sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Ano Novo: a esperança desperta nosso “ser peregrino”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Santa Mãe de Deus, em que se celebra também a chegada do Ano Novo e o Dia Mundial da Paz.

 “Agora chegou o momento de um novo Jubileu, em que se abre novamente, de par em par, a Porta Santa para oferecer a experiência viva do amor de Deus, que desperta no coração a esperança segura da salvação em Cristo” (Bula Papa Francisco, n. 6)

Com a Bula “Spes non confundit” (“a esperança não decepciona” – Rom 5,5), o Papa Francisco proclamou o Jubileu ordinário do ano 2025. Com o tema “Peregrinos de esperança”, a intenção do Papa é reacender a esperança em todo o povo cristão, tendo presente o contexto social e religioso marcado pela “desesperança”, carência de projetos e de sonhos, falta de sentido...

Que é o Jubileu da esperança? O texto bíblico do Levítico 25 nos ajuda a compreender o que significa “jubileu” para o povo de Israel. A cada 50 anos os hebreus ouviam o alegre som do “jobel” (corneta de chifre de carneiro) que ecoava nas montanhas e nos vales, convocando a todos (“jobil”) para celebrar um ano jubilar. Neste tempo devia-se recuperar a boa relação com Deus, com o próximo e com toda a Criação, fundada na gratuidade. Era um ano do perdão, ou seja, os pobres ficavam livres de suas dívidas, os escravos tornavam-se livres, os camponeses recuperavam suas terras... Cheios de júbilo, podiam respirar, podiam viver, podiam reacender uma nova esperança; era o jubileu.

Neste Novo Ano que se inicia, o Jubileu vem nos recordar que somos “peregrinos de esperança”; é da nossa essência humana. A vida é constituída de contínuas “travessias” em direção a um horizonte inspirador. Somos seres em trânsito, rumo ao novo. Itinerantes. Temos “fome e sede de estradas”. O próprio caminhar desvenda mais caminhos, desperta uma inspirada esperança.

O ser humano é Terra que anda” (Atahualpa Yupanqui). O caminho está dentro de nós. Sem caminho nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência.

Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade. Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.

Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor. Esta é a grande esperança que dignifia toda a humanidade.

Peregrinar” e “esperançar”: fundamentos de nossa vida; duas dimensões humanas indissoluvelmente unidas, pois uma não existe sem a outra; duas atitudes que revelam a verdadeira identidade do ser humano. Quando os pés se movem, a esperança se acende; por outro lado, ninguém caminha se não é alimentado pelo fogo da esperança; é a esperança que mobiliza nossos melhores recursos, mobiliza nossos pés e nos faz peregrinos(as). Enquanto avançamos no caminho, importa colher e acolher o que a esperança oferece. Expandimos a esperança que ilumina a mente e o coração do nosso ser caminhante.

Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da autotranscedência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos...

Ele carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz... Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele, não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...

Nesse sentido, o Jubileu vem ao encontro desse nosso desejo profundo e se apresenta como uma mediação para ajudar-nos nessa longa travessia em direção à nossa própria identidade expansiva, deixando nosso estreito território e nos enveredando pelas terras desconhecidas do nosso “eu profundo”.

Somos ainda, em grande parte, uma “terra desconhecida” para nós mesmos, e a viagem de descoberta é como a viagem imaginária a uma nova terra, estranha e bela, que desperta assombro frente aos seus encantos e à novidade de suas mil maravilhas. Perceberemos, depois, com surpresa e alegria, que a bela terra nova a que chegamos sem saber é nosso próprio país natal esquecido, subestimado e abandonado. A redescoberta de nós mesmos é a maior e sem dúvida a mais gratificante aventura de nossa vida. Redescobrindo a nós mesmos, vamos encontrar o nosso lugar na história e a nossa missão no mundo.

O Jubileu da esperança nos convida a fazer estrada”, numa viagem em busca do mundo interior, sede dos desejos, daquilo que é importante e essencial, o nosso modo de projetar o futuro, as nossas decisões...

Foi essa a experiência vivida pelos pastores, que os arrancou do seu cotidiano e os fez caminhar em direção à Gruta de Belém; nas suas vidas, muitas vezes rotineira e sem expressão, uma Criança se fez presente e a alegria tomou conta do coração deles. E, repentinamente, sentem que, na noite da desesperança, uma luz os envolve, uma voz os consola, uma esperança floresce. A plenitude chegou para eles, e quando ela chega não se esgota num instante, senão que permanece ao longo de toda a vida. Eles se puseram a caminho, na direção do lugar onde o coração e a luz os guiaram. Num despojado presépio, a luz de seus olhos se encontrou com a glória da vida e do universo, encarnada no sinal mais humilde e luminoso: um recém-nascido.

Os pastores encontraram Aquele que é a “Luz da esperança”, e tudo se transfigurou para eles, pois Deus se revela em tudo. Com eles, também nós podemos nos colocar a caminho, olhar mais para dentro de nós mesmos, sentir o sofrimento dos excluídos, contemplar a harmonia do amanhecer e do entardecer de toda a natureza vivente, e reconhecer no fundo de tudo a paz que nos sustenta e nos relança em direção a um futuro carregado de esperança.

Neste mundo da violência globalizada, da economia que gera “massa sobrante”, da política planetária submetida aos poderes financeiros, da juventude condenada ao desespero, dos equilíbrios da natureza rompidos, neste mundo que parece ter perdido o juízo e caminha desesperadamente para o suicídio, neste mundo onde só cabe a resignação ou o conformismo doentio, ainda continua sendo possível ver a Luz e experimentar, como os pastores, que ter “esperança é ser capaz de ver a luz apesar da obscuridade” (Desmond Tutu).

Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho: “Emanuel, Deus conosco”! Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade.

O Ano Novo nos abre as portas para uma vastidão de possibilidades, sonhos, desejos.... No início de cada ano civil nos é oferecida uma nova oportunidade, uma possibilidade aberta para investir o melhor de nós mesmos nos 365 dias que temos pela frente; assim, deveríamos viver o começo de cada ano, que se oferece a todos como novidade, oportunidade, novo começo...

Caminhar é preciso. O seu caminho tem coração? O Ano Novo mora dentro de você.

Textos bíblicos: Evangelho segundo Lucas 2,16-21

Na oração:

- Orar é entrar na Tenda do Senhor, que é o próprio coração: peregrinação interior, mobilidade...

- Deus “passa” e nos coloca em movimento; a oração é “fazer estrada com Deus”, caminhar na mesma direção, entrar no ritmo d’Ele, deixando-nos “ser conduzidos”.

- Para onde você sente que Deus vai lhe conduzindo? Há alguma coisa que o aprisiona?

- Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vida interior, impedindo-o(a) fazer-se peregrino(a)

- Quê eventos inesperados no caminho transformaram sua vida? O que realmente causou impacto? Era algo planejado? Em que aspectos da vida você pode “sair” dos terrenos conhecidos? Você já se arriscou alguma vez?

- Neste Novo Ano que se inicia, você vislumbra caminhos inspiradores? Quê esperanças você alimenta no seu coração? Nele há lugar para a surpresa, para o inédito?

Um inspirado Ano Jubilar a todos.

Pe. Adroaldo Palaoro sj


quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Família: ambiente privilegiado para o despertar da esperança

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da Festa da Sagrada Família.


E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52)

A liturgia deste último domingo do ano nos propõe celebrar a “Família de Nazaré” como horizonte de inspiração para nossas famílias. Uma festa estabelecida recentemente para que nós cristãos celebremos e aprofundemos aquilo que pode ser um projeto familiar entendido e vivido a partir do espírito de Jesus.

Uma família cristã procura viver uma experiência original no meio da sociedade atual, indiferente e consumista, ou seja, construir o seu lar a partir da referência da Casa de Nazaré: José, Maria e Jesus que alentam, sustentam e orientam a vida humana e são fonte inspiradora de toda família.

A festa da Sagrada Família deste ano adquire um sentido todo especial: neste dia acontece oficialmente a abertura do “Ano Jubilar da esperança”, proclamado pelo Papa Francisco através da Bula “Spes non confundit” (“a esperança não decepciona” - Rm 5,5).

Entre os cristãos defendemos com muita naturalidade o valor da família, mas nem sempre paramos para aprofundar no conteúdo concreto de um projeto familiar, entendido e vivido a partir do Evangelho.

Como seria uma família inspirada em Nazaré?

Não podemos celebrar dignamente a festa de hoje sem escutar o desafio de nossa fé: como são nossas famílias? Vivem responsavelmente e comprometidas com uma sociedade melhor e mais humana, ou fechadas exclusivamente em seus próprios interesses? Educam para a solidariedade, a busca da paz, a sensibilidade para com os mais necessitados, a compaixão..., ou ensinam a viver somente para o bem-estar insaciável, o consumismo, o máximo lucro e o esquecimento dos outros? É espaço de humanização, de relações as-dias..., ou ambiente limitador das possibilidades de seus membros?

A contemplação da vida familiar de Jesus nos convida a “olhar” nossa terra cotidiana, nossa humanidade, fragilidades, paixões, sentimentos, fracassos, imperfeições... Deus se encontra misturado com tal realidade, salvando-a. Frente a uma “visão imediatista” do cotidiano, sem meta e sem direção, a esperança cristã leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente; ela nos move a viver o cotidiano de maneira criativa.

Precisamente porque queremos ser realistas e lúcidos, nós nos aproximamos da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceitamos as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”. Quem ama e espera (esperançar) o futuro não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, mas nos inquieta, gera protesto, nos desperta da apatia e da indiferença... nos desinstala. Precisamos voltar a ter um futuro em que ancorar; um futuro que valha a pena imaginar e que impulsiona as ações de nosso presente; uma esperança que nos dilate. Sem silêncio, sem profundidade, sem a sabedoria que sabe decantar, nunca seremos arrojados e audaciosos frente o futuro.

Em Nazaré, Jesus nos ensina, o valor das coisas cotidianas quando são feitas com dedicação e carinho.

No cotidiano vivido Ele estava assumindo a condição da imensa maioria dos mortais deste mundo, dos homens e mulheres “comuns”, dos que iam trabalhar ou estavam sem emprego, dos que tinham de “ganhar a vida” porque na vida não encontravam seu lar, daqueles que eram pura estatística...

Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz. Portanto, Jesus viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.

Sintonizado com o Pai, também no ambiente familiar de Nazaré Jesus alimentava a esperança de um mundo novo, de novas relações, de um novo ambiente solidário. Também para nós, seus seguidores e seguidoras, as famílias deveriam ser o ambiente propício para despertar e alimentar grandes sonhos, ativar a esperança. Só os medíocres ou os desesperançados renunciam sonhar.

Por isso, entrar no fluxo da Família de Nazaré é viver em permanente travessia, em contínuo deslocamento.

E o apelo mobilizador que emerge é este: “fazei-vos itinerantes!”. Só quem é peregrino vive em “estado de esperança”, ou seja, torna-se “esperançado(a)” como atitude de vida

Inspirados no cotidiano da Família de Nazaré passamos a viver em contínuo êxodo do lugar estreito e dispersivo ao lugar expansivo e unificante, travessia dos lugares auto-referenciais para os amplos lugares humanizadores. Assim, a contemplação da Infância de Jesus nos pede deslocamento de nossos lugares onde controlamos; supõe travessia para espaços onde não somos o centro. Falamos de diferentes espaços: religioso, afetivo, gênero, ideias, crenças, ideologias...

Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Quando os caminhos interiores são abrasados e iluminados pela força da Família de Nazaré, começam a cair nossas falsas seguranças, suspeitas e preconceitos e a nossa vida se abre à grande novidade que o Deus surpreendente nos reserva.

Para “entrar” no cotidiano em Nazaré precisamos de olhos novos e de um coração puro.

É necessário despertar aquela “sensibilidade” escondida e abafada pelo ativismo e pelo ritmo estressante de nossa vida. Em Nazaré, somos tomados de surpresa. A nossa noite, o nosso silêncio, a nossa rotina diária... é quebrada por uma novidade absoluta. É estar “acordado”, no sentido musical de estar afinado, em sintonia com a Presença que se des-vela sempre inesperada, surpreendente, provocativa...

Portanto, a vida familiar de Jesus nos recorda sempre que as coisas mais importantes da vida requerem espera, vigilância, assombro, acolhida e que a obscuridade e a luz convivem sempre no coração da história e em nosso próprio coração. Ou seja, que tudo está misturado e o Deus que vem, se embarra, se faz carne em nossa carne, em nossas grandezas e misérias, as nossas e as de nosso mundo; é nesse ambiente que se fundamenta nossa esperança.

Esta esperança é como a impressão, os rastos, o desejo ardente que Deus colocou em nosso coração. Deus sonhou o ser humano, e o ser humano anseia por Deus. Nossa história pede um novo sentido a partir desta fé-esperança-confiança. A fé confia em Deus. A esperança confia a Deus. Tudo na vida requer preparo, e toda preparação exige empenho e mudança..., envolve uma espera. Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, busca, esperança...

Na “perda e encontro” de Jesus no Templo se condensa toda sua vida, que é buscar a Vontade do Pai.

Mas Jesus não é somente este jovem que decide “perder-se” no templo; é todo cristão que busca a Vontade de Deus; somos, todos nós, convidados a “perder-nos” na busca de Deus, de seu Reino, da missão que Ele tem reservada para nós.

Ainda que o itinerário em Nazaré pareça pobre e rotineiro, se o percorremos com fidelidade e amor, ele se insere no projeto de Deus, fica iluminado e nos impulsiona a ter amplos horizontes.

Para atravessar a Nazaré cotidiana é preciso aprender a dimensão perfeita do amor, que é doação silenciosa, é oblação alegre e livre.

Textos bíblicos: Evangelho segundo Lucas 2,41-52

Na oração:

O caminho contemplativo que temos de percorrer é longo: entrar em nossa casa, entrar em nosso lar interior requer tempo. Como dizia S. Bernardo: “não se trata de atravessar mares, de escalar o céu, de ultrapassar as nuvens, de cruzar vales ou de escalar montanhas. É para ti mesmo que deves caminhar; habitar-te e não ser casa vazia ou cheia de espíritos que não são teu espírito, tu mesmo”.

- Está dentro de ti o caminho que tens a percorrer; para o mais profundo teu; é ali onde Deus te espera e deseja encontrar-se contigo, prolongar a Encarnação.

- Sua vivência em Nazaré (lar, comunidade...) é oportunidade privilegiada para ousar, alimentar a esperança... ou simplesmente um espaço a ser “suportado”, “normótico” (normalidade doentia), cansativo...?

domingo, 22 de dezembro de 2024

Natal: a esperança renasce nas “margens”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 “Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11)

A celebração do Natal deste ano tem um sabor todo especial; podemos vivenciá-lo inspirado no “Ano Jubilar da esperança” - 2025-, cuja abertura acontecerá oficialmente no dia 29 de dezembro/2024.

Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação entra em ação: diante d’Aquele que é “Luz da esperança”, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.

A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se faz visível nas pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa Criança a presença do Inefável.

Na verdade, “entrar” na Gruta do Nascimento de Jesus é sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve apenas para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”. Por este motivo, não podemos entender a esperança como mera “expectativa” que nos afasta do presente cotidiano, na promessa de algo que nos faça sentir melhor, em outro tempo e em outro lugar.

A autêntica esperança nos enraíza no presente. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Hoje eterno” de Deus. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele.

Na contemplação do Nascimento do Menino Jesus, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o cotidiano pode parecer vazio, mas ele aponta para a eternidade; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.

Para além daquilo que possa ocorrer na superfície da história pessoal e coletiva, há uma realidade estável que nos sustenta e que podemos experimentá-la como “rocha firme” sobre a qual firmar nossos pés.

A esperança, portanto, é como esse impulso que desafia o presente imediato e finca raízes no futuro novo; é ela que nos permite escrever nossa história com mais criatividade e ousadia, nos abre à invenção de possibilidades que nos fazem viver com mais sentido, integra o passado e nos faz recomeçar, mantém a coragem de ser, nos mobiliza a passar das puras exigências e das simples necessidades para o dinamismo do dom e do desejo. Na esperança, encontramos a abertura e a amplitude de nossa vida.

Não basta esperar, é preciso uma paixão de esperança, que somente é possível se nos conduz para um horizonte plenificante, para um além da vida do dia a dia.

No Nascimento de Jesus Cristo, Deus realiza um verdadeiro casamento com a humanidade e com o planeta Terra, com toda a diversidade de vidas e com todas as suas riquezas naturais.

Contemplar o Nascimento de Jesus deve nos levar a um mais profundo reconhecimento de que a Terra e o que ela contém fornecem o material para o seu corpo, seu presépio e sua presença no mundo.

Em Jesus, Deus não só se fez Homem, senão “homem pobre e humilde”. A Palavra de Deus não pode ressoar em nós com toda a intensidade se, para nós, palavras como “gruta de animais domésticos, pastores religiosamente impuros, vida cotidiana, ...” não tem um profundo significado experiencial.

Na proximidade contemplativa dos pobres e humilhados encontramos os nomes e verbos nos quais Deus falou em Jesus e onde continua nos falando hoje. Em Jesus encarnado encontramos a pobreza e a humildade de Deus, ao lado de muitas existências pobres e humilhadas. “Fora” e “abaixo”, onde Jesus se manifestou, construímos a “composição vendo o lugar” para situar a contemplação.

Nesta contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez presente para fazer Redenção.

No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.

O “mistério do Nascimento de Jesus” nos diz que a esperança mantém sempre acesa a faísca de luz que todos carregamos dentro. É ela que nos faz cair na conta que somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga; somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, sem nunca nos consumir; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.


Jesus é a Luz da esperança que brilha no mundo e na gruta interior de cada um; seu Nascimento revela-se como uma Luz que, do interior de uma Gruta, se espalha e ilumina toda a terra, harmonizando e integrando tudo. Quem se aproxima da Luz se torna luz, reflexo da Luz da Criança de Belém. A vida inspirada pelo Nascimento de Jesus é um “caminhar na Luz”.

O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desbloqueando as ricas possibilidades de humanidade. A luz, por si mesma, é expansiva: “Vós sois a luz do mundo”.

Podemos viver com encantamento a mais simples sensação, o encontro aparentemente mais banal e sentir transparecer através dos seres e das coisas o Rosto do Deus encarnado. Na sua luz, tudo passa da morte para a vida, da ausência para a presença, do tempo para a eternidade.

Para ilustrar concretamente a força inspiradora do Mistério que se revela na Gruta em Belém, há uma fantástica contemplação de um autor que está longe de ser um Padre da Igreja: trata-se de Jean-Paul Sartre, o famoso filósofo do existencialismo e ateu confesso. Quando foi feito prisioneiro de guerra em 1940, ele escreveu, a pedido de seus companheiros de prisão, a espantosa contemplação, como sua contribuição para a festa de Natal que eles queriam celebrar juntos. O título do texto é: “Se eu fosse um pintor”. Aparecem maravilhosamente unidos o humano e o divino, o sensível e o espiritual se entrelaçam intimamente:

A Virgem está pálida e olha o filho. O que deveria ser pintado em seu rosto é uma maravilhosa ansiedade que só apareceu uma vez em uma figura humana. Pois Jesus é seu filho, carne de sua carne e fruto de suas entranhas. Ela o carregou nove meses e lhe dará o seio e seu leite se transformará no sangue de Deus.

E, em alguns momentos, a tentação é tão grande que ela esquece que ele é Deus. Ela o aperta nos braços e lhe diz: ‘meu pequeno’. Mas, em outros momentos, ela fica confusa e pensa: ‘Deus está aí’ – e ela se sente invadida por um puro medo religioso diante desse Deus mudo, dessa criança assustadora. Pois todas as mães, às vezes, ficam como que paralisadas diante desse fragmento rebelde de sua carne que é seu filho e se sentem exiladas diante dessa nova vida que se fez com a vida delas e que é habitada por pensamentos estranhos. Mas nenhum filho foi tão cruelmente nem mais rapidamente arrancado de sua mãe, pois ele é Deus e ultrapassa em tudo o que ela pode imaginar.

Mas imagino que também existam outros momentos rápidos e misteriosos nos quais ela sente que Jesus, ao mesmo tempo que é seu filho, é Deus. Ela o contempla e pensa: ‘Esse Deus é meu filho. Essa carne divina é minha carne, Ele foi feito de mim, ele tem meus olhos e a forma de sua boca é da minha. Ele parece comigo. Ele é Deus e ele parece comigo’.

E nenhuma mulher teve dessa forma seu Deus somente para ela. Um Deus pequenino que podemos abraçar e cobrir de beijos, um Deus quentinho que sorri e que respira, um Deus que podemos tocar e que está vivo. E é em um desses momentos que pintaria Maria, se fosse pintor, e tentaria reproduzir o ar de confiança suave e de timidez com a qual toca com o dedo a pele suave dessa criança-Deus cujo peso ela sente sobre os joelhos e que lhe sorri”.



Textos bíblicos: Evangelho segundo Lucas 2,1-15

Na oração:

Ditosos somos nós se podemos saborear e abraçar a paz e a esperança que brotam do coração que o Menino de Belém nos traz e oferecê-la largamente para que outros possam também receber seu dom; sem defesas, sem preços, sem temores.

A “memória agradecida” do tempo do Natal nos abre os olhos e todo o nosso ser para o grande presépio que é realidade, grávida de ricas possibilidades e novidades, de sorte que nos associemos à grande “descida” do Messias para comunicar Vida em Plenitude.

- Quê esperanças você carrega no coração?


Que a esperança, visível na Criança de Belém, se torne uma atitude permanente de vida.

Um inspirado Natal junto aos seus. - Pe. Adroaldo Palaoro sj

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Somos “seres de visitas” e “visitados(as)”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo do Tempo do Advento (Ano C).

“Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” (Lc 1,43)

 

O relato evangélico deste 4º. Domingo do Advento nos revela o verdadeiro sentido do “visitar” e ser “visitado(a)”. Logo após a “anunciação”, Maria fecha a porta de sua pequena casa em Nazaré e inicia apressadamente o caminho para as montanhas, a um povoado de Judá, onde vivia Isabel. O impulso de seu coração movia velozmente seus pés.

Vamos nos deixar conduzir por Maria e vamos com ela “de visita” à casa de Isabel.

O Sublime se digna visitar o pequeno; o “Emmanuel” se manifesta nos sinais mais simples: duas mulheres, uma casa, um encontro, uma saudação... O AT e o NT se encontram e se acolhem, fora dos espaços sagrados da religião oficial. A partir de agora, devemos encontrar Deus no cotidiano, na vida. Jesus, já desde o ventre de sua mãe, começa sua missão de levar aos outros a salvação e a alegria. Tudo quer indicar que a verdadeira salvação sempre repercutirá em benefício dos demais; quando alguém a descobre, imediatamente quer comunicá-la. A visita comunica alegria (o Espírito), também à criança que Isabel carregava em seu ventre.

Aquelas mulheres grávidas, esperançadas e cheias de fé, envolvidas no silêncio da promessa de Deus, se encontram e, no mesmo instante do abraço, a palavra se faz presente com a intensidade da compreensão, da alegria e da intimidade compartilhada.

Elas estavam felizes. Isabel gritou de júbilo e “a criança saltou de alegria em seu ventre”. E Maria proclamou exultante a oração de louvor e agradecimento ao Deus da Vida. O “Magnificat” recolhe o louvor da orante que se descobre, a partir de sua humildade, fecundada pelo seu Senhor, dentro da História da Salvação.

“Visitar” implica mover-se, para perto ou longe, sair, colocar-se em marcha, abandonar o espaço de conforto, adentrar-se na realidade da outra pessoa. Por outro lado, a pessoa visitada abre a porta de seu espaço vital e acolhe aquela que vem “de visita”.

“Visitar” exige irremediavelmente investir tempo: quem tem tempo hoje para presenteá-lo desinteressadamente? A visita começa a dar frutos desde o primeiro instante, se há uma boa predisposição. A atitude de quem visita e de quem é visitada é elemento primordial.

Maria permaneceu em casa de Isabel durante três meses e depois voltou para sua casa. Deslocou-se, investiu seu tempo e podemos imaginar o quão maravilhosos foram os três meses que elas passaram juntas, acolhendo-se mutuamente, vendo como a vida crescia dentro delas, cuidando-se, compartilhando...

No contexto social em que vivemos, cada vez mais fragmentado e individualizado, as relações vão se tornando líquidas em manifestações muito superficiais; reduzidas a um mero contato tecnológico através das redes sociais, Whatsapp, Instagram, etc., nos perguntamos se ainda tem significado o fato de visitar, para além de um contato comercial, de captação de clientes, ou do médico quando o paciente não pode se mover da cama.

Depois de empapar-nos do evangelho deste domingo é preciso nos perguntar: a que nos impulsiona o “movimento” de Maria visitando Isabel. E, se realmente, o fato de visitar tem um significado em nossa vida.

Há uma infinidade de pessoas, aí fora, esperando uma visita, um encontro de pessoa a pessoa.

Há muita necessidade de abraços e de afeto, que não se solucionam com “emojis” e fotos com preciosos textos de boas intenções no celular.

Há uma sede de presença física, de escuta, nas alegrias e nas dores de muitas pessoas; há enfermos crônicos que aguardam o consolo de uma visita gratuita e alegre que quebre a sua solidão.

Há muitos idosos que vivem sozinhos, cuja porta da casa nunca se abre para receber, porque ninguém se aproxima para ser recebido. Há muitos imigrantes que ultrapassam fronteiras, fugindo de seus lugares de origem e que precisam ser escutados, recebidos, alentados etc.

No contexto rural de nosso país ainda se conserva o bom hábito de “fazer visitas” e a casa torna-se espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda mútua...

Por outro lado, sobretudo nos grandes centros, as casas estão cercadas por uma parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada, alarmes contra invasores..., impedindo o acesso  até dos mais próximos (parentes, amigos...). Com os familiares e amigos trocam-se frias mensagens eletrônicas em vez de visitas; com os desconhecidos, contato virtual descompromissado.

Além disso, há uma doença que afeta praticamente todas as casas: nelas, há muito mais espelhos que isolam as pessoas do que janelas que se abrem para a realidade externa.

As janelas abertas permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando nos fechados em nós mesmos. Elas nos abrem à comunhão com a natureza, com os outros, com a realidade que nos cerca. Elas nos humanizam, pois servem para nos revelar quem somos para os outros e, assim, poder passar da janela à porta que se abre para que eles entrem em nossa vida. Outros rostos precisamos descobrir: rostos feridos, excluídos, carentes de proximidade e abraço.

Dentre as “obras de misericórdia”, citadas no juízo final (Mateus), duas delas fazem referência ao ato de “visitar”: visitar os enfermos e os presos.

Visitar é uma atitude humanizadora; requer um empenho pessoal, um estar atento aos detalhes da vida próxima, do entorno. Visitar não conta nas estatísticas. É uma ação muito silenciosa que não requer estruturas organizativas, nem contratuais. Sua essência está no reconhecimento e na acolhida mútua.

Este “reconhecimento” presente nas duas futuras mães – Maria e Isabel - se prolonga nos nossos “reconhecimentos cotidianos”; no reconhecimento está o “nascimento”, e viver o reconhecimento é, então, nascer a uma nova relação com o outro, numa comunhão profunda. Reconhecer-nos unidos, na diferença

Na Visitação, as duas protagonistas, também, põem em destaque três importantes ações que Jesus depois vai potencializar na sua missão: acolher, animar e acompanhar a vida.

Segundo o Cardeal Martini, Maria, mulher do discernimento, depois da Anunciação, busca a confirmação de sua missão de ser a mãe do Messias. Sabemos que é a consolação que confirma determinada opção.

Na Visitação, Maria encontra três confirmações, através de uma tríplice alegria (três consolações).

Em primeiro lugar, a alegria de João Batista no ventre da mãe; em segundo lugar, a alegria de Isabel que estava grávida em sua velhice e reconhece em Maria a ação de Deus (através de seu canto); em terceiro, a alegria da própria Maria que se expressa no Magnificat.

A saudação na Visitação se transforma em um encontro no qual as duas protagonistas ficam confirmadas em seu afeto, sua fé e admiração.  O encontro se converte em comunicação. O espírito de fecundidade que ambas, Maria e Isabel reconhecem como graça em sua carne, se tornou naquele momento graça de comunicação transparente.

E o clima festivo da Visitação se prolonga na história humana das visitas. E o primeiro “Visitador” é o próprio Deus.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 1,39-45

Na oração:

Deus não é distância e solidão. Ele é comunicação, presença, libertação, visita providente.

Ele está perto. Sua proximidade nos causa espanto: Deus possibilita cada um “entrar” em sua casa e captar em profundidade a sua realidade, perceber a raiz do seu ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições, ilusões, medos...

Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da própria casa, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...

- Como me sinto em minha casa? Preciso abri-la, arejá-la? Modificá-la? Iluminá-la? É acolhedora? Humanizadora?... Tem mais espelhos ou janelas?

 - Como está minha casa interior? Preparada para acolher o Senhor que me visita constantemente?

 - Há um “lugar sagrado” para Ele? há espaço para os outros?

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Advento: do fazer “insensato” ao ajudar inspirador

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo do Tempo do Advento (Ano C).

“As multidões perguntavam a João: ‘Que devemos fazer’”? (Lc 3,10)

A primeira palavra da liturgia deste domingo, na antífona de entrada tirada da segunda leitura, é um convite à alegria. Não se trata de uma alegria que procede do exterior, fruto de uma conquista ou de um presente; ela brota da tomada de consciência de que “Deus é Emmanuel”.

Essa alegria, no AT, está baseada na salvação que vai chegar. Hoje estamos em condições de dar um passo a mais e descobrir que a salvação já chegou, porque Deus não tem que vir de nenhuma parte; Ele já veio, está vindo e virá sempre. Nós é que precisamos ativar uma atitude de atenção e vigilância para entrar em sintonia com esta Presença, sempre nova e surpreendente.

Fazendo de todos nós sua morada, Deus nos comunicou tudo o que Ele mesmo é.  Não devemos estar alegres “porque Deus está próximo”, mas porque Deus já está em nós.

A alegria é como a água de uma fonte: nós só a vemos quando aparece na superfície. Mas antes, ela percorreu um longo caminho que ninguém pode conhecer, através das entranhas da terra. A alegria não é um objetivo a conquistar; é, antes de tudo, uma consequência de um estado de ânimo que se alcança depois de um processo. Esse processo começa pela experiência de “sentir-se habitado”, ou seja, tomada de consciência de nosso verdadeiro ser. Se descobrimos que Deus habita nosso ser, encontraremos a absoluta felicidade dentro de nós.

No evangelho deste domingo, surge uma repetida pergunta: “Que devemos fazer?” As respostas a estas perguntas manifestam muito bem a diferença entre a pregação de Jesus e a de João Batista.

Segundo a mentalidade do AT, Deus estava mais preocupado com o cumprimento de sua vontade expressa na Lei. O Batista segue nessa direção, porque acreditava que a salvação que esperavam de Deus dependia da conduta de cada um. Esta era também a atitude dos fariseus; daí sua escrupulosidade e rigor no cumprimento de todas as leis e normas.

A partir da perspectiva da religiosidade judaica, o Batista pede àqueles que o escutam, uma determinada conduta moral para escapar do castigo iminente. Essa conduta não se refere ao cumprimento de normas legais, como faziam os fariseus, mas manifesta uma preocupação para com os outros. Todas as propostas apresentadas por João Batista estão encaminhadas a melhorar as relações entre as pessoas, a tornar essas relações mais humanas, superando todo egoísmo.

No entanto, o evangelho de Jesus propõe uma motivação mais profunda. O objetivo não é escapar da ira de Deus, mas prolongar a atitude do próprio Jesus, numa vida de entrega aos demais. Ele nos convida a descobrir o amor, que é Deus, dentro de nós mesmos e, como consequência, dedicar-nos a agir conforme às inspirações dessa presença. Para o Batista, a aceitação de Deus depende do que nós fazemos.

O Evangelho, por sua vez, nos diz que a sintonia com essa Presença divina é ponto de partida, e não a meta. Continuar esperando a salvação de Deus é a prova de que não descobrimos ainda essa presença dentro de nós, e continuamos desejando que chegue de fora. S. Agostinho expressou isso com clareza: “Ame e faça o que quiseres”. Este é o melhor resumo da mensagem de Jesus.

A certeza de ter Deus presente em nós não depende de nossas ações ou omissões. É anterior à nossa própria existência. Não ter isto claro, pode nos fazer cair no “ativismo religioso”, onde o centro passa a ser o nosso falso eu que realiza ações em favor dos outros; caímos no perfeccionismo das ações morais, onde transparece o nosso ego inflado, que espera recompensas tanto da parte de Deus como dos outros (elogios, admiração...). Com esta atitude estamos projetando sobre Deus nossa maneira de proceder e nos afastamos dos ensinamentos do evangelho que nos diz exatamente o contrário.

A salvação não está em satisfazer os desejos de nosso falso eu.

Nem sequer a resposta de João Batista pode nos tranquilizar, pois na realização de uma série de obras pode entrar em cena o nosso ego que busca projeção. Não se trata de “fazer” ou deixar de fazer, mas, movido pela Presença que nos plenifica, fortalecer uma atitude oblativa que nos leve a responder, em cada momento, às necessidades concretas do outro que clama por ajuda. O decisivo é que, a partir do centro divinizado de nosso ser, flua humanidade em todas as direções, na mais pura gratuidade.

A experiência de sentir-nos habitados pelo Deus de Amor desperta em nós o sentimento humano mais nobre que é a gratidão; e este sentimento se expressa numa atitude constante de abertura e serviço aos demais.

Na vivência cristã, sempre corremos o risco de transformar o “fazer” em simples ativismo, ou seja, uma ação desprovida de sentido e de direção. De fato, vivemos mergulhados numa cultura de resultados, distraídos e perdidos na variedade de luzes, cores, sensações fugazes, vivências superficiais... A existência inteira faz-se maquinal e rotineira. Caímos numa pura “fazeção”, ou seja, fazer por fazer, fazer para afirmar-nos, fazer para brilhar, fazer para produzir, fazer para nos impor...

Falta uma referência e um horizonte que unifique tudo, que possibilite reorientar e canalizar nossas potencialidades, impulsos, inspirações, que desperte nossa paixão e dê novo sentido à nossa missão.

Para integrar bem os diversos dinamismos da vida, é decisivo centrar no horizonte que inspira nossa vida e nos motiva a fazer o que fazemos e como fazemos. E o horizonte é “ajudar”.

 “Ajudar” é, para a espiritualidade do Advento, o horizonte e a chave de integração de nossa vida.

“Ajudar”, como atitude pessoal e comunitária, é o equivalente evangélico “servir”. Um “ajudar” (servir) que brota da experiência de ser “ajudado” (servido) por um Deus servidor.

No “ajudar” dão-se as mãos o amor a Deus e o amor à pessoa humana, a experiência interior e a ação cotidiana, a ação e a contemplação; nele se expressa a profundidade e o enraizamento da pessoa nas exigências cotidianas da vida; nele convergem a busca de Deus e o compromisso com o mundo.

“Ajudar” é oposto do ativismo, que é um fazer “insensato”, sem sentido e sem direção. “Ajudar” é fazer com inspiração, com horizonte de sentido; é perguntar-se continuamente: “por que faço isso? para quem faço?... “Em que posso ajudar?” (D. Luciano M. de Almeida)

“Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor. Tal atitude requer presença gratuita, desinteressada, centrada no bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo-a crescer em liberdade.

“Ajudar” implica possibilitar ao outro ser protagonista de seu processo, devolver a ele a autoria, a autonomia... No “fazer” o centro somos nós, no “ajudar” é o outro; no “fazer” medimos a quantidade, no “ajudar”, a qualidade de nossa ação. No “ajudar” há parceria (mão dupla): na medida em que ajudamos, somos ajudados; na ajuda há um enriquecimento e crescimento mútuo.

“Ajudar” não é substituir os outros naquilo que eles podem e tem de fazer, ou dizendo o que tem de ser feito, mas colocá-los em condição para que eles mesmos se experimentem ajudados, descubram o Deus que ajuda a todos e sintam o impulso para ajudar como ideal de suas vidas.

“Ajudar” os outros, inspirados e animados pelo Espírito de Jesus, é o que torna “espiritual” nossos atos, nossos pensamentos e orações, nossos trabalhos, nossa vida inteira.

“Ajudar” torna “espiritual” nossa vida, toda nossa vida.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 3,10-18

Na oração:  

- Não pergunte a ninguém o que você tem de fazer. Descubra seu verdadeiro ser e encontrará seu modo original de proceder na relação com os outros. Sua meta deve ser a de ativar e expandir o que você já é na sua essência.

Só poderá expandir seu verdadeiro ser se suas relações com os outros são cada dia mais humanas, sem nenhum resquício egóico.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Maria é “Imaculada” porque “mestiçou” Deus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria.

“O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35)

O que estamos celebrando nesta festa de Maria Imaculada nos indica o ponto de partida de nossa trajetória que, ao mesmo tempo, é também o ponto de chegada. Se descobrimos em cada um de nós o que estamos celebrando em Maria, nos despertamos para o sentido profundo desta festa.

Em Maria descobrimos a verdadeira vocação de todo ser humano. Ser como Maria não é só a meta da vida cristã, senão que partimos da mesma realidade da qual ela partiu.

O que dizemos de Maria é o que também devemos descobrir em cada um de nós

S. Paulo nos diz: “Deus nos elegeu antes da criação do mundo, em Cristo Jesus para que fôssemos santos e imaculados, diante d’Ele no amor” (Ef 1,4). Nada parecido se diz de Maria em todo o NT e, no entanto, a chamamos “Imaculada”.

O decisivo é que em Maria e em todo ser humano, há um núcleo intocável que nada nem ninguém poderá manchar. O que há de divino em nós será sempre imaculado. Tomar consciência desta realidade é o começo de uma nova maneira de compreender a nós mesmos e de compreender os outros.

Podemos dizer que Maria é Imaculada porque viveu essa realidade de Deus nela. Não devemos nos conformar em contemplar Maria para permanecermos extasiados diante de tanta beleza. Se descobrimos nela toda essa sublime beleza, é porque podemos imaginá-la graças à revelação do que Deus “é” em nós.

Maria não é a exceção, mas a norma. O dogma da Imaculada Conceição nos motiva a fazer outra leitura, carregada de conteúdo e de sentido: em Maria se afirma o que é válido para todos nós. Na nossa essência somos inocência, porque somos Vida. Mesmo na fragilidade, naquilo que nos fere, naquilo que sabemos e não sabemos, somos chamados a deixar que a vida passe, que a vida entre, que a vida nos fale.

Tudo o que temos de Deus, já o temos desde sempre. Nossa plenitude em Deus é de nascimento, é nossa denominação de origem, não uma elaboração acrescentada através de nossa existência. O que há em nós de divino, não é consequência de um esforço pessoal, mas a causa de tudo o que podemos chegar a ser. Daí que, quando um cristão celebra a Maria Imaculada, nela se vê refletido, junto com todos os seres.

Por isso, dizemos que Maria é Imaculada por nós, para nosso próprio bem e salvação, a fim de que possamos superar o que em nós é “maculado” (ego inflado e prepotente) e deixemos de manifestar esta “mácula” no conflito e no ódio frente aos outros. Assim, ela nos revela, com sua própria abertura ao divino, que é possível viver em liberdade, na transparência e pureza, acolhendo os outros, a serviço da comunhão e da vida.

No relato da Anunciação, mistério indicado para a festa deste dia, a primeira coisa que Maria nos ensina é a hospitalidade para com a Vida. Maria é Imaculada por ser sinal de amor.

Uma mulher “imaculada” fechada em seu isolamento, em meio aos dramas da humanidade, que vive só para si, centrada em um Deus intimista, enquanto o mundo continua padecendo, não seria o que o dogma católico confessa ao chamar Maria de “Imaculada”, ou seja, cheia de Deus, amiga de Deus, fazendo-se amiga de todas as pessoas. Ela expressou sua vida a serviço de todos; é pessoa para a liberdade e redenção de todos.

Maria vive numa “porosidade”, ou seja, deixa-se visitar, é hospitaleira, acolhe o “novo”. Mantém no coração e na vida as portas abertas. Um anjo só nos visita quando temos o coração desarmado, quando estamos disponíveis para acolher o inesperado, para receber a fantástica e inédita ação direta de Deus.

Deus continua suscitando pessoas parecidas a Maria através das quais seu Projeto continua entrando em nosso mundo, sobretudo nas situações mais desfavorecidas de nossa humanidade. Podemos fazer memória de nomes de pessoas conhecidas em muitos casos; mas, por que não pensar que também nós poderíamos ser o prolongamento da generosidade de Maria?

A doutrina cristã afirma que na Encarnação de Jesus Cristo a natureza humana foi assumida, não aniquilada, não violentada e nem usada como roupagem para sua visibilidade. Se a natureza humana, na sua integridade, foi assumida pelo Verbo da Vida, é porque ela, em sua naturalidade, é marcada pela bondade.

Eis porque a Encarnação de Deus em Jesus Cristo outra coisa não é senão um caso singular do amor de Deus para com a humanidade e da inquieta busca humana pelo infinito. Como liberdades que se amam, Deus é o mais secreto íntimo do ser humano, assim como cada ser humano é transparência do Deus mesmo. Por isso, “pensar pouco do ser humano é pensar pouco de Deus”.

Maria revela o “humano” em sua própria realidade; ela é o que de mais nobre a humanidade poderia oferecer a Deus. A pessoa de Maria é a expressão máxima da humanidade; nela, a humanidade chega à sua plenitude; nela, se manifesta o excesso do humano. Por isso, em cada ser humano se revela algo de Maria, pois ela realizou todas as possibilidades da humanidade. Ela deixou “Deus ser Deus” no excesso de sua humanidade. Nela Deus se humaniza, se “mestiça”, se “mistura” com o humano.

Esta é a coluna mestra do dogma da Imaculada: se Deus se fez Homem é porque há em Deus algo de humano e se o ser homem pode ser assumido por Deus, em sua Encarnação, é porque há, no ser humano, uma capacidade para Deus.

O cristianismo, em sua essência, nos assegura que a Encarnação não é apenas a máxima revelação do Deus que se “humaniza”, mas igualmente o des-velamento do ser humano, divinizando-o.

Assim, Maria é, no mundo e sobre a terra, a resposta às nossas buscas: “dentro da condição humana, já estamos em Deus, quando somos homens e mulheres ... verdadeiramente”.

Maria, em sua maternidade “mestiçou Deus”: assim afirma o Papa Francisco; no seu ventre acontece a fusão do divino com o humano; o seu ventre “misturou” o divino e o humano.

“E o terceiro adjetivo que eu lhe diria, fitando-a, é que Ela quis ser mestiça, mestiçou-se. E não só com Juan Dieguito, mas também com o povo. Ela mestiçou-se para ser a Mãe de todos, mestiçou-se com a humanidade. Por quê? Porque ela mestiçou Deus. E este é o grande mistério: Maria, Mãe, mestiçou Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, no seu Filho” (Homilia sobre N. Senhora de Guadalupe)

Aquele que é a Vida, e por quem foram feitas todas as coisas, pede o consentimento da virgem de Nazaré para assumir a vida humana no seu seio virginal. Para que sejam cumpridas, para que o Salvador entre na nossa história, só falta o Sim de Maria. Deus nunca força a liberdade. Nem mesmo nos momentos em que está em jogo o futuro da humanidade.

Primeiro uma pergunta necessária e um esclarecimento rápido. E depois o “sim”.

Nada de condições, nada de garantias, nada de averiguações. Venha o que vier. Abertura total e entrega definitiva. Será dor e será alegria, será morte e será ressurreição, será esperar e será acolher.

Tudo virá a seu tempo e à sua maneira, porque a porta está aberta, o coração está entregue e os céus esperam. Essa é a resposta que Deus aprecia, é a disposição que espera para lançar seus projetos.

A Deus não agrada condições, dúvidas, demoras, regateios...

Espera um “sim” claro, definitivo e permanente. Então Ele entra em ação com toda a força de sua Graça, o poder de sua glória e os planos de sua eternidade. E consuma-se a Redenção. O anjo permanece na presença de Maria até que ela diz a última palavra. Seu consentimento encerra o diálogo. O anjo retira-se em silêncio. É a hora da ação silenciosa de Deus. Assim, para os antigos Padres da Igreja, Maria é o sim original. E este sim é mais profundo que todos os nossos nãos. Um “sim” claro e sonoro ao chamado que ela sentiu com força e aceitou com entusiasmo. Um sim” que ressoa, enche a pequena casa em Nazaré e tem alcance universal. Não houve programa maior nem empreendimento mais atrevido que o proposto em breves palavras pelo anjo e a resposta ousada da Virgem.

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 1,26-38

Na oração:

O Deus que nos criou sem pedir o nosso consentimento, nunca nos impõe missão alguma sem o nosso sim. Ele suscita nossos desejos, atrai, convida, mas respeita sempre nossa liberdade. Nossos “sins” serão tanto mais livres e fecundos, quanto mais unidos estivermos com Deus, quanto mais confiarmos na sua graça; mas eles têm de ser assumidos por nós.

- Fazer memória dos “sins” oblativos que deram um novo sentido à sua vida.