Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da quinta-feira da Semana Santa - Ceia do Senhor e Lava-pés (2025).
“Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13,5)
Jesus,
durante sua vida pública, revelou uma grande liberdade ao transitar por
diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores,
pobres e excluídos... Ele não só participou de muitas refeições, mas instituiu
a grande Mesa da festa, da intimidade, da memória: a “mesa do
Lava-pés e da Última Ceia”.
Ali, Ele “despojou-se do manto” (sinal de dignidade de
“senhor”), pegou o avental (toalha,
“ferramenta” do servo); “derramou água numa
bacia...” (água derramada com extrema delicadeza, com atenção
e amor); “...e começou a lavar os pés dos discípulos e a
enxugá-los com a toalha” (Jesus inclinou-se aos pés dos seus
discípulos, até o chão, com reverência, cuidado, acolhida, sem fazer distinção
de ninguém; lavou os pés de todos igualmente).
Jesus está
no meio das pessoas como Aquele que serve. Ele é o Senhor que assume, em tudo,
a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este
parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas para seus seguidores. Não
há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de
prestígio.
No “lava-pés”, Jesus deixa transparecer um amor que escandaliza, porque
rompe todos os cânones estabelecidos. Um amor “subversivo”, porque subverte os
critérios sociais e religiosos de seu tempo, desloca advérbios, adjetivos,
nomes: acima-abaixo, dentro-fora, mais-menos, primeiros-últimos, poder-serviço,
sábios-néscios, cegos-videntes, justos-pecadores, sãos-enfermos... Com sua
atitude, Jesus subverte as crenças religiosas de seu tempo (centradas na lei)
para reivindicar os atributos próprios de Deus em quem Ele acreditava; Ele
deixa transparecer o rosto amoroso e cuidadoso do Pai.
Um amor inclusivo: não discrimina a ninguém,
constitui uma comunidade de iguais, unindo em torno a si homens e mulheres,
crianças e idosos...
Um amor universal e preferencial: todas as pessoas
cabem em seu coração, mas de um modo especial as pessoas excluídas por qualquer
razão: os pobres, os enfermos, os marginalizados, os considerados pecadores,
judeus e pagãos...
Um amor que se faz estremecimento das entranhas e
que gera uma atitude de compaixão operativa.
Um amor que, como a água pura, se “derrama” e se
expande no cuidado simples, despojado, acolhedor...
Para revelar seu extremo amor, Jesus toma em suas mãos o elemento da
natureza mais universal: a água. Ele “derrama água numa bacia”:
gesto simples, mas carregado de significados; é símbolo de vida derramada, doada, entregue. A água
dá vida, regenera, purifica, é disponível a todos; não vive para si mesma,
senão para quantos dela necessitam; adapta-se a todos os tempos, recipientes e
lugares. Sabe estar em jarras de barro e em vasilhas de ouro. Sabe manchar-se
para que os outros estejam limpos. Não faz distinção das criaturas: a todas
molha, lava, põe frescor e beleza.
A água é
canção, alegria, paisagem, espelho de sonhos e poesia. Ela transforma, regenera
e põe vida em toda a Criação. Ela abre os povos à comunicação, à cultura e ao
encontro. Ela está sempre disponível e aberta a todos os campos, terra,
plantas, animais e pessoas que dela precisam.
Na cultura hebraica, a hospitalidade exige que se
ofereça água fresca ao visitante,
para que lavem seus pés, a fim de assegurar a paz de seu descanso.
A Campanha
da Fraternidade deste ano vem nos lembrar que no princípio eram as águas;
águas que criam e re-criam o universo. Elas tomam as mais diferentes
formas. Na natureza, contornam todos os obstáculos, esculpem as pedras dos rios
e o fundo dos mares; elas se manifestam tranquilas nos lagos, rebeldes nas
cachoeiras, abençoadas nas chuvas, sempre em movimento. “A água nunca descobrirá o que ela é. Mas,
precisamente por ser água, continuará a brotar, a cantar e a lavar a terra e a
buscar o mar”.
Apesar
de tomarem as mais variadas formas, nem perdem sua identidade, são sempre
flexíveis, maleáveis, por vezes teimosas a percorrerem seus caminhos ao
encontro do mar.
Águas, dádivas divinas.
Águas que matam nossa sede e nos curam; águas que nos purificam e refrescam;
águas que nos descansam e nos reanimam. Águas que envolvem e acolhem a todos
sem distinção; águas sem preconceitos; águas que não se recusam em umedecer
territórios ressequidos, nem se espalhar em lugares sujos.
Deus
cria a partir das águas. Só podemos ser co-criadores a partir das águas. Quem
não cuida, não respeita e não tem uma relação de veneração e de encantamento
para com as águas, não pode ser criativo.
Urge
recomeçar, re-criar a partir da água, antes que seja tarde demais. No princípio
era a água, mas ela também poderá chegar ao fim. O clamor das águas
contaminadas de nosso tempo chega aos céus.
Como profetizas, as águas consolam os
cansados, saciam os sedentos, lavam os suados pelo trabalho, revigoram as
forças dos desanimados, mas também as águas clamam por respeito e por justiça.
Os rios fervem o sangue de indignação contra
cidades desgovernadas, empresas e pessoas poluidoras que tratam o “sangue da
terra” como se fosse receptor de resíduos tóxicos. Ai de quem mata as
nascentes, asfixia os mananciais e envenena os rios!
A
trajetória do Povo de Deus foi marcada pela experiência com a água. Ela
está relacionada com os principais eventos fundantes do povo da Bíblia: na
criação, no dilúvio, na saída do Egito, na entrada da Terra Prometida, etc...
Qualquer projeto bíblico só se sustenta perto de fontes de água, de rios ou
cisternas.
Segundo o relato bíblico de Gn 2,1-10.15, a
terra é vocacionada para ser um jardim de Deus e o ser humano, um
jardineiro. As águas foram feitas para irrigar o jardim da vida.
Para os povos de regiões áridas, a primeira obra de
Deus foi viabilizar a chuva sobre a terra e irrigar uma região quase desértica.
A Bíblia testemunha um mistério em torno dos poços
de água. “Todo deserto contém um poço escondido”
(Saint-Exupèry). Em uma região árida,
cada fonte, cada olho d´água, cada poço é quase um milagre. Toda fonte é sinal
forte da benção divina, um presente de seu amor.
As fontes fazem parte da promessa de Deus para o
seu povo (Dt 8,7-8).
E a Água
se fez “carne” e habitou em todas as criaturas do universo. Não somos apenas
filhos e filhas da água. Somos mais: somos água
que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria... Estamos
vinculados à Criação toda através da água.
Devemos
nos espelhar na gestualidade de Jesus que derrama água para lavar os pés de
seus discípulos.
O desafio de viver uma “ecologia integral” convoca
todas as tradições humanistas e religiosas a salvarem o planeta Terra. Se a
água nos trouxe à vida, o dia que ela acaba não restará nenhum ser vivente. É
através da água que é possível estabelecer uma profunda unidade entre todos os
seres vivos e não vivos.
Pertencemos todos à água e ela nos pertence; ela é
o sangue que circula pelas veias da Criação inteira, possibilitando e recriando
a vida; é ela que alimenta a interdependência entre os seres. Assim como os
minerais combinam e intercambiam moléculas e cores, a água é a mediação através
da qual os seres vivos compartilham suas vidas.
“Tal qual poça d´água deixemos o céu refletir em nós” (Dom Helder)
Texto bíblico: Evangelho segundo João 13,1-15
Na oração:
É preciso compreender que o gesto
do “lava-pés” constitui um dos
gestos mais expressivos da missão e da identidade d’aqueles que seguem Jesus e
exercem algum serviço em sua comunidade. Gesto que é revelação e
ensinamento, amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...
Na vivência do serviço
evangélico, somos chamados a vestir o “avental
de Jesus”: vestir o coração com o avental
da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença
atenciosa, do serviço gratuito...
Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de
estar no mundo.
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