domingo, 31 de dezembro de 2017

ESPAÇO FAMILIAR: romper bolhas, derrubar muros

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José do Natal.


“... Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)

Certamente todos já viram um invento recreativo para crianças, composto de um globo inflável que flutua sobre um reservatório de água; ali elas são introduzidas, e ficam se movendo prazerosamente. Tal invento evoca um comportamento frequente nas famílias de hoje. Sem se darem conta, elas mesmas fabricam uma bolha e se fecham nela como num reduzido microcosmo. Elaborado pela mente e inflado pelo ego, esse pequeno globo enclausura as pessoas em um mundo familiar muito definido: o êxito, a vaidade, o dinheiro, os bens materiais, um ambiente raquítico de espaço e tempo, torna-se sua única realidade.
No entanto, para as famílias cristãs, poderíamos perguntar se há algo mais além, por detrás dessa bolha, desse globo fechado no qual todos brincam como crianças inconscientes. Despertar o “eu profundo e universal” é descobrir-se habitante de um universo novo e espaçoso, um “eu sou” com sabor de infinito, onde nem a escassez ou a riqueza, nem a saúde ou a enfermidade, nem a vida curta ou longa..., é o mais essencial, mas a consciência expandida que rompe a bolha e faz a pessoa sentir a liberdade amorosa dos filhos e filhas de Deus.
Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo. Deixemo-nos surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...; ou nossa vivência de fé se reduzirá a um ritualismo fechado, impedindo sair de nós mesmos.

Também os muros estão voltando à moda. Não podemos esquecer que os muros foram criados para a segregação dos “diferentes”. O muro econômico que exclui, se visibiliza no muro que segrega os excluídos.
Um muro é uma ordem, um silêncio forçado e prolongado, é vontade de poder e domínio sobre os outros.
Muros são pedras da vergonha no nosso percurso vital. Como tirá-los do caminho?
Muros não têm semente, embora se multipliquem pelo mundo. O muro é um veneno. Muros são concretos: muros entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre ignorantes e doutores, entre negros e brancos, entre centro e periferia.
Muros são urros. Muros são murros, são muito burros! Todos os muros deviam se envergonhar, pois se os muros pudessem ensinar alguma coisa, desistiriam de serem muros.

A festa da Sagrada Família, que se deslocou a Jerusalém, nos instiga a romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração das famílias, atrofiando sua própria existência.
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige que todos, de tempos em tempos, revisem suas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida.
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Também as famílias não estão imunes desta tentação.
No entanto, nada mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.

Se quisermos que a família cristã tenha a marca da Família de Nazaré, é necessário compreender que ela é chamada a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão do próprio mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-se de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade... 
As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios.
Não há razão para permanecer nas bolhas e condomínios quando todas as circunstâncias mudaram.

Comprovamos hoje um “déficit de interioridade”. O ser humano “pós-moderno” perdeu a direção do seu coração; dentro dele há um “condomínio” onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e mergulha na mais profunda solidão estéril. Vive perdido fora de si mesmo e não consegue colocar as grandes perguntas existenciais: “de onde venho? Quem sou? Para onde vou? Que devo fazer?”
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior. São vítimas da chamada “síndrome da exteriorização existencial”; tem dificuldades de introspecção, silêncio, reflexão, contemplação...; não são capazes de velejar nas águas da interioridade, vivendo uma vida superficial e sem sentido.
Seduzidos pelos estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizados por ofertas alucinantes... muitos ambientes familiares se esvaziam, perdem a dimensão da interioridade, afastam-se do horizonte de sentido e... se desumanizam. Tudo se torna líquido:  o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas...
Longe de um ambiente humano dinâmico, operante, ousado, solidário..., o que elas deixam transparecer é, pelo contrário, um ambiente humano neutro, apático, estagnado.

Inspirando-se em Maria e José, pais e mães convertem-se em fonte de vida nova; e a sua missão mais apaixonante é aquela de poder dar uma profundidade e um horizonte novo aos seus filhos; sabem integrar “vida em Nazaré” (espaço de interioridade) e “presença em Jerusalém” (vida expansiva, aberta ao novo e ao diferente).
“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria”; esta expressão sugere a atitude básica dos pais e mães: cuidar a vida frágil de quem começa o seu percurso neste mundo. Como seguidores (as) de Jesus e com sua presença humanizadora, eles (elas) são promotores(as) de habilidades na vida de seus filhos: “dão asas” e despertam neles as potencialidades do humano presentes em cada um, levando-os a experimentar condições ousadas de crescimento e realização; na convivência cotidiana, interagem com eles e conseguem extrair deles o melhor, fomentam o papel ativo deles, incentivam-os a desenvolver sua autonomia e dar asas à sua imaginação.
O ambiente familiar, sadio e instigante, torna os filhos conscientes de que são seres em movimento, protagonistas de mudanças, capazes de criar novos modos de existir, de romper com o instituído e buscar o diferente, o novo, o desconhecido... A família é o espaço das inovações, dos riscos, dos experimentos... Nela se encontra o lugar dos sonhos, dos desejos, da liberdade e autonomia.

Texto bíblicoLucas 2,22-40
   

Na oração:  
A exortação apostólica “Amoris Laetitia”, do Papa Francisco, inspira os casais cristãos a que se convertam em pontes, ponham suas energias, sua formação, dedicação, sua vida a serviço de criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo. A vocação para estender pontes, superando fronteiras, é algo crucial para o mundo de hoje.
- Seu ambiente familiar: risco da aventura ou medo asfixiante? Contínua surpresa ou perene rotina?  Espaço de liberdade ou vivências dentro de bolhas asfixiantes e muros de proteção? 

domingo, 24 de dezembro de 2017

No Interior de uma Gruta Deus se Veste de Mundo

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Noite de Natal!

Manifestamos a todos votos de um Santo Natal, extensivos às famílias e às comunidades.
Que a memória festiva do "Deus que se humanizou" possa ser fonte de inspiração para construir
redes de relações mais humanizadoras.


“...pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7)

Na noite de Natal, Deus “desce” aos rincões da humanidade; uma intensa Luz brilha no interior de uma gruta e se expande em direção a todo o universo. “Deus se veste de mundo”.
As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; elas possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana.
Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração, oração silenciosa e surpreendida.
É que nada é digno de Deus, nada está à sua altura para poder acolhê-Lo: nenhum tipo de ornamento, nenhum palácio, nenhuma forma de sabedoria humana.
Por isso, Deus decidiu escolher um lugar despojado de tudo, onde não há concorrências ridículas: gruta, manjedoura, pobreza...

Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano.
Na pobreza, na humildade da própria gruta pessoal, inserida na grande quantidade de grutas de refugiados e excluídos, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus, visível na Criança de Belém.
O Nascimento de Jesus inspira a nos deter para escutar-sentir o significado da gruta, para nossa vida e para a comunidade cristã.
A gruta não é um fim em si mesma, não é um fim de trajeto; ela é uma etapa imprescindível para compreender a Encarnação. Ou seja, o cristianismo não passa de uma boa ideologia se não desce da cabeça às entranhas da vivência. A gruta é algo assim como as entranhas da humanidade, onde se sente a vida, porque é um espaço natural, sem cimento nem tijolos, sem paredes divisórias, aberto.
A gruta é essa abertura da natureza que acolhe e abriga: ela é espaço para refúgio, proteção do frio, último recurso diante do despejo. Francisco de Assis, em sua vivência de Natal, no-la encheu de natureza: animais, vegetação, riachos…, tudo em expectativa, tudo em seu estado puro: a nova criação com a chegada do menino que nela encontramos.
Temos medo da gruta, das entranhas da vida, da história e de Deus, porque a gruta contém o Deus que se veste de mundo, como o seio materno contém a criança que virá.

A gruta está dentro e fora de nós. Dentro, ou seja, esse lugar marginal de nosso ser que não nos atrai, porque é escuro, frio, não visitado, nos dá medo entrar...; e, fora de nós, a gruta é esse lugar da noite, sem luz artificial, que intimida aproximar-nos porque não sabemos quê ou quem podemos encontrar. Talvez pessoas que nos olham com suspeita ou com carinho, nos acolhem ou nos rejeitam...
De qualquer forma, só uma coisa importa fazer agora: diante da fragilidade de uma criança, ampliar o olhar, afastar o medo, tirar o pó das lembranças não integradas…
A gruta interior é uma abertura natural na rocha dura da vida. Nela, se supero os medos e acesso às suas profundezas, descubro-me habitado pelo Amor; entrar na gruta de Belém torna-se uma privilegiada ocasião para soltar as amarras internas, tirar as paredes que separam ou dividem, abrir espaços acolhedores...
E, para entrar, é preciso agachar-se, descer de nosso ego inflado, das vaidades… Só quem se inclina pode acolher uma criança nos braços. Para encontrar Deus é preciso empreender o caminho de “descida”, dirigir o olhar e o coração para o próprio interior e para o mundo da exclusão.

O mundo é uma pousada, lugar de passagem onde homens e mulheres, maiores e menores, devemos ir construindo lugares de encontro. Mas Deus quis vir à pousada dos homens e não encontrou lugar nem na cidade, nem em nenhuma estalagem. Não tinha o que era preciso ter: dinheiro, poder, influências...
Portas e corações se fecharam ao pedido de ajuda de uma família, apesar da evidente necessidade urgente que eles tinham de alojamento. “Para eles não havia lugar na hospedaria” (Lc 2,7). Uma cocheira de animais funcionou como “centro de acolhimento”.
Assim, a vida de Jesus, desde o início, foi muito semelhante àquela de um “clandestino”: indesejado e incômodo. E Ele continua vindo a nós sob o semblante do clandestino. “É inútil procurá-lo nos prestigiosos palácios do poder onde se decide a sorte da humanidade: não está ali. É vizinho de tenda dos sem casa, dos sem pátria, de todos aqueles que a nossa dureza de coração classifica como intruso, estrangeiro, refugiado” (Tonino Bello)
Mas era Deus e nasceu, ainda que fosse fora, no descampado, no que então era uma gruta de pastores, um lugar para guardar animais.
Jung dizia: “somos tão somente o estábulo onde nasce Deus”. A gruta está sem defesa, por isso, entram as chuvas e também o frio; mas é precisamente nas fendas de sua pobreza onde ocorre o nascimento da Vida, onde acontece, desde aquela noite, a manifestação da glória de Deus, o perfume de sua compaixão.

É surpreendente que a pequenez e a vulnerabilidade sejam o cartão de visitas de Deus. O Natal é o memorial desta verdade, sempre esquecida. Deus não nos estende a mão a partir de cima, senão que se mostra necessitado, dentro de uma gruta. Ele nos ajuda a partir da fragilidade. Ele está “envolvido em faixas”, deitado em cima de palhas, como se não houvesse outro modo de se revelar.
Na presença de uma Criança tudo é aceito e acolhido, tudo encontra seu lugar. Nada é rejeitado: o sujo e o que não conta, o desprezível, o mal olhado, perdem seu aspecto desagradável e se ungem de calor e suavidade. Tudo fica transformado pela irradiação da luz que emerge a partir de dentro; há muito mais dignidade e beleza onde sequer poderíamos imaginar.

Na Encarnação e Nascimento de Jesus esvaziou-se o céu; Deus, em sua misericórdia, abandonou o trono altíssimo, exilou-se nas entranhas profundas da humanidade e assumiu tudo o que é radicalmente humano.
Se a história da Encarnação começa lá “embaixo”, na periferia, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção na manifestação do amor materno e na frágil beleza do recém-nascido.
É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos.
No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.


Textos bíblicos: Lucas 2,1-14 

Na oração: 
Contemplar o rosto do recém-nascido... Contemplar nele os rostos desfigurados da história.
A cena do Nascimento de Jesus pede tempo, presença, assombro... para deixar-se afetar por ela; “... como se estivesse ali presente, com todo acatamento e reverência possível” (S.Inácio).

Anunciação, uma Experiência Universal

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o 4º Domingo do Tempo do Advento - Ano B.


“Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30)

No tempo do Advento, Maria é sempre uma presença cheia de significados: a mãe que espera, a mulher que acolhe a Palavra, a jovem que arrisca, a amiga que ajuda, a mulher de fé que silencia e medita... Tudo isso encontramos nela. E nela, todos nos vemos; nela nos inspiramos. Porque também nós precisamos acolher, arriscar, servir e deixar que a boa notícia seja semente que se enraíza na terra de nossa interioridade.
O Advento também é tempo do “sim” e hoje fazemos memória daquela que foi protagonista do “sim” que mudou a história.
Aquele que é a Vida e por quem foram feitas todas as coisas pede o consentimento da virgem de Nazaré para assumir a vida humana no seu seio virginal. Para que sejam cumpridas, para que o Salvador entre na nossa história, só falta o Sim de Maria.
Deus nunca força a liberdade humana, nem mesmo nos momentos em que está em jogo o futuro da humanidade; dinamiza-a, a partir de dentro, em todos aqueles(as) que se abrem à sua graça.
O Deus que nos criou sem pedir o nosso consentimento, nunca nos impõe missão alguma sem o nosso assentimento. Ele suscita nossos desejos, atrai, convida, mas respeita sempre nossa liberdade. Nossas decisões serão tanto mais livres e fecundas, quanto mais unidos estivermos com Deus, quanto mais confiarmos na sua graça; mas elas devem ser assumidas por nós.

A redenção querida por Deus é universal, mas encarna-se no particular, no ponto de intersecção de um tempo e de um espaço únicos: na casa e no corpo de Maria de Nazaré, na Galiléia.
Esse ponto torna-se o centro da história, o ponto de apoio e de partida de um movimento pelo qual o Filho assume a condição humana para fazê-la retornar consigo, pelo poder do Espírito, ao Pai.
Maria é o primeiro e mais belo fruto do olhar de misericórdia da Trindade sobre a humanidade e de sua decisão de salvá-la. “Um anjo faz o anúncio, uma virgem o escuta, crê e concebe. Na alma, a fé, e no ventre, Cristo” (S. Agostinho).
Essa graça é tão fundamental e tão significativa, que a expressão “cheia de graça” é usada no lugar do nome próprio. Maria é nomeada pelo modo como é vista por Deus.
Ela é pessoalmente, de maneira singular e única, e de maneira permanente, a agraciada”  de Deus.

Para revelar e realizar a Encarnação do seu Filho, Deus não escolheu o templo, nem uma família sacerdo-
tal. Nazaré, lugarejo situado na Galiléia dos gentios, uma terra considerada abandonada de Deus, da qual “não havia saído nenhum profeta” (Jo. 7,52), foi escolhida por Deus para a encarnação do seu Filho.
Não menos estranho é o fato de Deus ter escolhido, como forma de entrada na nossa história, uma joven-zinha de Nazaré, aldeã com um nome comum, totalmente desconhecida e insignificante aos olhos dos grandes do mundo, como tantas Marias do nosso povo.
Para realizar a salvação dos homens, Deus escolhe o insignificante e desprezado pelos homens.
Escolhe o caminho do “esvaziamento” e do “amor louco”. Verdadeiramente, os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, e seus pensamentos não são os nossos pensamentos (Is. 55,8).

Devemos compreender que a Anunciação não se refere somente a Maria, a José e a Jesus, mas a cada um de nós e à humanidade inteira.
O amor com o qual Deus nos ama é, ao mesmo tempo, um amor voltado à humanidade inteira e um amor que se dirige a cada um em particular, pois foi Deus que nos concedeu a cada um o dom de existir.
Podemos dizer que cada um de nós é amado e buscado como se fosse o único no mundo. E este amor, no entanto, nos invade para nos atravessar e chegar até os outros. “Cheios de graça”, assim como Maria.
Não olhemos a Anunciação como se fosse um acontecimento exterior a nós. Estamos todos incluídos nela. Mais ainda, devemos compreender que este relato não fala apenas de algo que se passou há dois mil anos atrás, mas refere-se também ao que nos acontece hoje: Jesus vem ao mundo e a cada um de nós sem cessar, e vem de novo, sempre.

O mistério da Anunciação é como o nosso espelho: nele todos nos vemos; ou melhor, a Anunciação acontece com todos nós, a todo momento e em todos os lugares e etapas da vida.
Anunciação somos todos que, como Maria, dialogamos com Deus desde o mistério mais profundo de nossa vida, em gesto de disponibilidade radical
A Anunciação a Maria é uma experiência universal: todos recebemos visitas dos mensageiros de Deus.
Estamos rodeados de mensageiros divinos: pessoas (presenças angelicais), fatos, experiências interiores... que através de vozes e sinais movem nossa vida em direção à missão. São anúncios surpreendentes, inesperados... Deus é surpreendente, inesperável, revela-se na vida... É preciso uma atitude contemplativa da vida para perceber os sinais divinos de sua presença.
Em primeiro lugar, os mensageiros fazem elogios a cada um de nós: “Deus está encantado com você; você é agraciado(a), você é único(a) e original; você tem uma missão específica”.
É preciso estar em sintonia para captar a presença dos mensageiros. Eles falam da vida e apontam para o futuro. Falam que Deus faz nascer a vida mesmo onde é impossível aos olhos dos homens. O problema é que estamos distraídos ou focados em muitas preocupações e não captamos a mensagem que nos chega.
É natural que brotem medos, perturbações, dúvidas... pois se trata de algo fora do normal, inédito... que nos espanta. Mas o mensageiro nos pacifica, sustenta nosso ânimo, alimenta a coragem, vence o medo...

E o que ele nos pede? Deixar-nos conduzir pelo Espírito, como “Maria que respira ao ritmo do Espírito”. Quem se deixa conduzir pelo Espírito torna-se fecundo, está aberto à vida, gera a vida e luta em favor da vida.


Do encontro com os mensageiros de Deus brota um “sim” do mais profundo; sim, sem temor, sem dúvida; sim que nos expande em direção aos outros; sim que nos coloca em movimento; sim que desencadeia outros sins. Sim que muda a história pessoal e coletiva. Sim que destrava a vida, nos faz criativos, abertos ao novo. Sim que nos faz entrar em sintonia com o Sim de Deus, proferido desde todos os tempos.
Sim que é dado a Deus se amplia; sim que revela nossa identidade, nos humaniza. Sim que aponta para a vida. Deus é sempre fecundo; deixar Deus ser Deus em nossa vida: essa é a marca da Anunciação.
O consentimento de Maria encerra o diálogo; o anjo retira-se em silêncio. Com certeza, estava alegre, por poder contar com o sim resoluto de Maria.
Que o anjo não se afaste triste de nós, pela nossa resposta negativa.



Texto bíblicoLucas 1,26-38

Na oração:
Poucas vezes Maria fala nos evangelhos e, no entanto, suas palavras são rotundas, definitivas, inapeláveis: “faça-se”, “eles não têm mais vinho”, “fazei o que Ele vos disser”. E, sobretudo, o “Magnificat”, que é um hino de liberdade, de justiça e de louvor.
Também nós falamos: em família, no trabalho, entre amigos... Falamos de outras pessoas, da situação social e política... Falamos daquilo que nos preocupa ou dos nossos desejos e sonhos... Quem sabe, também falamos de Deus. Há muito poder nas palavras: poder para ferir e curar, para levantar e derrubar, para bem-dizer ou maldizer... Oxalá, aprendamos com Maria a proferir palavras carregadas de vida e de verdade.
- Você tem consciência do peso e do valor de suas palavras?
- Fazer memória dos “sins de vida”, pronunciados ao longo de sua existência, e que foram o prolongamento do “sim” de Maria.

domingo, 17 de dezembro de 2017

O Advento Des-Vela nossa Identidade Original

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o 3º Domingo do Tempo do Advento - Ano B.


“Perguntaram então: ‘Quem és, afinal? Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. O que dizes de ti mesmo? (Jo1,22)

Quem és? Quem sou? Quê dizes de ti mesmo? Que digo de mim mesmo?
Às vezes, o mais evidente e o mais próximo termina sendo o que menos conhecemos.  Talvez acreditamos conhecer melhor os outros que a nós mesmos.
É possível que os enviados a João Batista tampouco pudessem dar razão de si mesmos, mas queriam saber quem era João e o que ele pensava de si mesmo. É possível que ninguém tenha ousado perguntar aos sacerdotes do Templo: “E vocês, quem são e que dizem de si mesmos?”
E, no entanto, é o Templo que se sente incomodado com a presença desse estranho homem do deserto: sem ornamentos luxuosos, vestido de pele de camelo e levando uma vida de austeridade. Mas, uma vida que por si só fala de algo diferente, de algo novo.
João, nas areias do deserto, despertava inquietações e preocupações nos sacerdotes do Templo.
Esta é a verdadeira identidade de João; uma identidade expansiva e original que, ao mesmo tempo, era expressão de sua dimensão mais profunda e o movia a ser presença provocativa junto aos outros. Ele foi um homem inquieto, que passou a vida buscando e preparando o ambiente para acolher uma outra presença surpreendente: “no meio de vós está aquele que vós não conheceis”.

Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos...
Carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz...
Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele... não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
Nesse sentido, o tempo do Advento vem ao encontro desse nosso desejo profundo e se apresenta como uma mediação para ajudar-nos nessa longa travessia em direção à própria identidade expansiva, deixando nosso estreito território e enveredando pelas terras desconhecidas do além-Jordão, onde João Batista também deixa transparecer sua verdadeira identidade: “eu sou a voz que grita no deserto”.

Ao ler o evangelho deste domingo e inspirando-nos na figura de João Batista, que revela quem ele é, podemos, também nós, reservar um tempo para nos contemplar por dentro; provavelmente nos sentiremos um grande desconhecido para nós mesmos.
Nossa existência não pode ser de anonimato e indefinição. Ela exige identidade clara e bem definida.
Normalmente confundimos a identidade com certas “marcas distintivas”: o nome, a profissão, a posição social, política ou religiosa, a função...
A identidade, no entanto, é dinâmica, histórica, fecunda, aberta ao desconhecido, aventureira...; é a capacidade de ir além de si e adiante de si. É poder ser invenção contínua de si mesmo, infinita transcendência.  É ter projeto, ter futuro, sair de si...
Só transcende quem se aproxima da própria interioridade, do próprio coração.

 “Descobrir-se a si mesmo” é ter consciência que no próprio interior há um movimento infinito de construção de si, de identidade em movimento... que se torna possível graças a um constante arrancar-se do imobilismo e da paralisia existencial, que impedem o fluxo da vida.
Só consegue aproximar-se da própria interioridade quem se desprende de defesas e projeções.
A Palavra de Deus, pronunciada sobre cada um de nós, des-vela e re-vela a nossa verdadeira e plena identidade: única, irrepetível, original. Essa identidade vai sendo gestada ao longo de nossa história pessoal com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, alegrias e sofrimentos... que vão pontilhando nossa existência e constituindo esse ser único, que somos cada um de nós.
Vivemos um contínuo chamado na vida e para a vida. A experiência de sentir que estamos insatisfeitos, o impulso em ativar desejos, cultivar aspirações sempre novas, procurar entender quem somos, o que devemos fazer, o que nos torna realmente felizes..., no fundo, tudo isso, é um contínuo desvelamento de nossa identidade. Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém poderá realizá-la por nós.
Ser fiel à própria identidade é ser fiel à nossa vocação.
Isso é identidade, ou seja, mergulhar no “fluxo da vida”, colocar-nos em movimento, caminhar para o nosso próprio interior. Afinal, somos um “ser de caminho”, um ser em marcha, em contínua peregrinação. Ter identidade é viver em contato com as raízes que nos sustentam. No percurso para dentro, clareia-se a visão sobre nós mesmos, sobre nossa originalidade e dignidade.
Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para a interioridade, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontraremos a nossa própria identidade e a verdadeira paz.
“Que eu me conheça e que te conheça, Senhor! Quantas riquezas entesoura o homem em seu interior!
 Mas de que lhe servem, se não se sondam e investigam?” (S. Agostinho)

Quem é que pode nos fazer acreditar que chegamos ao fim do caminho, que finalmente adquirimos uma identidade definitiva? Quem pode nos fazer dizer “eu sou?”.
Para a mentalidade bíblica, o ser humano é uma criação contínua, um processo permanente de “tornar-se pessoa”, passando por uma transfiguração, cada vez mais nova, de si e do mundo. O ser humano descobre a “existência” como identidade dinâmica, invenção constante de novas possibilidades de ser.
A identidade vai se des-velando à medida que do interior de cada um brota esta certeza: “Sou um tesouro, para mim e para os outros, e que não conseguia encontrar; sou um mistério da graça e do amor de Deus; sou alguém que se sentia vazio por dentro e descubro que estou habitado por Ele; sou alguém chamado, preferido de Deus; sou alguém que sente as mesmas fragilidades de todos e que, no entanto, sinto a fortaleza de Deus em mim; sou alguém que cada manhã pode desfrutar de um novo dia, posso sorrir para os demais; sou alguém que não sou a luz, mas posso ser testemunha da luz e indicar aos outros onde encontrá-la; sou alguém que ama profundamente a vida”...
Sem dar-nos conta, vamos encontrando verdadeiras maravilhas dentro de nós.
E enquanto buscamos reencontrar-nos interiormente, podemos nos sentir como o garimpeiro que, em meio ao cascalho e à profundidade da terra, esbarra-se com o veio de ouro.


Texto bíblicoJo 1,6-8.19-28

Na oração:
Deus garante a nossa identidade: podemos ser nós mesmos. Deus investiu pesado em cada um de nós. Mais ainda, fez do nosso coração sua morada.
Ter uma identidade significa assumir um lugar na história, uma missão a cumprir.
- Agora, sabendo o que Deus-Pai pensa de ti, poderias descobrir o teu nome? a tua identidade?
                Quais os teus “sinais digitais divinos”?
- Que resposta darias de ti mesmo, agora, se um repórter te entrevistasse e te perguntasse: “Quem és tu?”
- O que colocarias na tua carteira de identidade que te diferenciasse de todas as outras pessoas?
- Quais seriam os teus sinais digitais mais originais?

   Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Retiro do Advento


O Tempo do Advento abre o ano litúrgico e nos prepara para as festividades do Natal. Esse período é caracterizado pela simplicidade de elementos externos que tornam a celebração litúrgica mais sóbria e, ao mesmo tempo, estimula a profundidade da espiritualidade, que brota das orações e dos textos bíblicos. Em 2017, o tempo do Advento começa em 3 de dezembro e prolonga-se até a tarde do dia 24, data na qual começa o Tempo de Natal.
Todos os anos, o padre Luís Renato Carvalho de Oliveira prepara e disponibiliza um material para vivenciar esse tempo do Advento. O jesuíta afirma que se sente muito consolado propondo esta experiência e ressalta dois motivos: ajudar as pessoas e criar um espaço de partilha.
“Primeiro: como é bom ajudar as pessoas neste caminho da espiritualidade, nesse tempo encantador do Advento e Natal, uma experiência profunda e verdadeira do Deus da Vida, presente, atuante, que tanto nos ajuda a viver e construir um mundo melhor! Quantas pessoas ainda não descobriram a beleza e a importância de uma oração pessoal, íntima, diária, a partir de textos bíblicos, comprometida com a vida e com as pessoas, rezando a vida e a realidade, e sempre em discernimento: Senhor, que queres de mim? Onde e como me quer? Que queres que eu faça, como servir mais e melhor? Qual a minha missão?”, afirma padre Luís Renato.
Para ele, o segundo é incentivar a vivência do Retiro do Advento em grupo. “É criar esse espaço de partilha, de comunhão, ajudando-se mutuamente, a cada semana encontrando-se, na igreja ou na casa de alguém, preparando o ambiente, com símbolos de nossa cultura, intercalando com salmos e canções, partilhando a oração e a vida, vendo o sentido de cada semana, inspirados pela rica simbologia e experiência mística deste Tempo do Advento e Natal”, diz.
Os elementos básicos para fazer o Retiro do Advento são: dedicar trinta minutos à oração pessoal diária e rever essa oração durante alguns minutos. “Desejo a todos uma belíssima e frutuosa experiência. Agradeço a ajuda na divulgação deste material, as sugestões e melhoras, como também a partilha do que vivenciaram”, conclui padre Luís Renato.
Clique no nome dos documentos e faça o download dos materiais do Retiro do Advento 2017:


Novena de Natal

Uma das práticas tradicionais dos cristãos católicos no Brasil no tempo do Advento é a realização de Novenas de Natal em Família. São oportunidades de encontro, oração e reflexão sobre os apelos deste tempo para construirmos uma celebração digna para a festa do nascimento de Cristo.

Quem ainda não começou, ainda há tempo de celebrar a novena de Natal e se preparar melhor para esta festa cristã.

Divulgamos a seguir uma sugestão de Novena de Natal preparada pelo prof. Eduardo Machado (http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/). Agradecemos a recomendação do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ.


-- 1º Encontro da Novena – Eis que lhes anuncio... [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/10/1-encontro-eis-que-lhes-anuncio.html]

-- 2º Encontro da Novena – Culpa e vingança: Violência contra nós mesmos [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/10/novena-de-natal-2017-2-encontro.html]

-- 3º Encontro da Novena – Preconceito: Violência contra tudo e contra todos [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/10/novena-de-natal-2017-3-encontro.html]

-- 4º Encontro da Novena – Palavras de vida, para a Vida [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/11/4-encontro-palavras-de-vidapara-vida.html]

--5º Encontro da Novena – Pecado social: violência estrutural [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/11/5-encontro-pecado-social-violencia.html]

-- 6º Encontro da Novena – A violência escancarada [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/11/6-encontro-violencia-escancarada.html]

-- 7º Encontro da Novena – A violência invisível [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/11/7-encontro-violencia-invisivel.html]

-- 8º Encontro da Novena – O medo da violência e a violência do medo [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/11/8-encontro-o-medo-daviolencia-e.html]

-- 9º Encontro da Novena – A paz nasce com o Amor [http://eduardomachadobh.blogspot.com.br/2017/12/9-encontro-paz-nasce-com-o-amor.html]

ADVENTO: as vozes que fazem a diferença

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o 2º Domingo do Tempo do Advento - Ano B.

“Esta é a voz daquele que grita no deserto” (Mc 1,3)

Advento é um tempo que se revela como uma espécie de respiro, um tempo para distanciar-nos do conflito de ideias, interesses e especulações que acabam por alterar a tranquilidade e a paz de nosso interior. Este é um tempo sagrado e um tempo de silêncio, muito necessários para o momento em que vivemos. Um silêncio que não é isolamento, mas capacidade de escuta; algo assim como desconectar o auricular, no qual permanentemente soam as músicas “interesseiras”, para escutar as músicas ambientais; um silêncio que não é só ausência de palavras, mas ocasião para dar a possibilidade a palavras diferentes e novas; um silêncio que é superação do palavreado crônico que nos esvazia por dentro.

A “voz que grita no deserto” é a do profeta vestido pobremente, que nos prepara um coração compassivo e reconciliado. Aquele que saltou de alegria no ventre de sua mãe diante da voz da jovem de Nazaré, nos rompe, com sua voz, a surdez do coração e nos força a abrir os olhos para ver, de maneira nova e diferente, Aquele que sempre se aproxima.
O Batista é só uma voz; não é a Palavra. Mas não é uma voz qualquer, não é mais uma voz entre tantas outras; é a voz que faz a diferença: ela des-vela e re-vela. Des-vela a dureza do coração daqueles que não se abrem à novidade do Deus que “continuamente vem em sua direção”; re-vela a presença d’Aquele que com sua Palavra destrava a voz dos sem voz, ativando e despertando a dignidade escondida sob o peso das “vozes que desumanizam”, sejam elas políticas ou religiosas.
O tempo litúrgico do Advento nos possibilita renovar uma atitude tão escassa e tão necessária em nossa cultura: escuta das vozes frágeis do nosso entorno; são as vozes dos tristes, dos deprimidos, dos cansados e tantas outras vozes que se encontram nas margens sociais e religiosas. Essa escuta nos conduz à voz frágil d’Aquele menino Deus que sempre quer nascer onde há necessidade de mudança, de busca, de melhora, de um novo começo.
Mas o Advento também nos faz mais sensíveis para captar as vozes frágeis de nossa interioridade; elas querem se expressar, mas não encontram ambiente favorável, devido aos ruídos e sons estridentes que nos ensurdecem.
Dentro de nós há muitos sentimentos reprimidos, experiências bloqueadas, vivências rejeitadas, pensamentos atrofiados... buscando uma oportunidade para se fazerem ouvir; são “vozes caladas”, “vozes que gritam no deserto interior”, procurando encontrar gretas de nossa existência por onde respirar. É preciso criar silêncio para ouvi-las, dialogar com elas e assim poder restabelecer um equilíbrio ecobiológico interior.
Há um rumor em nossa interioridade, e disso temos medo, pois des-velam nossa real identidade. O pensador Pascal dizia que “a infelicidade do ser humano vem de uma só coisa, que é não saber permanecer quieto em seu quarto”. Verdadeiramente há um rumor de vigor e de vida no coração, como a melodia da fonte na aridez do deserto, que é capaz de pacificar nosso espaço interior. Há um momento em que uma frágil voz sem palavras nos alcança no ponto mais vivo e original de nossa existência.
É o rumor que brota da provocação de uma palavra escutada como aquela de João Batista: “preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” É a estrada mesma da vida que passa pelos meandros do coração. Por ali transita o Espírito de Deus, que ora grita, ora sussurra, dependendo da nossa sintonia ou não com sua presença.

Sentados às margens das estradas ou de um riacho silencioso de nossas vidas, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar em direção às regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
Estamos mergulhados num mundo de vozes; um “vozerio” nos cerca: vozes que nos levam à morte, vozes que nos chamam à vida; vozes contaminadas pelo egoísmo, adulteradas pelo medo, deturpadas pela impureza, e vozes que são o eco do paraíso convidando para a festa, comunicando paz, convocando à comunhão... É possível que as vozes do egoísmo, do orgulho e da ambição tentem se disfarçar em voz do Batista, a fim de arrastar-nos para o vazio e a ruína.

Mas o Espírito não fala por ruídos, e sim pelo silêncio; não fala pela força dos pulmões, e sim pelo vento suave de sua voz inconfundível.
Para escutá-la, requer-se interioridade e atenção aos sinais de sua presença: pode ser a voz de um irmão pedindo socorro; pode ser a linguagem de um acontecimento alegre ou triste; pode ser uma palavra lida ou proclamada; pode ser uma inspiração misteriosa captada no silêncio...
Sentimos a ressonância da voz do Espírito na oração, na atividade, ao ver um noticiário, ao dar um abraço, ao ler um livro, ao ouvir uma canção, ao contemplar um quadro, fazendo um passeio, escutando alguém que nos fala de sua vida...; sua presença ressoa na história e na imaginação convidando-nos a sonhar um futuro melhor; sua atuação ressoa nos encontros humanos, reconstruindo os laços rompidos; sob seu impulso ganham consistência, em cada um de nós, as atitudes que nos levam a viver com mais plenitude: compaixão, justiça, verdade, amor...
No silencioso sussurro de Sua voz toda realidade interior fica abençoada: os sentimentos contraditórios, os dinamismos opostos... Ele “desce” para encontrar-nos e despertar nossa vida atrofiada. Com seu toque, uma identidade nova ressurge: não seremos mais estrangeiros, nem inimigos de nós mesmos. Sua presença dá calor e sabor à nossa existência.

Na arte do discernimento das vozes, o importante é, através da escuta interior, perceber de onde vem e para onde nos conduz cada voz que ressoa em nós. Se ela nos conduz para o outro, para o serviço, para o Reino...é clara manifestação da voz do Mestre.
Isto dá uma profundidade especial ao nosso caminhar, nos desvela uma riqueza humana escondida em nosso interior, nos dá uma alma de poetas, capazes de dar nome ao mistério.
“Endireitar as estradas interiores” é apaixonante, pois no situa no caminho de uma humanização mais verdadeira e profunda e dilata nosso coração. Somos advento; cuidemos, pois, de nossa vida interior!


Texto bíblicoMc 1,1-8

Na oração:
Espirituais somos todos, se deixarmos que, dentro de nós, o Espírito de Deus encontre espaço livre para mover-se, sussurrar e suscitar inquietações. Ao habitar-nos, o Espírito não nos invade, nem se impõe.
Se abrirmos espaço à sua presença, brota uma sadia convivência que potencia o melhor em nós mesmos, sensibiliza nosso coração e abre os sentidos para que fiquem mais alertas e sintonizados com as surpresas que brotam da vida.
- Recordar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do Advento.