Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 6º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: bem-aventurados vós...” (Lc 6,20)
O cristianismo sempre proclamou a grandeza
das bem-aventuranças; sempre afirmou que elas são o “coração do
Evangelho”, a proclamação do Reino de Deus, a síntese da fé cristã. Mas, na
realidade, são poucos os que compreendem sua mensagem e, menos ainda, os que
fazem dela o núcleo real de suas vidas.
Podem as bem-aventuranças acrescentar algo
a quem se sente infeliz, rejeitado, frustrado...? Não seriam as
bem-aventuranças uma bela teoria sem qualquer repercussão em nossas vidas?
Sempre se disse que as bem-aventuranças são
a maneira original de viver o seguimento de Jesus Cristo. Porém, estaríamos
equivocados se somente víssemos nelas um código moral ou um manual de conduta.
As bem-aventuranças são muito mais. Elas não são leis que se impõem de fora,
mas “dinamismos vitais” que brotam de nosso ser essencial; elas emanam das
profundezas do nosso coração, qual água cristalina que brota das entranhas da
terra.
Por um lado, elas indicam o espírito que
deve animar os seguidores de Jesus. Por outro, elas nos prometem aquilo que
mais ardentemente deseja o nosso coração: a felicidade.
Todos nós carregamos na mais profundo de
nosso ser uma fome insaciável de “algo” que chamamos felicidade. Por isso,
quando ouvimos com atenção e sensibilidade, as bem-aventuranças despertam em
nós um eco especial, reacendem a esperança e sustentam uma vida mais ousada.
O fundamento de todas as bem-aventuranças
está no próprio Deus, em sua Presença e em seu reinado.
Na proclamação das bem-aventuranças, Deus
se coloca como defensor e garantidor da vida dos pobres, dos que estão
cansados, marcados pela dor e pela violência, e que, aos olhos dos outros, são
os últimos, os “perdedores”, insignificantes. Aos olhos de Deus, no entanto,
essas vidas valem, são preciosas, são a "menina de seus olhos”,
precisamente porque são frágeis, ameaçadas.
A felicidade, a vida ditosa, a
bem-aventurança, é que Deus pôs seu olhar sobre eles e elas
Deus se oferece a si mesmo como abundância,
alegria, consolo, esperança, terra prometida, rosto visível, misericordioso,
Pai-Mãe. Eis aí a bem-aventurança por excelência: Deus mesmo.
Um dos fracassos mais graves da Igreja
talvez seja o de não saber apresentar o Deus cristão como amigo da
felicidade do ser humano. Infelizmente, parece ser consenso afirmar que
o específico “do cristão” não é buscar a felicidade, mas sim as exigências das
leis, das abnegações, das penitências e mortificações. Com isso, a vida de
muitos cristãos torna-se um “peso” insuportável e a imagem de Deus revela-se
terrível.
Na realidade, o ser humano somente se
interessará por Deus se intuir que Ele pode ser fonte de felicidade.
Esse é o primeiro dado. Todos buscamos ser
felizes. Não sabemos como alcançá-la, nem onde ela pode estar, mas todos a
buscamos. O ser humano sempre anda em busca da felicidade. Se não a tem, a
busca; se crê possuí-la, trata de conservá-la; se a perde, esforça-se para
recuperá-la. E quando renuncia a uma determinada felicidade, sempre o faz
buscando outra de maior profundidade.
Se aprofundarmos um pouco, percebemos que a
cada manhã nos despertamos para a felicidade. Por detrás de todas as ocupações,
experiências ou acontecimentos que nos esperam está o desejo de viver com mais
intensidade e com mais sentido: aqui está o cerne da felicidade.
E a felicidade não vem das coisas, dos bens, das riquezas; estas até
podem nos dar pequenas satisfações, mas não a felicidade.
A felicidade não é tirar água do poço, mas ser manancial de água viva; a
felicidade não é aquecer o fogo, mas ser fogo que aquece. A felicidade não é
escutar música, mas ser música por dentro. A felicidade não é crer no
Evangelho, mas sentir o Evangelho arder por dentro.
Não é a miséria, o sofrimento, a injustiça,
nem a submissão e a resignação... que as bem-aventuranças tratam. Deus não se torna
feliz com a fome, a pobreza, a dor e o pranto dos seus filhos e filhas. Neste
sentido, dirigindo-se à multidão ou à sua comunidade de discípulos, Jesus emite
um grito, um protesto, e nos lança um desafio em nome de Deus Pai e Mãe que Ele
descobre e chama “Abba”.
O que é que leva Jesus a proclamar, com
alta e viva voz, “felizes” os pobres, os que choram e padecem fome,
perseguição...? A partir de onde olha Jesus e o quê vê?
Jesus não vê outra realidade; vê a mesma
realidade de dor e injustiça, mas faz isso a partir de outro olhar.
Sua própria interioridade, profundidade
habitada, sua ousada atitude solidária, sua paixão pelo Reino de Deus e seu
compromisso com a vida em meio àquela Galileia de injustiças e mortes
prematuras, lhe permitem um olhar diferente, “a partir de outro lugar”.
Uma grande sensibilidade e pureza de
coração permitem a Jesus atravessar a superfície, a casca obscura daquela dura
realidade que encontra, e o capacita a olhar mais profundamente. Jesus vê a
resistência e a reserva de esperança, o reduto de dignidade não contaminado nos
seus contemporâneos, uma marca invisível da mesma fibra ou da “mesma madeira”
de seu Pai e nosso.
Jesus vê essa marca divina (pegadas) mesmo
nos rostos e corpos mais feios e deformados pela fome, doença, miséria... Em
todos, vê “filhos(as) de Deus” e não malditos de Deus. Ele conhece o Pai
intimamente e sabe de seu amor incondicional por todos, mas também sabe que há
filhos que, por sua vulnerabilidade e abandono, são os seus “preferidos”.
O próprio Jesus, sendo pobre, conhecendo o
pranto, a fome, a crítica, a perseguição... experimentou a si mesmo como
“feliz”, consolado, Filho de Deus. E Ele compartilhou sua felicidade em
excesso, para que outros pudessem também compartilhar com Ele essa vida
prazerosa.
A mesma bem-aventurança, nascida de sua
certeza de ser amado, é a que assegura aos que o seguem, que todos estão no
coração compassivo do Deus Pai-Mãe.
E isso que Jesus vê é o que ensina a seus
discípulos e todos os que o escutam. Descobre e experimenta a
paternidade-maternidade de Deus; a partir dessa experiência prega o advento do
reinado de Deus e sua justiça. Assim, redescobrimos a Bem-aventurança como a proximidade, a presença, o abraço de Deus
a todos os seus filhos(as), mas de modo privilegiado aqueles que tem a vida
ameaçada.
Resulta, então, que as bem-aventuranças são
uma provocação de Deus, interpelação e desafio para os seguidores de Jesus de
todos os tempos. Deus é a sorte e a promessa, a garantia última, mas conta com
nossa liberdade e nossa colaboração para consolar, saciar as fomes, curar,
levantar...
Somos convidados a nos re-situar, a mudar
de olhar, de lógica e de coração: em vez de acumular, compartilhar; em vez de
rir de costas para a dor do mundo, consolar; em vez de resignar-se à injustiça,
trabalhar pela paz e pela justiça. Deus continua sonhando e apostando na
humanidade... em nós.
Concluímos afirmando que as bem-aventuranças são uma alternativa de vida para os discípulos, de ontem e de hoje; como comunidade de seguidores de Jesus, animada pelo espírito das bem-aventuranças, todos se tornam testemunhas desse “mundo às avessas”.
Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 6,17.20-26
Na oração:
As bem-aventuranças são a expressão
máxima do Amor do Reino de Deus, que está vinculado com a expansão da vida e
com as relações pessoais, sendo assim princípio e sinal de felicidade. Esse é o
dom e a tarefa de todos, vivendo uma contínua gratidão diante d’Aquele que é a
Fonte de uma vida feliz.
- Você se deixa destravar
por dentro pelo impulso das bem-aventuranças, ou se mantém dentro da “zona de
conforto” de suas ideias e atitudes?
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