminho com Ele, é arriscar-se numa aventura.

A pergunta é desafiadora, e não simples curiosidade e inquietação, e se dirige a todos. Cada um tem de dar sua resposta. Ela exige uma tomada de posição, um ato de fé.

Pedro e Paulo responderam com suas vidas a pergunta feita por Jesus; por isso, eles não são somente duas colunas que sustentam a grande comunidade cristã; eles representam as duas dimensões essenciais para o dinamismo da Igreja. A liturgia intuiu que é preciso integrar as identidades destes dois personagens. Não se pode privilegiar um em detrimento do outro.

Nos Evangelhos, Pedro é o pescador que, impactado pela presença e pelo convite de Jesus, vai entrando, aos poucos, em sintonia com Ele. Um encontro que vai crescendo em adesão à proposta do Reino; um caminho de seguimento que tem seus momentos de obscuridade e de crise, sobretudo ao ver o fracasso do Mestre condenado pelas autoridades religiosas e políticas.

Pedro é o protótipo do cristão que vai se convertendo, abrindo-se à presença desconcertante de Deus na conduta histórica de Jesus. Em Pentecostes, Pedro fala em nome dos primeiros discípulos, cuja fé vem a ser normativa para todas as gerações que se sucedem na história da igreja.  Ele confessa o artigo central e original da fé cristã: “Jesus Cristo é o Filho de Deus vivo”. E se a Igreja se mantém firme nessa confissão, nada nem ninguém a destruirá.

Entre os discípulos de Jesus, Pedro foi sem dúvida o mais atirado, o mais impulsivo, com o perigo que isso implica. Era o líder do grupo, o primeiro a falar em qualquer circunstância, sem medo de repreender Jesus quando este anuncia sua paixão, sem medo de levar uma reprimenda quando Jesus quer lavar os pés ou quando anuncia que todos o trairão. O fato de ser tão lançado o situa também no lugar mais perigoso, o da negação de Jesus. Mas, ele mesmo termina confessando depois da ressurreição: “Tu sabes tudo, tu sabes que te amo”.  Não é novidade que Jesus o visse como o líder natural do grupo depois de sua morte e ressurreição.

Paulo, por sua vez, é o homem universal. Alcançado e convertido pela presença do Ressuscitado, ele abriu a Igreja ao mundo grego e romano, superando os moldes da religião judaica. Com sua itinerância, rompeu as fronteiras geográficas, culturais e religiosas, pois, para ele, o Evangelho de Jesus é anúncio de salvação para todos os povos. O que muitos não conhecem é a revelação que Deus lhe fez e que ele tanto insiste em suas cartas: que a boa notícia de Jesus não era só para os judeus, mas também para toda a humanidade.

A expansão da Igreja primitiva é humanamente inconcebível sem a figura de Paulo. Percorreu milhares de quilômetros e se expôs a todo tipo de perigos para levar o anúncio de Jesus “até os confins da terra”.

Em chave de interioridade podemos afirmar que Pedro e Paulo são também dimensões de nosso ser. “Pedro” representa a solidez interior, a certeza, a convicção, os valores... Viver a “dimensão Pedro” é cuidar dos fundamentos de nossa vida, a rocha sobre a qual construímos a maneira de viver o seguimento de Jesus.

Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar no seguimento superando as dificuldades e os inevitáveis golpes na luta pela vida. É no “eu mais profundo”  que as forças vitais se acham disponíveis para nos ajudar a crescer dia-a-dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, do melhor que há em nós, onde se encontram os dinamismos do nosso crescimento, de onde partem as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.

“Paulo”, por sua vez, nos fala da força expansiva, da saída de nós mesmos, de abertura às realidades diferentes. Das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; a interioridade desvelada ativa a solidariedade e o compromisso como acesso à realidade para transformá-la, desencadeando um movimento de profundas mudanças.

Fundamentados sobre a rocha interior, nossa vida se expande, nos tornamos mais abertos e sensíveis, capazes de escutar os acontecimentos, alimentar uma atenção contemplativa frente à realidade que nos cerca, respondendo a seus apelos e tomando decisões maduras e evangélicas.

Viver a “dimensão Paulo” é abrir-nos à desafiante realidade, entrando no fluxo da “Encarnação do Verbo no mundo” e sendo presenças portadoras da Boa-Notícia do Evangelho.

Como harmonizar “Pedro e Paulo” em nossa vida, para que nosso seguimento de Jesus tenha a marca da criatividade?

Inspirados por eles, nossa vida cristã se centra na identificação com Jesus; afinal, não somos seguidores de uma religião, doutrina, rito..., mas de uma pessoa. E essa identificação se expressa como resposta que damos à pergunta feita na região de Cesareia de Felipe: “e vós, quem dizeis que eu sou?”.

Texto bíblico: Mt 16,13-20

Na oração:

Busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir a rocha de seu ser, o fundamento original e consistente de sua personalidade.

- Quais são os valores perenes, as visões ousadas, as experiências fundantes, as opções duradouras... que constituem a rocha inabalável, sobre a qual construir sua vida? Como ser “presença paulina” no seu contexto social, religioso, cultural...?

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Medo ou confiança: quem determina nossa vida?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 12º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Não tenhais medo!” (Mt 10,31)

Uma das grandes insistências de Jesus no Evangelho é, sem dúvida, esta: “não tenhais medo!”

Jesus sempre se revelou um profundo conhecedor da condição humana; percebeu claramente que muitas pessoas eram marcadas por tremendos medos, impedindo-as viver com sentido e plenitude. Ele tinha plena consciência que os maiores medos eram alimentados pela religião, centrada nas leis, nos ritos, nas doutrinas... gerando sentimentos de culpa e angústia diante do futuro. Pior ainda, eram os controladores da religião que manipulavam os medos, tendo o controle sobre as pessoas e impondo a imagem de um Deus que ameaça e castiga. É o chamado “poder de consciência” exercido pelas autoridades religiosas que tem feito e continua fazendo tantos “estragos” nas consciências dos indivíduos.

Diante desta dura realidade, Jesus sempre procurou despertar a esperança nas pessoas, alimentando um clima de confiança no Pai e da busca de vida plena: “Vim para que todos tenham vida e vida em plenitude”.

Medo e confiança são duas emoções fortes presentes no desenvolvimento do ser humano; dependendo de como alimentamos uma ou outra, assim será nossa vida: carregada de medo (atrofia, paralisia existencial...) ou de confiança (criatividade, mobilização dos melhores recursos internos, busca, inspiração...)

O medo é o oposto da confiança. Os neurocientíficos confirmam que ambas as emoções usam as mesmas redes neuronais. Isso quer dizer que, alimentar o medo, consciente ou inconscientemente, significa solapar a possibilidade de confiar.

O medo nos incapacita para a confiança, que é a atitude humana sobre a qual se assenta o dom da fé; o medo seca as fontes da esperança, impedindo-nos viver com prazer e alegria.

Sabemos que o medo é uma emoção importante que nos permite detectar as ameaças e proteger-nos diante delas. Faz parte, portanto, de nosso equipamento biológico. Seu objetivo primeiro é defender-nos, seja fugindo, seja ativando energias para enfrentar a ameaça.

O problema surge quando a ameaça não é real, mas fabricada e alimentada por nossa mente, como consequência de medos “herdados” através de gerações, de experiências infantis mais ou menos traumáticas ou da ignorância de quem realmente somos.

O medo é um câncer que ameaça à fé, ao amor e à esperança de pessoas e instituições; ele corrói as fibras humanas, asfixia talentos, esvazia a vida e mata a criatividade.

O medo encolhe o ser humano, inibe a decisão e bloqueia os movimentos em direção ao “mais”.

A intensidade do medo pode anular a capacidade de reação das pessoas ou das instituições; ele impede o discernimento e a busca da solução mais inteligente para os problemas; longe de resolvê-los, pode agravá-los a médio e longo prazo.

O medo nos acovarda e nos constrange, nos isola e nos obriga a viver na defensiva, em permanente estado de alerta. O medo é paralisante; o medo nos impede ser nós mesmos; o medo nos acovarda diante daqueles que não pensam como nós; o medo impede afirmar nossa identidade de seguidores(as) de Jesus.

O medo nos mimetiza como alguns insetos que, diante do perigo, mudam de cor para não serem vistos e reconhecidos. O medo pode minar nossas esperanças, esvaziar a capacidade de amar, atrofiar a força de nossas ideias... Enfim, o medo obscurece o sentido e a direção da vida, tira o brilho tão próprio do amor, nos bloqueia e nos enterra na acomodação mesquinha.

O medo não só é explorado por empresas que se dedicam a todo tipo de seguros, mas também pelas religiões, que exploram seus seguidores vendendo-lhes o “paraíso”, depois de ter-lhes infundido um medo irracional ao sagrado. Somos bombardeados constantemente por uma “pastoral do medo”, que continua tendo uma influência nefasta.

Geralmente, os controladores das religiões tentam manipular a “divindade” para colocá-la a serviço de seus interesses egoístas. O medo induzido é o instrumento mais eficaz para dominar os outros. Historicamente, as autoridades religiosas utilizaram sempre desse expediente para conseguir a docilidade de seus súditos.

Evangelicamente falando, o medo é sinal de que ainda não entramos na dinâmica do Reino, no caminho de Jesus; o medo nos faz refugiar numa fé alienante, que não arrisca nada, que não se compromete com nada, que não vai mais além de nossa auto-realização narcisista, fechados numa prática devocional estéril.

Os medos não costumam apresentar-se de rosto descoberto; mascaram-se, porque são sintomas de debilidade; tornam-se vergonhosos para nós. Eles se disfarçam para se tornaram mais aceitáveis.

Existem muitos medos escondidos por trás das atitudes tirânicas de rigidez, de legalismo, de intransigência ou de intolerância. Recorremos a eles para ocultar-nos e defender-nos contra o novo e o diferente.

O Papa Francisco afirma que por detrás das atitudes intolerantes está o frio hálito do medo.

O medo empurra na direção dos individualismos, dos fanatismos e das soluções que contemplam simplesmente os próprios interesses.

O medo enche de sombras o horizonte, tornando impossível uma decisão clarividente e ordenada. O medo cega, agita a imaginação e precipita juízos e decisões, criando impedimentos sérios para a vivência da fraternidade e para a coragem de compreender a vida como doação de si para o bem dos outros.

Quem é capaz de sentir compaixão, bondade, mansidão..., não se deixa afeta pelo medo e nunca será fanático, nem intolerante, nem intransigente...

Frente a tais medos-fantasmas, criados e alimentados por uma mente temerosa e ignorante, a mensagem das pessoas sábias aparece marcada pela confiança. É o que percebemos em Jesus de Nazaré, quem, de maneira constante, insiste: “Não tenhais medo”! Confiai!

A confiança brota da compreensão, da certeza de que aquilo que somos se encontra sempre a salvo. Nas palavras do próprio Jesus: “podem matar o corpo, mas não podem matar a alma”.

A confiança não surge de um voluntarismo a toda prova, mas da experiência profunda de quem é Deus para nós. Aceitar e acolher nossas limitações e descobrir nossas verdadeiras possibilidades, é o único caminho para chegar à total confiança.

Confiar em Deus é confiar em nosso próprio ser, na vida, naquilo que somos de verdade. Não se trata de confiar em um ser que está fora de nós e que pode nos dar, a partir de fora, aquilo que nós desejamos. Trata-se de descobrir que Deus é o fundamento de nosso próprio ser e que podemos estar tão seguros de nós mesmos como Deus está seguro de si.

Por maior que seja o motivo para temer, sempre será maior o motivo para confiar. Confiar em Deus é acolher nossa realidade, rica e pobre, iluminada pela Sua presença. Confiar em Deus não é esperar sua intervenção a partir de fora para que retifique a criação. É entrar na dinâmica da criação e não a violentar.

É deixar-nos conduzir pela energia da vida que sabe perfeitamente onde tem de nos levar. É deixar que a vida flua pelos canais que nosso Criador nos proporcionou: presença solidária, compaixão, amor, alegria, abertura ao novo, espírito de busca...

Texto bíblico: Mt 10,26-33

Na oração:

Redenção é libertação do medo. É preciso olhar para o alto, encher os pulmões, erguer a cabeça, abrir o sorriso, e dar boas-vindas à vida; é ativar a força do destemor e a alegria da coragem.

É este o significado da redenção: a capacidade de ter confiança em Deus e, como consequência, nas pessoas e em toda a criação, para trabalhar em liberdade e viver com alegria.

- No dia a dia, você alimenta mais o medo ou a confiança?

terça-feira, 13 de junho de 2023

“Chamado-seguimento” com a marca da compaixão

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 11º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas...” (Mt 9,36)

 

O atributo primeiro do Deus de Jesus não é o poder, a majestade, o senhorio..., mas a compaixão. Ele não vem para impor-se e dominar o ser humano. Aproxima-se para tornar nossa vida mais digna e ditosa.

Esta é a experiência que Jesus comunica em suas parábolas mais comovedoras e a que inspira toda sua trajetória a serviço do Reino de Deus. De fato, na sua vida pública, Jesus deixa transparecer o rosto do Pai compassivo na sua relação com a humanidade, sobretudo com os sofredores, vítimas de violência e exclusão. A imagem do Deus revelado por Ele não está acima ou à margem do sofrimento humano.

Jesus é a primeira testemunha da compaixão do Pai; Ele foi o primeiro a viver totalmente a partir deste sentimento tão divino e tão humano, desafiando claramente o sistema de santidade e pureza que predominava naquela sociedade. Ele quer que, a partir de então, os enfermos, os famintos, os excluídos..., experimentem em sua própria vida a compaixão de Deus.

A atuação de Jesus era diferente das autoridades religiosas, pois Ele via tudo a partir da compaixão de Deus. O que lhe preocupava, antes de mais nada, era o sofrimento que destruía, humilhava e marginalizava tantas pessoas. Jesus não caminhava pela Galileia buscando pecadores para convertê-los de seus pecados, mas aproximava-se dos enfermos, famintos e endemoninhados para libertá-los de seu sofrimento.

É precisamente esta compaixão de Deus que faz Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação das pessoas, que o atrai para as vítimas inocentes: os maltratados pela vida ou pelas injustiças dos poderosos.

Sua paixão pelo Deus do Reino se traduz em compaixão pelo ser humano. O Deus do templo, o Deus da lei e da ordem, do culto e do sábado, não poderia alimentar sua entrega a todos os sofredores.

Por isso, a compaixão, é a opção e atitude fundamental de Jesus diante dos sofredores, famintos e excluídos.

Diante deles, Ele não permanece impassível, mas sente remover suas entranhas.

A palavra hebraica que se traduz por compaixão é “rahamim”, derivada de “rahem”, ventre, entranhas.

Na antropologia bíblica, ventre é o lugar da compaixão e é aplicado a Deus, pois só Ele é capaz de atuar compassivamente a partir de suas entranhas. A tradição bíblica do Êxodo apresenta Javé movido pela compaixão diante dos sofrimentos do povo hebreu; Ele escuta os gritos que chegam ao céu e compromete-se com a libertação da escravidão do Egito (Ex 3,7-12).

A compaixão também está na base da legislação hebraica que defende os direitos dos órfãos, das viúvas e dos estrangeiros, os mais vulneráveis entre o povo. É o centro da mensagem e a prática dos profetas de Israel, para quem a religião verdadeira não consiste em oferecer sacrifícios, mas em fazer o bem, estabelecer o direito e praticar a justiça.

A compaixão expressa, portanto, uma reação visceral, o estremecimento mais íntimo e humana que uma pessoa pode experimentar. Nesse sentido, a compaixão é o motor da vida e da conduta do ser humano.

A partir de sua experiência radical da compaixão, Jesus introduz na história um princípio decisivo de ação: “Sede compassivos como vosso Pai é compassivo” (Lc 6,36). A compaixão é a força que pode mover a história para um futuro mais humano. A compaixão ativa e solidária é a grande lei da dinâmica do Reino, aquela que faz reagir diante do clamor daqueles que sofrem e mobiliza a todos para construir um mundo mais justo e fraterno. Esta é a grande herança que os cristãos precisam mantê-la sempre ativa. Afinal, eles são seguidores do Compassivo.

A compaixão é a virtude por excelência proclamada no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os compassivos...”. Felicidade e compaixão são inseparáveis. Uma pessoa é feliz partilhando e aliviando a dor das pessoas que sofrem. A falta de entranhas de misericórdia torna infelizes aqueles que não praticam tal virtude e aqueles que sofrem.

Por isso, pode-se dizer que se trata de um princípio ético universal, que transcende todas as culturas e religiões, de maneira que, precisamente por isso, está presente onde há humanidade.

A compaixão é comum a todos e é anterior a toda instituição religiosa. Ela está inscrita no mais profundo de todo ser humano, independentemente de sua opção religiosa.

Fomos criados à imagem e semelhança do Deus Compassivo e trazemos “tatuado” em nossas entranhas a marca da compaixão, que é continuamente ativada diante dos dramas da vida humana. Este sentimento, tão humano e tão divino, constitui a essência do nosso “eu” verdadeiro e revelador da nossa identidade mais original e profunda. No entanto, quando nos deixamos seduzir pelo “ego inflado”, a compaixão se atrofia, a sensibilidade se petrifica, os afetos se esvaziam... Consequências: agravamento da cultura do ódio, da intolerância, do preconceito e da indiferença frente à realidade marcada pela violência, miséria e exploração.

Compaixão bloqueada dá margem ao processo de desumanização.

O eu entrincheirado em seu “bunker” necessita passar por um processo de higiene e saúde, respirar novos ares, não viciados ou contaminados; precisa abrir suas portas e janelas ao outro, sair às ruas, fazer-se presente junto às situações desumanizadoras.

Viver fechado em si e para si termina por afogar-se nas águas poluídas do narcisismo. Só a compaixão vem a ser o melhor antídoto contra o egoísmo tão enraizado no ser humano. Impulsionado pelo sentimento da compaixão ele quebra as paredes de seu “bunker”, sai ao encontro do outro e se compromete com ele. Escreve E. Levinás: “a partir do momento em que o outro me olha, eu sou responsável por ele”.

No evangelho deste domingo, Mateus nos deixa claro que foi no contexto da compaixão de Jesus diante da multidão faminta e sem pastor que o “chamado e o envio” acontecem. O chamado de Jesus emerge no calor da compaixão; só este sentimento tão nobre dará inspiração e sentido ao seu seguimento.

Sem deixar-se guiar pela compaixão, o seguimento de Jesus “passa pelo outro lado” diante do sofrimento humano e se torna cúmplice dele. A alternativa é o seguimento como vivência do amor, da justiça e do cuidado, que faz sua a dor das vítimas; um seguimento carregado de com-paixão, que denuncia os geradores de vítimas e toma partido pelas pessoas, os coletivos e a natureza, sofredores que gritam aos céus.

Seguir Jesus sem compaixão é ser “burocrata” do Reino; é viver uma religião sem afeição pelo Mestre da Galileia. Sem compaixão não há identificação com o Compassivo; só quando inspirado pela compaixão é que o(a) seguidor(a) poderá anunciar a Boa Notícia do Reino, “curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos, expulsar os demônios”. Igualmente, só a compaixão desperta outro sentimento tão nobre, o da gratidão: “de graça recebestes, de graça deveis dar”.

Num mundo “sem-compaixão”, a primeira coisa que devemos fazer, como cristãos, é resgatar a compaixão de uma concepção sentimental e moralizante. Não podemos reduzi-la à assistência caritativa ou a um sentimento eventual. “Ser compassivo” é modo permanente de viver e proceder.

Inspirados(as) pela mensagem e pela atuação profética de Jesus a compaixão se expressa como um grito de indignação absoluta: o sofrimento dos inocentes deve ser levado a sério, não pode ser aceito como algo normal, pois é inaceitável para Deus.

O apelo de Jesus a sermos compassivos como o Pai implica uma maneira nova de nos relacionar com o sofrimento injusto que há no mundo. Para além de chamamentos morais e religiosos, Ele está pedindo que a compaixão, ativa e solidária, penetre mais e mais nos fundamentos da convivência humana, erradicando todo tipo de sofrimento e suas causas. Só assim, o Reinado do Pai se faz presente em nossa história.

Texto bíblico: Mt 9,36-10,8

Na oração:

A grande novidade e originalidade de Jesus (sua subversão) começou em sua maneira de olhar a realidade e de deixar-se afetar por ela. A “subversão” da vida começa pela subversão do olhar e vice-versa. O coração sente de acordo com o que os olhos veem, mas os olhos veem de acordo com o que sente o coração. A realidade subverte o olhar, e o olhar subverte a realidade. Olhos que não veem, coração que não sente. Mas os olhos não veem quando o coração não sente.

- Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em direção aos mais sofredores?

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Olhares que destravam vidas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 10º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Ao passar, Jesus viu um homem chamado Mateus,...” 

É curioso: nossa identidade também se revela no modo de olhar; somos o que olhamos; somos como olhamos. Alguns dizem: “Dize-me como olhas e te direi quem és”. Trata-se de uma linguagem universal, para além das palavras. Diariamente vivemos de olhares, imersos neles, amando ou condenando, acolhen-do ou rejeitando. Quem não experimentou alguma vez sentir-se especial diante do olhar do(a) outro(a)? Quem não provou o peso de um olhar julgador que, como um dardo venenoso, atravessou as entranhas?

O olhar diz muito mais do que pensamos. Há olhares que ocultam um poder imenso: maliciosos, sensuais, provocativos, inocentes... Há olhares intensos e penetrantes que conseguem despertar nosso lado mais selvagem e passional e que ultrapassam a barreira de nosso ser permanecendo gravadas em nossa mente. Há olhares que falam por si sós, sem necessidade de nenhuma palavra, que transmitem sentimentos, desejos e afetos. Igualmente há olhares que deixam transparecer uma personalidade venenosa, destrutiva e daninha e que, muitas vezes, nos fazem afastar dessas pessoas pelas más sensações que nos causam.

Não nos enganemos; os olhares não são neutros. Eles des-velam (tiram o veú) o mais profundo da pessoa.

A maneira com que olhamos uma pessoa, a forma com que respondemos a um olhar, muitas vezes vai determinar a diferença entre um encontro memorável e grandioso ou um encontro repulsivo e constrangedor

Corações petrificados e insensíveis se expressam nos olhares que matam, que fecham as portas e condenam àqueles que são diferente; há olhares que delatam, que invejam e que não suportam o bem alheio; olhares de morte, impessoais e indiferentes, superficiais e interesseiros; olhares embriagados de soberba, calculistas, gélidos. Olhares sem luz e sem Deus.

Mas também sabemos que há olhares que curam e reconfortam; olhares que são oásis e sombra acolhedora, que protegem e bendizem; olhares que são bálsamos que aliviam feridas, derramam consolo e compreensão. Olhares cheios de amor para com o outro, que tornam a vida mais fácil. Olhares tolerantes, que não levam em conta o mal, mas tudo suportam e tudo esperam. Olhares que transmitem o bem e que embelezam seus destinatários, fazendo-os melhores e extraindo o melhor deles.

A Revelação vem nos ensinar que Deus “olhou” para a humanidade, e seu olhar de amor foi tal que desceu até o mais profundo da condição humana. A Encarnação do Filho foi determinada a partir de um “olhar” que saiu do coração da Trindade, que pousou sobre o mundo e que voltou ao seu coração, estremecendo-a de compaixão e movendo-a à ação redentora.

Assim também nossa presença no mundo deve ter sua origem no olhar misericordioso e compassivo, amoroso e esperançoso...

Precisamos reaprender a olhar as pessoas nos olhos para despertar em nós a consciência da bondade humana, cujas raízes foram plantadas por Deus no coração de cada uma delas.

E quando somos capazes de olhar nos olhos, com simplicidade podemos encontrar no coração do outro uma imagem do nosso próprio coração.

Quem é a referência e o modelo na arte de olhar? O Mestre da Galiléia que, passando pelos lugares cotidianos, olhou a todos como ninguém nunca olhou, extraindo o melhor de cada pessoa em cada circunstância, ativando possibilidades inimagináveis, mobilizando todos os seus recursos vitais... Seu olhar  transformava as pessoas em maravilhosas obras de arte.

Durante sua vida, Jesus passou entre nós com um olhar profundo e que chegou a comover muitas e diferentes pessoas: os discípulos, convidando-os a segui-lo; os pecadores, oferecendo seu perdão; os enfermos, oferecendo cura; os excluídos, oferecendo sua acolhida...

Seu olhar nos inspira a olhar o mundo e as pessoas de maneira diferente; olhar que recupera e vibra frente à novidade, que capta a verdade, a beleza e o bem presente em tudo e em todos; olhar que recolhe das margens os olhares perdidos, distraídos ou derrotados de tantos irmãos caídos que necessitam, com urgência de um “olhar cristificado” que os salve. O que salva é o olhar.

O evangelho deste domingo nos situa diante do olhar arrebatador e transformador de Jesus.

O sujeito do primeiro verbo é Jesus: “viu um homem chamado Mateus”. Jesus estava em movimento e Mateus, pelo contrário, estava parado, passivo, “sentado junto à banca”, apegado à sua condição de cobrador de impostos, preso a uma profissão que o tornava desprezível aos olhos de todos.

Mas os olhos de Jesus souberam ver além das aparências: viram no publicano um discípulo, um seguidor.

Para esse olhar ninguém está sentenciado nem qualificado definitivamente, mas tem o futuro diante de si.

Pela primeira vez, Mateus sentiu-se olhado de outra maneira: alguém acreditou nele e o chamou, e por isso ele se transformou em alguém dinâmico que deixou para trás seu passado, assumiu o protagonismo de sua própria vida e se pôs a caminho atrás d’Aquele que foi capaz de olhá-lo assim.

No olhar de Jesus não há, nesse primeiro momento, nem exigência, nem correção, nem sequer chamado à conversão; tão somente um apelo para entrar em outro nível de relação com Ele.

Com seu olhar pro-vocativo Jesus arrancou Mateus de sua mesa (mesa que o distanciava dos outros, mesa da traição do seu povo e que o fazia colaborador do império romano, mesa que o fazia sentir-se inimigo do povo, mesa da exploração, da solidão, da acomodação, da fixação... mesa da morte).

Em casa de Mateus, Jesus funda uma outra mesa: mesa da comunhão, da partilha, da festa, mesa da fraternidade onde todos se sentem iguais... Mesa da vida.

Trata-se de uma mesa provocativa, questionadora, incômoda... que requer mudança de lugar, de mentalidade, de atitude... transformação interior. “Virar a mesa”, eis a questão!

Porém, a aventura de “troca de mesa” requer uma troca de “senhor”.

Para Mateus, a troca de mesa só foi possível a partir da troca de “senhor”: deixou a mesa da dependência ao imperador romano e abriu espaço interior para a presença de Jesus e dos outros. Ele correu o risco de assumir a mesa da liberdade e da comunhão.

Mateus não tem mais mesa fixa (deixa de ficar sentado e põe-se em movimento). Tal como Jesus, ele é chamado a transitar por outras mesas (a mesa dos encontros, da criatividade, do novo, do diferente...)

Todo autêntico seguimento começa por uma troca de olhares; o olhar d’Aquele que chama é mobilizador e move a dar o primeiro passo. E para isso é imprescindível pôr-se de pé, tomar consciência de si mesmo, da presença e da potencialidade da própria dignidade e identidade. O ouvido se abre, o olhar se aclara, a mente se expande, o coração compreende, o corpo se ergue e a vida se re-inicia. Vida que se abre em movimento, pronta para acolher e viver as surpresas.

Fazer caminho com Jesus exige abandonar a espera passiva, colocar-nos de pé e entrarmos em sintonia com a liberdade que nos move por dentro. Nada há mais revolucionário que levantar-nos e proclamar que o Reino está em meio a nós porque o trazemos dentro.

Texto bíblico: Mt 9,9-13

Na oração: Contemple o olhar de Jesus e se sinta como Mateus. Deixe-se olhar pelos olhos d’Aquele que o vê mais por dentro do que os outros ou você mesmo. Ele não se fixa em seus defeitos nem em suas limitações; não se preocupa com o que você é, mas vê todas as possibilidades escondidas que Deus mesmo pôs em você e que talvez você desconheça.

- Confie mais nos olhos d’Ele que nos seus; creia que Seu olhar e Seu chamado podem fazer de você um(a) discípulo(a).

- Peça-o que o ensine a olhar assim os outros: um olhar límpido, sem segundas intenções e livres de todo julgamento; um olhar capaz de vislumbrar o “melhor” que está oculto nas profundezas de cada um.

terça-feira, 6 de junho de 2023

CORPUS CHRISTI; “eu sou o pão descido do céu”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo - Corpus Christi (2023 - Ano A).

“Quem consome a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna...” (Jo 6,54)

Com a afirmação “eu sou o pão vivo que desceu do céu”, Jesus manifesta o sentido de sua Encarnação. Ele não usa como sinal o legado poderoso, os atributos régios, os resplendores, as armas, os tronos, as vestes nobres: usa como sinal o pão, ou seja, vida que se desfaz em favor dos outros. Vida expansiva para que outros vivam.

Jesus compreendeu-se a si mesmo no pão, ou seja, ser para os outros alimento e alegria. Grãos e espigas moídos para alimentar. Jesus é reconhecido no pão que “desce” e desaparece nos outros, dissolvendo-se no mais íntimo de cada um, despertando alento, dando calor, força e sentido a partir de dentro.

Jesus Cristo, ao fazer-se pão, acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu.

Em sua humanidade, Ele alimentou e saciou nossas carências mais profundas; ao mesmo tempo, ativou e despertou outras grandes “fomes”: comunhão, compaixão, solidariedade...

Assim, no gesto do partir e repartir o pão se condensou todo o caminho de Jesus: vida que se doou para aliviar todo “sofrimento humano” (curas), para proporcionar a “refeição partilhada” (ceias e multiplicação dos pães) e para ativar “novas relações humanas” (sermão da montanha).

Celebrar o “Corpus Christi” é atualizar estas três preocupações centrais da vida de Jesus. Aqui se conecta a essência de Sua vida na vida dos seus(suas) seguidores(as).

 “Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Jesus no interior de cada um de nós. Não podemos “subir” se não estivermos dispostos a “descer” com Ele ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.

Assim como na Encarnação o Verbo “desce” e se faz visível através das fendas e feridas da humanidade, Ele continua “descendo” e se fazendo “pão” nas profundezas de nosso ser, integrando e pacificando tudo.

“Assim novamente encarnado” (EE 109), nos diz S. Inácio. A Encarnação, portanto, não é um evento ou um ato isolado da história; a Encarnação é atitude eterna de Deus. Ele “é” Encarnação contínua, desde toda eternidade.

Esta é a verdade, a revelação emocionante, a grande novidade do evangelho, que recolhe o que há de mais profundo da mensagem e da vida de Jesus: para dar alimento é preciso fazer-se alimento.

Jesus não só ensina e dá o alimento, mas Ele mesmo “desce” e se converte em alimento. Esta é a sua novidade “teológica”, sua novidade humana, a verdade mais profunda da Eucaristia: compartilhando o pão de Jesus (em memória de sua Encarnação, de sua vida e de sua morte), seus discípulos descobrem que Jesus mesmo é alimento e que eles devem se fazer alimento uns para os outros.

Jesus, ao se “humanizar”, se faz “pão”, humanidade convertida em alimento para os outros. A Vida Eterna não se revela num gesto de pura interioridade, mas no encontro e comunhão de uns com outros... Quem crê nos demais, quem compartilha com eles a vida, tem a vida eterna, porque entra no fluxo do “Pão Eterno” que se manifestou na Encarnação.

Nesse contexto é preciso dizer que o verdadeiro alimento é a vida mesma do ser humano: Jesus se fez alimento para os outros, saciou a fome de justiça e amor. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. “Eu sou o pão da vida”. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega, desde sua Encarnação. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.

Porque Jesus é “pão descido do céu” e porque compartilhamos sua vida, também nós podemos e devemos “descer” e sermos comunhão de vida. Neste sentido, todos somos “pão no Pão”.

Cada ser humano é “pão vivo, descido do céu” para outro ser humano; cada homem, cada mulher é revelação de Deus, pão de vida eterna para os outros. Por viver neste nível, por entregar-se e compartilhar a vida neste plano, os homens e mulheres “não morrem”, tem vida eterna.

E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”.

Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido! “Tornar-nos pão” significa “descer” à nossa própria condição humana para expandi-la em atitudes de serviço, partilha, solidariedade...

Jesus, ao se encarnar, quis resgatar a vida humana fazendo-se gente, sentimento, fome, alimento..., na realidade humana. Seu caminho? A vida a partir da mesa, do pão e da festa da partilha.

Uma das chaves de compreensão da pessoa de Jesus é a relação d’Ele com a “mesa do pão”, pois Ele passou de mesa em mesa, até se deixar fazer pão na grande mesa da Ceia Pascal.

Em todos os encontros de Jesus com os excluídos do Reino, Ele sempre os incluiu em suas refeições.

Se para nós, a mesa já era bendita, sagrada..., depois da Encarnação e da Vida de Jesus, ela se tornou mais ainda um lugar de encontro no sacramento do pão partilhado. Desde então, cada vez que dela nos aproximamos, o “Verbo feito carne” continua sua ação salvífica, recriando cada vez mais a vida em expansão. De fato, depois do Verbo fazer-se “carne” e “pão”, a mesa eucarística tornou-se lugar de transformação, de evolução humana e cósmica, o lugar de comunhão por excelência com o Criador.

Na pregação de Jesus, e mais tarde na experiência das primeiras comunidades, deu-se um salto qualitativo: do pão se passou ao pão vivo; da água aos rios de água viva que emanam nas entranhas; do vinho ao sangue que é expressão da vida.

Jesus pediu “ir mais além” daquilo que os cinco sentidos podem captar, para abrir-nos ao mistério da vida partilhada e entregue. Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, produz frutos para o bem de todos. Essa presença mística de Cristo em nós, dinamizada pela Eucaristia, consagra irmãos solidários, cidadãos do mundo. Aqui está o fundamento do seguimento de Jesus.

Portanto, o primeiro sinal da Eucaristia não é o pão em si, mas o pão partido (preparado para ser comido). Durante séculos, chamou-se a eucaristia de “fração do pão”.

Não se trata do pão como coisa, mas do gesto de partir e repartir. Ao partir-se para deixar-se consumir, Jesus está fazendo presente a Deus, porque Deus é amor, dom infinito, entrega total a todos e sempre.

Assim devemos ser todos nós, seus seguidores. Se queremos ser cristãos teremos que nos deixar partir, repartir, triturar, desaparecer em benefícios dos outros. Uma comunhão sem este compromisso é uma farsa.

Mais taxativo ainda é o sinal do vinho. Quando Jesus diz “meu sangue é verdadeira bebida”, está dizendo: “isto é minha vida que está se derramando, consumindo, em benefício de todos”.

Isto é o que pretendia Jesus: fazer nossa Sua própria vida; ter que viver a mesma vida que Ele viveu.

Ele está nos dizendo que nossa vida só será cristã se se derrama, se se consome, em benefício dos outros. Na Eucaristia estamos confessando que ser cristão é “ser para os outros”.

Uma Eucaristia compatível com nossos interesses, com nosso desprezo pelos outros, com nossos preconceitos e rivalidades, com nossos complexos de superioridade, sejam pessoais ou grupais, não tem nada a ver com o que Jesus quis expressar no seu discurso eucarístico.

Celebrar a eucaristia é comprometer-nos a ser fermento de unidade, de harmonia, de amor, de paz.


Texto bíblico: Jo 6,51-58

Na oração:

Ser pão em Cristo: os ingredientes de minha “massa”:

Ao “amassar” a minha vida para querer ser pão... de que sou feito? A farinha é o que dá consistência e firmeza ao pão, brindando-o com diferentes formas e estruturas.

Minha farinha é aquilo sobre a qual me sustento. É essa voz, no mais íntimo de mim mesmo, que me confirma: “sou eu”. É tudo aquilo sobre a qual posso deter-me sabendo que se trata de terra firme onde colocar-me de pé e levantar-me. É minha palavra, aquela que me revela. É feita de meus valores, minhas crenças, minhas certezas...

A farinha é também aquilo que creio sobre mim mesmo, minhas firmezas, minhas convicções: é a imagem que tenho de mim, através de minhas circunstâncias ricas e frágeis, e que constitui minha verdadeira identidade.

- Rezar a “farinha” de minha existência, “terra da Encarnação do Verbo”, “pão” para alimento dos outros.


sábado, 3 de junho de 2023

“Se tu vês a caridade, vês a Trindade”

“Se tu vês a caridade, vês a Trindade” (Santo Agostinho)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Santíssima Trindade (2023 - Ano A).

“Deus amou tanto o mundo...” (Jo 3,16) 

Com a festa da Santíssima Trindade chegamos ao cume do tempo litúrgico pascal. A revelação nos diz que nosso Deus não é solidão, mas comunhão de Pessoas: Pai-Filho-Espírito Santo.

A Trindade não é um problema numérico (três em um), mas um mistério de amor, de salvação e de vida.

Deus-Trindade é, portanto, a relacionalidade por excelência; total relacionalidade de cada uma das pessoas divinas com respeito às outras, de tal forma que se implicam e incluem reciprocamente sempre e em cada momento, sem que uma seja a outra.

Deus só existe como ser em relação. A grande novidade cristã é que a divindade só existe comunicada, parti-lhada. Deus é relação. Deus é só relação. Deus é só amor. “No princípio está a relação” (G. Bachelard).

Deus é essencialmente relação; e essa relação, “num belo dia”, transbordando de vida,  transbordando de gra-tuidade, pôde abrir-se a nós para nos fazer existir, concedendo-nos o ser e convidando-nos a entrar no fluxo dessa mesma relação trinitária.

Jesus não pregou sobre a Trindade, mas abriu o caminho que conduz ao Pai e enviou seu Espírito.

A partir de sua própria experiência de Deus, Jesus convida seus seguidores a se relacionarem de maneira confiada com Deus Pai, a seguirem fielmente seus passos de Filho de Deus encarnado e a se deixarem guiar e alentar pelo Espírito Santo. Ele os ensina, assim, a se abrirem ao mistério santo de Deus.

Também os primeiros cristãos não elaboraram argumentos sobre a Trindade (nem Pedro, nem Paulo, nem os evangelhos, nem mesmo os chamados Padres apostólicos), mas todos falaram sem cessar do Pai, do Filho Jesus e do Espírito Santo

Só no final do séc. II e princípio do séc. III alguns teólogos audazes começaram a falar da Trindade e descobriram que esse nome era mais cômodo para referir-se, ao mesmo tempo, ao Pai, a Jesus e ao Espírito, de maneira que começaram a empregá-la com certa frequência.

A Trindade não é um dogma separado da Bíblia ou da Igreja; no centro da Bíblia e da vida cristã se encontra o mistério de Deus-Pai, que conhecemos por Jesus e compartilhamos pelo Espírito Santo, em sua união e diferenças. Esses Três, que são Um, em amor e vida, constituem o que, com palavra imperfeita, mas talvez imprescindível, chamamos Trindade, para confessar por ela que o Deus dos homens é dinamismo de vida e impulso de amor na mesma história dos homens. Entendida assim, a Trindade constitui, com a Encarnação, o centro do mistério cristão: por ela sentimos e sabemos que Deus é fonte inesgotável e comunhão criadora de amor que anima e sustenta a história dos homens.

Conta-se que, certa vez, um homem provocou S. Agostinho dizendo que não podia ver a Trindade. Este lhe respondeu: “Tu vês a Trindade quando vês a caridade” (De Trinitate VIII, 8,2). Esta resposta, tão fulgurante como esclarecedora, nos situa no coração do mistério de Amor que presidiu a Criação, centrou-se na Encarnação e alcançará sua plenitude na Ressurreição.

A partir desse Amor vivemos a fé e a comunhão trinitária como a expressão mais adequada da vida única, radiante, irradiadora, do Pai, do Filho e do Espírito Santo que, contemplando-se um ao outro, se revelam como fonte e origem de tudo o que existe. A criação inteira procede das entranhas amorosas das Três Pessoas divinas; não só isso, a Criação é também morada da Trindade; em tudo encontramos “marcas” da ação trinitária e, de maneira especial, onde a caridade é vivida.

Assim, à luz da afirmação de S. Agostinho, podemos sentir e “ver” a Presença da Trindade lá onde o amor se expande e se externaliza na prática da caridade.

Esta é a nossa credencial como seguidor(a) de Jesus: a vivência do amor, desse amor que contempla a vida e sente o pulsar da Trindade na beleza da criação e na dignidade de cada ser humano.

Portanto, o mistério da Trindade não é uma verdade a ser pensada, mas uma presença a ser vivida; presença que perpassa tudo e se faz visível em toda realidade; presença que ultrapassa tudo o que pensamos e refletimos sobre ela. Só quem tem olhos contemplativos vê as “marcas” da presença do Deus Uno e Trino em tudo e em todos.

É da essência da Trindade ser “amor em movimento”; por isso, onde há amor e caridade, aí está a Trindade; e só corações solidários são capazes de entrar no fluxo desse amor e adorar o Deus trinitário.

Sabemos que “caridade” provém de “cháris” = Graça. Caridade é Graça em ação, é amor incondicional, é dom gratuito, é favor concedido a alguém, é generosidade radical. A caridade é a visibilização da ação trinitária. O ser humano entra no movimento amoroso da Trindade quando sai de si e se revela presença solidária juntos aos mais necessitados; ali ele deixa transparecer o rosto amoroso da Trindade.

Aqui está a grandeza do ser humano, criado à imagem e semelhança do Deus Trindade. E é fácil intuir isso: sempre que sentimos o dinamismo de amar e ser amados, sempre que sabemos acolher e buscamos ser acolhidos, quando compartilhamos uma amizade que nos faz crescer, quando sabemos dar e receber vida..., estamos saboreando o “amor trinitário” de Deus. Esse amor que brota em nós tem n’Ele sua fonte.

Por isso, quem vive o amor a partir da Trindade, aprende a amar a quem não lhe pode corresponder, sabe doar sem esperar recompensa, é capaz de compadecer-se dos mais pobres e excluídos, pode entregar sua vida para construir um mundo mais amável e digno de Deus.

Nesse sentido, o melhor caminho para aproximar-nos do mistério da Trindade não são os tratados teológicos que falam dela, mas as experiências amorosas que compartilhamos na vida. Só encontramos e “vemos” a Trindade com o coração.

Quem é incapaz de dar e receber amor, quem não sabe compartilhar nem dialogar, quem só escuta a si mesmo, quem resiste relacionar-se com os outros, quem só busca seu próprio interesse, quem só deseja o

poder, a competição e o triunfo, não pode experimentar nada da Trindade amorosa.

Assim, possuímos uma vocação à comunhão, que é antes de tudo comunhão com o Pai. Essa comunhão se realiza em e por Cristo: Ele nos introduz na relação filial com o Pai e permite que possamos chegar a ser, mediante o Espírito Santo, filhos e filhas do Pai. Então, não somos simplesmente “ícone” da Trindade, mas criaturas cuja plenitude de vida consiste na participação da vida trinitária. Fomos criados “à imagem e semelhança de Deus”, e Deus é amor, comunhão, relação em si mesmo e na Trindade. Desta fonte nasce o sentido das relações mútuas entre os seres humanos.

O Pai está gerando continuamente o Filho dentro do nosso coração. E Pai e Filho deixam emergir o Espírito Santo na profundidade do nosso espírito. A Trindade habita nosso ser mais profundo. Deus está dentro. Somos como que o sacrário que acolhe Deus e, por isso, podemos louvar, festejar, porque somos o templo de Deus. É a Trindade que vem ao nosso encontro e faz de nosso interior sua morada, não cada uma das “pessoas” separadamente. Não estamos falando de “três em um”, mas de uma única realidade que é relação.

Santa Teresa d’Ávila, mestra da espiritualidade, afirma que dentro de cada um de nós, há uma morada secreta do amor divino. A espiritualidade consiste em caminhar no escuro e numa busca insistente, de aposento em aposento, de câmara em câmara do próprio coração, até atingir essa morada íntima de Deus em nós. Lá Ele nos espera. Nós O escutamos no despojamento de tudo o que possa nos distrair e dispersar da sua presença discreta. Só assim poderemos cantar e dançar para Ele o nosso amor.


Texto bíblico: Jo 3,16-18

Na oração:

A oração é sempre uma experiência de comunhão. Ela nos abre a um Outro que é comunhão, partilha, diálogo, e só podemos ir a Ele se entramos nesse intercâmbio contínuo de amor.

É configurando-nos ao Filho, no Espírito, que a oração nos faz glorificar o Pai. É abrindo-nos a uma atitude filial, no seguimento de Jesus, que nos tornamos templos do Espírito, para a alegria do Pai.

- Entre no fluxo do “amor trinitário”; deixe o Espírito clamar em seu interior: “Abba, Pai”.

- Seja “transparência da Trindade” nos relacionamentos com as pessoas na sua vida cotidiana.