sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Educar a língua para bendizer e falar palavras verdadeiras

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 8º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

 “...sua boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45)

Contam que o fabulista Esopo esteve um tempo a serviço de Xantu. Este o enviou ao mercado para que comprasse o melhor que encontrasse. Esopo foi e comprou uma língua.

- Esta língua é o melhor que encontraste?

- Sim, com a língua podemos expressar amor, verdade, louvor, ânimo... A língua permite às pessoas se comunicarem, se entenderem.

Passado um tempo, o patrão tornou a enviar Esopo ao mercado e lhe pediu que, desta vez, lhe trouxesse o pior que pudesse encontrar. Esopo foi e voltou com outra língua.

- Isso foi o pior que encontraste?

- Sem dúvida. Com a língua podemos caluniar, mentir, ofender, injuriar, odiar...

De fato, com as palavras podemos fazer rir ou chorar, afundar ou levantar, confundir ou iluminar. Uma palavra pode ser uma carícia ou uma bofetada. Há palavras que doem mais que golpes e causam feridas interiores muitos difíceis de serem curadas.

Precisamos aprender a “bendizer” (bene-dicere: dizer bem), falar positivamente, evitando toda palavra desestimuladora, ofensiva, cortante, que separa ou semeia discórdia. Lamentavelmente, estamos nos acostumando com a violência verbal, sobretudo através das redes sociais. Cada vez mais, o falar cotidiano e o falar político deixam transparecer uma agressividade que habita no coração das pessoas. Das bocas, brotam com fluidez uma linguagem dura, implacável e destruidora. Palavras ofensivas e cortantes, ditas com a intenção de ridicularizar e desprezar, desqualificar e destruir.

Por isso, em nosso contexto atual, as palavras, em vez de serem pontes de comunicação e encontro, estão se transformando em muros que nos separam e nos dividem. Palavras histéricas que causam espanto, gritos ou bofetadas que buscam ferir. Palavras, uma amontoados de palavras mortas, retóricas, sem conteúdo, mera ginástica verbal, sem verdade. Ditas sem o menor respeito a si mesmo e aos outros, para confundir, para arrancar aplausos, para ganhar seguidores, para acusar o outro, sem necessidade de provas, mesmo sabendo que o outro é inocente, para escapar da própria responsabilidade.

Todo genocídio começa sempre com a desqualificação verbal do adversário, que cria as condições para o desprezo, o maltrato e inclusive o desaparecimento físico. Os colonizadores europeus chamaram os índios de selvagens e irracionais; os escravagistas qualificaram os negros de bestas; os nazistas denominavam os judeus e ciganos de ratos e porcos; os comunistas soviéticos qualificavam os dissidentes como hienas; os torturadores só veem em suas vítimas como bestas subversivas... Um esgoto verbal para semear ódio, divisão, intolerância, preconceito, impossibilidade de encontro; expressões de um coração apodrecido e contaminado pelos piores venenos.

Nunca chegaremos à paz nem à convivência provocando o desprezo e a mútua agressão. Que paz se poderá conseguir entre pessoas que se insultam e não respeitam mutuamente suas ideias diferentes? Por que temos de desprezar, ofender e considerar como inimigo a alguém que pensa de maneira diferente?

Somente aqueles que buscam, com espírito desarmado e lúcido, formas abertas de convivência, se aproxi-marão da paz. Com posturas dogmáticas e humilhantes nunca construiremos uma sociedade próspera e criativa; nunca chegaremos à paz se continuamos alimentando fanatismos e ofensas, se coagimos as pessoas com graves ameaças e insultos, se buscamos reduzir ao silêncio a quem pensa diferente.

Quando numa sociedade as pessoas têm medo de expressar o que pensa e sente, destrói-se a convivência democrática.

É preciso evangelizar nossa interioridade para dominar nossa agressividade e pronunciar palavras positivas, que animem, que entusiasmem, evitando toda palavra ofensiva ou irônica. É preciso, antes de tudo, fazer chegar a mensagem da Boa Nova até as extremidades mais profundas de nosso ser que costuma expelir veneno e palavras ácidas, fomentando conflitos, intrigas e separações.

O próprio Jesus já nos alertou sobre isso: “é do coração que saem as más intenções: homicídios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e calúnias” (Mt 15,19)

Precisamos, com urgência, recuperar uma palavra próxima e sincera que possibilite e favoreça a autêntica comunicação. Comunicar-se é abrir a própria interioridade, iluminada pelo Espírito.

A tecnologia moderna tornou mais importante o meio que a mensagem. Nem os celulares, nem os correios eletrônicos, nem os blogs, nem as redes sociais, nem as páginas web..., estão ajudando a nos comunicar-melhor. Pelo contrário, estão se tornando ferramentas de conflitos e violências, onde os covardes disparam ofensas e se escondem.

Como consequência, apesar de possuírem os mais sofisticados aparelhos de comunicação, as pessoas estão vivendo cada vez mais sozinhas, sem ninguém a quem compartilhar seus medos, suas angústias e problemas. Elas estão se tornando estranhas dentro da própria casa, repetindo rituais vazios, conversando com personagens distantes e desconhecidos, sem comunicar-se com os membros da própria família.

Igualmente instigantes são as imagens do “cisco” e da “trave” usadas por Jesus. O afã de corrigir os outros é uma constante, sobretudo no campo religioso (legalismo, moralismo...); não há nada mais perigoso na vida real que essa prática, não só porque nunca podemos estar seguros do que é melhor para o outro, mas porque tendemos a corrigir o outro a partir de nossa superioridade moral que acreditamos ter. No momento em que nos sentimos superiores, seja moral ou intelectualmente, estamos incapacitados para ajudar.

A atitude de superioridade nasce sempre da superficialidade, ou seja, está em estreita relação com nosso falso ser. A couraça que nos envolve é o único que consideramos e nos interessa. Em termos de interioridade, cremos que é suficiente com aquilo que aprendemos dos outros.

Quem se sente perfeito e olha os defeitos ou limites do outro com atitude julgadora é, para Jesus, um hipócrita, pois está tão focado em ver o “cisco” no olho do irmão que ignora a “trave” que está no seu. Hipócrita é aquele(a) que está tão ocupado em demonstrar que cumpre as normas e em velar para que sejam cumpridas que se torna incapaz de ver seus próprios erros e defeitos.

Faz-se urgente re-conectar-nos com a Fonte, onde o coração é continuamente gerado, sustentado, alimentado pelo amor de Deus que o irriga, que o restaura. O coração profundo pode estar desprezado, adormecido, fechado, mas não pode morrer.

O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração”.

O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; aqui, todo ser humano sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência...

Quando nosso coração está centrado em Deus, ou seja, quando ele se percebe que vem d’Ele, vive para Ele e para Ele retorna, tudo está em seu lugar, tudo vai bem. É “árvore boa que dá bons frutos”. As “coisas” não são obstáculos, e as pessoas muito menos. Nem sequer o nosso próprio e ambíguo “eu” é tentação. Até nossos instintos mais primários ficam integrados nessa corrente de amor recebido e amor entregue.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 6,39-45

Na oração:

Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser.

Deus libera em nós as melhores possibilidades, recursos, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria interioridade.

É do coração iluminado pela Graça que brotarão palavras redentoras, sadias e cheias de sabedoria.

- Qual é o peso que as palavras tem no seu cotidiano? É “palavreado crônico” ou comunicação inspirada?

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Na essência, somos bondade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 7º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“... e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus”


No domingo passado, Jesus proclamou as bem-aventuranças como atitude inspirada dos seus seguidores(as). Neste domingo, podemos dizer que Jesus desce ao chão da vida para explicitar a vivência das bem-aventuranças. Como vivê-las? Basta ativar as atitudes oblativas presentes no evangelho indicado para este dia.

O “modo de proceder” do seguidor(a) de Jesus está centrado no coração, ou seja, viver a “cordialidade”, com todos e com tudo. Coração cristificado! A falta de cordialidade está matando nossa sociedade, nossas famílias e comunidades; quando não vivemos a partir do coração, petrificamos nossas relações, emitimos juízos de morte sobre os outros, envenenamos toda possibilidade de encontro.

Jesus não está preocupado em fundar uma nova religião, com seus ritos, doutrinas, leis. Ele inicia um “movimento de vida” e este está centrado na maneira de viver a relação com os outros: “amai os vossos inimigos”, “fazei o bem aos que vos odeiam”, “bendizei os que vos amaldiçoam”, “rezai por aqueles que vos caluniam”. Tudo isso é expressão da bondade, a marca divina presente nas profundezas de nosso ser. A bondade é o atributo divino que nos diviniza.

“A bondade é mais profunda que o mal mais profundo” (Paul Ricoeur). Todos entendemos o que quer dizer “bondade”: uma pessoa boa, uma atitude boa, uma ação boa, uma palavra boa... Não é preciso definir a bondade, pois as definições tornam-na estreita; a bondade é concreta e expansiva.

A bondade alarga a vida. A humildade, a ternura, a compaixão, a tolerância, a confiança... são atributos que dilatam nosso interior, proporcionam ao próximo amplitude e alívio, abrem nele as fontes do bem, tornam-no livre para fazer emergir o melhor de si.

Pelo contrário, a inimizade, o ódio, a vingança, a insensibilidade, a soberba... nos atrofiam e nos afogam, asfixiam no próximo seu alento vital, o bem-estar indispensável para ser bom. Nisto consiste a verdadeira espiritualidade, independente de praticar ou não uma religião. A bondade não equivale a conformidade com cânones e leis; estas só valem se ajudam as pessoas a serem boas. Não é preciso dogmas, ritos e nem leis religiosas para ser bom. Pelo contrário, o valor de uma religião se mede por sua capacidade de alimentar a bondade, uma bondade feliz.

Insistir na bondade em um mundo tão injusto e violento dá a impressão de ser algo irresponsável. No entanto, só ela é criativa e criadora, subversiva. Que mundo global novo podemos construir sem essa bondade como base inspiradora? Não conseguiremos vencer o mal com o mal, aumentando as penas, afogando liberdades, fechando fronteiras aos refugiados e abrindo-as aos fluxos financeiros, endurecendo o controle sobre as pessoas, alimentando atitudes preconceituosas, racistas e xenófobas... Nada conseguiremos se não somos movidos e inspirados pelo princípio bondade. Falamos da bondade não de maneira abstrata, mas em ato: a bondade do olhar, a bondade do gesto, a bondade do samaritano, a bondade da fé no outro.

A bondade é sempre “relacional”. É na forma de relacionar-se com os outros, sobretudo com aqueles que menos podem corresponder, que melhor se pode detectar a presença da bondade, que não atua por interesse, mas por pura gratuidade; a bondade é o melhor que brota espontaneamente das entranhas quando não é abafada. Há uma prova muito simples para ver até onde chega a bondade de uma pessoa. “O espelho do comportamento ético não é a minha própria consciência, mas o rosto daqueles que convivem comigo. Quando este rosto expressa paz, esperança, alegria e felicidade, porque meu comportamento gera tudo isso, então é evidente que minha conduta é eticamente correta” (José Maria Castillo).

E uma bondade que não está edificada sobre a verdade, a justiça, a honradez, a sinceridade e a transparência, não é bondade, mas hipocrisia. Quando desaparece a bondade como conduta libertadora e solidária, então se congela a convivência e a desumanização revela suas consequências trágicas.

Não se prega a bondade, nem se ensina, nem se impõe. A bondade flui, contagia. Quem é bondoso(a), cria um clima e um ambiente de bondade. E isso muda a vida, a de si mesmo e a dos demais. Ser sempre bondoso(a), reconhecendo os próprios limites e as próprias contradições. Só assim poderemos viver melhor, passe ou não passe por crises. E nos sentiremos melhores.

O seguidor ou seguidora de Jesus vive sempre orientado(a) e guiado(a) pela mais desconcertante bondade. Porque, de fato, a bondade é a que mais nos assusta e nos desconcerta. Esta é a experiência que devemos buscar e expressar como atitude permanente, onde cada um(a) busca, no mais profundo de si mesmo, a bondade infinita que ali se aninha.

Só a bondade como atributo divino nos capacita para “amar o inimigo”. E o amor ao inimigo é a única garantia de que está em nós o amor e a bondade de Deus; a falta de amor para com um só dos seres humanos é a certeza de que nosso Amor (ágape) é vazio; se ainda se esconde um resquício de ódio a uma só pessoa, então é evidente que estamos no lado oposto do evangelho. Tudo o mais, sem esse amor ao inimigo, é egoísmo camuflado, e nossa vida espiritual será uma farsa. Tudo o que normalmente chamamos amor não passa de ser apenas instinto, paixão, interesse, amizade, que buscamos para potenciar o eu periférico, superficial. Neste assunto, não serve para nada enganar-nos a nós mesmos.

Da mesma forma, só a bondade cristalina nos possibilita “bendizer”, ou seja, “dizer bem” das pessoas, dos acontecimentos, do cotidiano... Fazer da vida uma benção.

É “pensar e dizer” a cada pessoa: “Que bom que você existe!” É alegrar-se por ela: pelo mistério de sua vida e a beleza de suas capacidades; é dar graças por sua existência; é desejar-lhe todo bem.

A benção está intimamente unida à gratidão. Não é possível viver uma sem a outra. E, como diz um conto oriental, a gratidão é o melhor antídoto contra o desânimo. Ativar a gratidão, vivendo a partir deste sentimento tão nobre, nos põe em caminho para assumir a vida a partir de benção.

A benção pode ser vivida também no sofrimento, como também a gratidão. Não se agradece o mal, agradece-se a vida que nos permite enfrentar o mal. Ou, em termos de fé, não se dá graças a Deus pelo mal, mas porque, em meio ao mal, Ele está ao nosso lado, como nosso melhor amigo e aliado.

Segundo Jesus, a benção deve alcançar também àqueles que nos causam danos: “Bendizei aos que vos amaldiçoam”. Isto requer viver a partir de nosso eu profundo, iluminado e cristificado.

Outro modo de proceder que tem sua fonte na bondade é o do perdão. Vivemos em um contexto social e religioso que está em clara contradição com este princípio evangélico, ou seja, há um discurso do ódio que campeia pelas redes sociais e que não tem nada a ver com a orientação libertadora, igualitária e acolhedora do outro, das pessoas diferentes. A construção do discurso do ódio está possibilitando o nascimento de uma nova religião, a da morte. Ódio que se expressa nas atitudes petrificadas contra pessoas migrantes, refugiadas, deslocadas, LGBT+, negras, pobres... Não são reconhecidos seus valores, sua cultura, sua laboriosidade e, menos ainda, sua situação de marginalização social e discriminação cultural.

E o mais escandaloso é que tal discurso está sendo propagado por pessoas que se dizem seguidoras de Jesus. Quanta contradição!


Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 6,27-38

Na oração:

Bendizer os outros passa por poder bendizer-se a si mesmo. Como poderia dar a outros o que me nego, ou sou incapaz de dar-me a mim mesmo?

Todo ser humano é digno de benção. Para além das dificuldades, reações, limitações, defeitos..., em todo ser humano há uma reserva de bondade, que o torna “admirável”.

- Em seu cotidiano prevalece a benção ou o julgamento, a gratidão ou a ingratidão, o perdão ou a condenação?

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Bem-aventuranças: a felicidade ao alcance de todos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 6º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: bem-aventurados vós...” (Lc 6,20)

 

O cristianismo sempre proclamou a grandeza das bem-aventuranças; sempre afirmou que elas são o “coração do Evangelho”, a proclamação do Reino de Deus, a síntese da fé cristã. Mas, na realidade, são poucos os que compreendem sua mensagem e, menos ainda, os que fazem dela o núcleo real de suas vidas.

Podem as bem-aventuranças acrescentar algo a quem se sente infeliz, rejeitado, frustrado...? Não seriam as bem-aventuranças uma bela teoria sem qualquer repercussão em nossas vidas?

Sempre se disse que as bem-aventuranças são a maneira original de viver o seguimento de Jesus Cristo. Porém, estaríamos equivocados se somente víssemos nelas um código moral ou um manual de conduta. As bem-aventuranças são muito mais. Elas não são leis que se impõem de fora, mas “dinamismos vitais” que brotam de nosso ser essencial; elas emanam das profundezas do nosso coração, qual água cristalina que brota das entranhas da terra.

Por um lado, elas indicam o espírito que deve animar os seguidores de Jesus. Por outro, elas nos prometem aquilo que mais ardentemente deseja o nosso coração: a felicidade.

Todos nós carregamos na mais profundo de nosso ser uma fome insaciável de “algo” que chamamos felicidade. Por isso, quando ouvimos com atenção e sensibilidade, as bem-aventuranças despertam em nós um eco especial, reacendem a esperança e sustentam uma vida mais ousada.

O fundamento de todas as bem-aventuranças está no próprio Deus, em sua Presença e em seu reinado.

Na proclamação das bem-aventuranças, Deus se coloca como defensor e garantidor da vida dos pobres, dos que estão cansados, marcados pela dor e pela violência, e que, aos olhos dos outros, são os últimos, os “perdedores”, insignificantes. Aos olhos de Deus, no entanto, essas vidas valem, são preciosas, são a "menina de seus olhos”, precisamente porque são frágeis, ameaçadas.

A felicidade, a vida ditosa, a bem-aventurança, é que Deus pôs seu olhar sobre eles e elas

Deus se oferece a si mesmo como abundância, alegria, consolo, esperança, terra prometida, rosto visível, misericordioso, Pai-Mãe. Eis aí a bem-aventurança por excelência: Deus mesmo.

Um dos fracassos mais graves da Igreja talvez seja o de não saber apresentar o Deus cristão como amigo da felicidade do ser humano. Infelizmente, parece ser consenso afirmar que o específico “do cristão” não é buscar a felicidade, mas sim as exigências das leis, das abnegações, das penitências e mortificações. Com isso, a vida de muitos cristãos torna-se um “peso” insuportável e a imagem de Deus revela-se terrível.

Na realidade, o ser humano somente se interessará por Deus se intuir que Ele pode ser fonte de felicidade.

Esse é o primeiro dado. Todos buscamos ser felizes. Não sabemos como alcançá-la, nem onde ela pode estar, mas todos a buscamos. O ser humano sempre anda em busca da felicidade. Se não a tem, a busca; se crê possuí-la, trata de conservá-la; se a perde, esforça-se para recuperá-la. E quando renuncia a uma determinada felicidade, sempre o faz buscando outra de maior profundidade.

Se aprofundarmos um pouco, percebemos que a cada manhã nos despertamos para a felicidade. Por detrás de todas as ocupações, experiências ou acontecimentos que nos esperam está o desejo de viver com mais intensidade e com mais sentido: aqui está o cerne da felicidade.

E a felicidade não vem das coisas, dos bens, das riquezas; estas até podem nos dar pequenas satisfações, mas não a felicidade.

A felicidade não é tirar água do poço, mas ser manancial de água viva; a felicidade não é aquecer o fogo, mas ser fogo que aquece. A felicidade não é escutar música, mas ser música por dentro. A felicidade não é crer no Evangelho, mas sentir o Evangelho arder por dentro.

Não é a miséria, o sofrimento, a injustiça, nem a submissão e a resignação... que as bem-aventuranças tratam. Deus não se torna feliz com a fome, a pobreza, a dor e o pranto dos seus filhos e filhas. Neste sentido, dirigindo-se à multidão ou à sua comunidade de discípulos, Jesus emite um grito, um protesto, e nos lança um desafio em nome de Deus Pai e Mãe que Ele descobre e chama “Abba”.

O que é que leva Jesus a proclamar, com alta e viva voz, “felizes” os pobres, os que choram e padecem fome, perseguição...? A partir de onde olha Jesus e o quê vê?

Jesus não vê outra realidade; vê a mesma realidade de dor e injustiça, mas faz isso a partir de outro olhar.

Sua própria interioridade, profundidade habitada, sua ousada atitude solidária, sua paixão pelo Reino de Deus e seu compromisso com a vida em meio àquela Galileia de injustiças e mortes prematuras, lhe permitem um olhar diferente, “a partir de outro lugar”.

Uma grande sensibilidade e pureza de coração permitem a Jesus atravessar a superfície, a casca obscura daquela dura realidade que encontra, e o capacita a olhar mais profundamente. Jesus vê a resistência e a reserva de esperança, o reduto de dignidade não contaminado nos seus contemporâneos, uma marca invisível da mesma fibra ou da “mesma madeira” de seu Pai e nosso.

Jesus vê essa marca divina (pegadas) mesmo nos rostos e corpos mais feios e deformados pela fome, doença, miséria... Em todos, vê “filhos(as) de Deus” e não malditos de Deus. Ele conhece o Pai intimamente e sabe de seu amor incondicional por todos, mas também sabe que há filhos que, por sua vulnerabilidade e abandono, são os seus “preferidos”.

O próprio Jesus, sendo pobre, conhecendo o pranto, a fome, a crítica, a perseguição... experimentou a si mesmo como “feliz”, consolado, Filho de Deus. E Ele compartilhou sua felicidade em excesso, para que outros pudessem também compartilhar com Ele essa vida prazerosa.

A mesma bem-aventurança, nascida de sua certeza de ser amado, é a que assegura aos que o seguem, que todos estão no coração compassivo do Deus Pai-Mãe.

E isso que Jesus vê é o que ensina a seus discípulos e todos os que o escutam. Descobre e experimenta a paternidade-maternidade de Deus; a partir dessa experiência prega o advento do reinado de Deus e sua justiça. Assim, redescobrimos a Bem-aventurança como a proximidade, a presença, o abraço de Deus a todos os seus filhos(as), mas de modo privilegiado aqueles que tem a vida ameaçada.

Resulta, então, que as bem-aventuranças são uma provocação de Deus, interpelação e desafio para os seguidores de Jesus de todos os tempos. Deus é a sorte e a promessa, a garantia última, mas conta com nossa liberdade e nossa colaboração para consolar, saciar as fomes, curar, levantar...

Somos convidados a nos re-situar, a mudar de olhar, de lógica e de coração: em vez de acumular, compartilhar; em vez de rir de costas para a dor do mundo, consolar; em vez de resignar-se à injustiça, trabalhar pela paz e pela justiça. Deus continua sonhando e apostando na humanidade... em nós.

Concluímos afirmando que as bem-aventuranças são uma alternativa de vida para os discípulos, de ontem e de hoje; como comunidade de seguidores de Jesus, animada pelo espírito das bem-aventuranças, todos se tornam testemunhas desse “mundo às avessas”.


Texto bíblico:  Evangelho segundo Lucas 6,17.20-26

Na oração:

As bem-aventuranças são a expressão máxima do Amor do Reino de Deus, que está vinculado com a expansão da vida e com as relações pessoais, sendo assim princípio e sinal de felicidade. Esse é o dom e a tarefa de todos, vivendo uma contínua gratidão diante d’Aquele que é a Fonte de uma vida feliz.

- Você se deixa destravar por dentro pelo impulso das bem-aventuranças, ou se mantém dentro da “zona de conforto” de suas ideias e atitudes?

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

"Fazei-vos pescadores do humano"

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 5º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

 “... lançai vossas redes para a pesca em águas mais profundas” (Lc 5,4)

Neste 5º. domindo do Tempo Comum a liturgia nos situa no início do cap. 5 de S. Lucas; encontramo-nos diante de um episódio com múltiplos atos: a multidão que se comprime em torno a Jesus para escutar a Palavra de Deus; o ensinamento a partir da barca; o convite a remar mar adentro e lançar as redes; a pesca surpreendente; a confissão da indignidade de Pedro; o chamado dos discípulos e o imediato seguimento.

O relato não nos diz sobre o que Jesus falava, mas o que segue nos dá a verdadeira pista para descobrir do que se trata; tal relato abre um horizonte novo na vida das pessoas e nos convida a conhecer Jesus mais profundamente e a conhecer-nos a nós mesmos; só assim o seguimento se revela mais inspirado.

No evangelho deste domingo Lucas dá um destaque ao chamado dos primeiros discípulos. Marcos e Mateus situam este chamado no início da vida pública de Jesus. Lucas o narra de uma forma mais compreensível, mais lógica, depois de apresentar Jesus como Mestre nas sinagogas, como o libertador de um endemoniado, como presença terapêutica na cura da sogra de Pedro e dos doentes com diversas enfermidades. Assim, ele nos transmite que o seguimento significa identificação com Jesus e o prolongamento de suas obras.

A primeira parte do relato nos convida a contemplar Jesus ensinando, junto ao lago de Genesaré. Diante da crescente multidão, sobe à barca de Simão e lhe pede para que a afastasse um pouco da terra. Sua presença muda o significado da barca: não é só instrumento de pesca, mas torna-se o “novo púlpito” a partir de onde Ele passa a ter uma visão mais ampla da multidão que o escuta. Pastoral nos espaços amplos ou no descampado, à margem da “sinagoga”, fora dos espaços sagrados.

Jesus se deixa conduzir pela criatividade do Espírito, que rompe os lugares estreitos e controlados. Seu “templo” é a vida, o lugar cotidiano das pessoas. Ali, o anúncio da Boa Notícia do Reino encontra muito mais ressonância no coração das pessoas, sobretudo aquelas que não tinham “lugar” nos templos.

A segunda parte do relato descreve a pesca abundante e surpreendente; os pescadores retornam ao trabalho por iniciativa de Jesus: “remai mar adentro e lançai vossas redes para a pesca” (literalmente: “voltai para a profundidade e fazei descer vossas redes para a pesca”)

A tradução oficial da CNBB diz: “Avançai mais para o fundo, e ali lançai vossas redes para a pesca”, destacando o esforço pessoal dos pescadores. Pedro e seus companheiros revelam-se ser pessoas “arriscadas”, inclusive ousados, por acreditarem em Jesus na realização de sua tarefa. Jesus lhes pede um novo esforço, os leva a novos mares, e eles assumem a atividade sem resistência.

No fundo, eram homens “aventados” (com o sopro do bom Espírito), pois foram capazes da arriscar, lançando as redes em um horário impróprio (de manhã); sabemos que os pescadores armam as redes ao cair da tarde e as recolhe na manhã do dia seguinte.

Nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”. O fato de que a pesca abundante seja precedida de um total fracasso, tem um significado existencial muito profundo. Quem nunca teve a sensação de ter trabalhado em vão durante décadas? Só teremos êxito quando nosso trabalho se situa no horizonte do sentido: para quem trabalhamos? É para o Reino? É para o bem dos outros...? Isto quer dizer que devemos agir de acordo com a atitude vital de Jesus, para além de nossas posições raquíticas e rasteiras. O que o relato nos pede é algo muito diferente: deixar Jesus Cristo entrar na barca de nossa vida.

Confiando em tua palavra, lançarei as redes”.

Simão já havia presenciado a cura de sua sogra. Sua confiança em Jesus aumenta com a quantidade de peixes que apanharam. A pesca abundante, ao meio-dia, depois do fracasso noturno, é um presente, um sinal da benção divina. Pedro não se considera digno de tal benção, mas reconhece a força de Jesus que tivera a iniciava de mover os pescadores a uma nova tentativa de pesca.

A reação dos pescadores é de assombro e reconhecimento que, talvez, não mereciam tanto. Mesmo assim, superado o primeiro impacto emocional, eles encontram um sentido novo e uma direção diferente para avançar na vida. Jesus os chama explicitamente – “eu vos farei pescadores do humano” – ou seja, “eu os convido a que me ajudeis a situar as pessoas em uma posição diferente para recuperar a verdadeira essência da vida”.

Lucas usa a expressão “dsogrón”: reanimador ou despertador de pessoas. Jesus reanima, desperta aqueles rudes pescadores com seu Espírito; tira-os de sua cotidianidade repetitiva, sem criatividade, sem sonhos maiores; abre os olhos deles e os reaviva para prolongar Seu caminho, ou seja, dedicarem-se a despertar o melhor em cada pessoa.

O apelo a lançar “redes em águas mais profundas” é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus convida aqueles pescadores, instalados numa maneira tradicional de pescar, a serem criativos na arte de lançar redes: sair da rotina, buscar o novo e o diferente nas profundezas do mar...

Isso dá medo, mas os impulsiona a se deslocarem para o desconhecido, saírem das margens conhecidas, seguras e mergulharem na aventura do próprio Jesus.

Jesus sempre se revelou como o homem integrado que, livremente, teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir as ricas possibilidades, recursos, criatividades, inspirações... Movido pelo Espírito, Ele trouxe o “novo” das profundezas do seu próprio ser: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...

Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Ele despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas. Com sua sensibilidade, Jesus foi capaz de tocar naquilo que as pessoas mais amavam (mundo das esperanças, impulsos para uma vida plena...) e o potencializou.

No caso dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior, Jesus os desafiou a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.

Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada um.

Debaixo das cinzas do cotidiano, encontra-se as brasas da paixão, dos desejos mobilizadores, dos sonhos...

Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desencadeia em todos nós. Ele nos desafia a descer no mais profundo no oceano do nosso coração e ali buscar o humano que está escondido: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência...

Para isso é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós. Alargar nossos espaços interiores, sermos mais ousados e sonhadores, romper com o “normótico” e tradicional, ativar e desvelar o que está escondido. Assim, com nossa presença humanizadora, seremos capazes de pescar o “humano” que também está presente no outro.

Sejamos pessoas que, saindo ao campo da vida, tenhamos a oportunidade de também tornar melhores os outros com quem nos encontramos!

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 5,1-11

Na oração:

Pedro e seus companheiros desejavam algo novo; no entanto, romper com a normalidade na arte de pescar estava para além de suas possibilidades. Foi necessário que Alguém de fora os incitasse ao abandono daquele modo arcaico de pescar.

Diante de Deus, considerar algumas posturas que poderão ser desenvolvidas, para eliminar o “vírus” da “normalidade doentia”:

- você tem uma curiosidade sadia diante do novo e do desconhecido?

- você age com otimismo lúcido, enfrentando as situações desconhecidas de forma auto-motivada?

- “Avançai para águas mais profundas!”. Este apelo de Jesus tem ressonâncias em sua vida ou você se deixa determinar pelo medo, permanecendo na superfície da vida?