sábado, 29 de março de 2025

Misericórdia, atributo divino que nos humaniza - 4º Domingo da Quaresma

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo da Quaresma (2025).

 “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15,2)


Com seu talento artístico, Lucas nos relata a Parábola do Pai Misericordioso, contada por Jesus, de tal forma que, ao longo da história, as pessoas sempre se sentiram tocadas e provocadas por ela.

A parábola é a expressão humana da misericórdia divina. A ênfase é menor no filho do que no Pai. Na verdade, Jesus “pinta” o rosto do seu Pai e nosso Pai. Todos os detalhes da figura do Pai-Mãe – seus gestos afetivos de acolhida – falam do amor de Deus pela humanidade, amor que existiu desde sempre e continua.

Jesus de Nazaré foi um homem, talvez o único, que viveu e comunicou uma experiência sadia de Deus, sem desfigurá-la com os medos, ambições e fantasmas que, normalmente, as diferentes religiões projetam sobre a divindade.

Esta é a melhor imagem de Deus: um pai comovido até suas entranhas, acolhendo os seus filhos perdidos e suplicando a todos que se acolham mutuamente com o mesmo carinho e afeto; um pai compassivo que busca conduzir a história da humanidade até a festa final onde se possa celebrar a vida e a libertação de tudo o que escraviza e degrada o ser humano.

Esta experiência da compaixão de Deus foi o ponto de partida de toda a atuação revolucionária de Jesus que o levou a introduzir na história da humanidade um novo princípio de atuação: a compaixão.

(Nota: as traduções bíblicas empregam indistintamente os termos “misericórdia” e “compaixão”. Melhor falar de compaixão, pois sugere maior proximidade (padecer com aquele que sofre). “Ter misericórdia” pode fazer pensar em uma relação que se estabelece com quem está mais abaixo).

É a compaixão o princípio que deve inspirar a conduta humana. Ela não é, para Jesus, uma virtude a mais, mas a única maneira de se assemelhar a Deus, o único modo de olhar o mundo como Deus o olha, a única maneira de sentir as pessoas como Deus as sente, a única forma de reagir diante do ser humano como Deus reage. Fomos criados à imagem e semelhança do Deus compassivo.

Sem o horizonte inspirador da compaixão divina o ser humano deixa aflorar o que é mais destruidor: ódio, intolerância, preconceito...

Na parábola, Jesus descreve duas atitudes que todos nós conhecemos: os dois filhos representam os dois polos que também encontramos em nós mesmos. Um dos polos é nosso desejo de escapar dos limites impostos por regras e leis: o filho mais jovem quer fugir das limitações familiares e simplesmente conhecer a vida com todos seus altos e baixos; e há o outro polo, aquele que se aborrece com a misericórdia do pai.

O filho mais jovem não quer viver sua vida conforme as expectativas dos outros, quer viver sua própria vida e desfrutá-la ao máximo. Esse anseio por vitalidade, por uma vida no aqui e agora, de não querer se preocupar com o futuro, é típico dos nossos tempos.

Mas, essa atitude leva o filho a perder-se a si mesmo. Ele vive desenfreadamente: perde toda estrutura e estabilidade, desperdiça sua riqueza, desgastando-se com coisas inúteis, que logo o esvaziam e passa a sentir-se cada vez pior. Ele, que sempre quis estar livre, agora precisa submeter-se à dependência de um estranho para sobreviver; no final, encontra-se num chiqueiro entre os porcos, que, para os judeus, era a pior degradação que um ser humano poderia cair.

O “filho mais novo” parte para o exterior, “para uma terra longínqua”. Pensa resolver seus problemas partindo para longe de seu coração profundo, para longe de si mesmo. Deixa-se arrastar por um impulso desordenado, que o domina por inteiro. Perdeu toda a liberdade verdadeira.

Mas, parte também para longe de sua fonte: o Pai. Passa a decidir sua vida sem referência alguma ao lar, às relações filiais e fraternas; não pode mais se alimentar com o pão da sua casa, mas com a comida que os porcos comiam. É assim que vai viver a fome interior e exterior.

A conversão do filho mais novo só pode ser vivida na volta do exílio, no retorno ao centro.

O caminho de volta é expresso em poucas palavras, de maneira extremamente densa, fulgurante: “e, caindo em si, disse...” Ele faz o caminho em sentido inverso: volta ao seu coração, à sua fonte.

Ele próprio é quem descobre o seu caos, sua desordem. Através de um doloroso e, provavelmente, longo caminho, sai da ilusão sobre si mesmo e descobre sua verdade. Retoma contato com o seu coração profundo. No silêncio, escuta, deixa-se ensinar e, então, cavando fundo em si, como se cava em um campo, descobre o tesouro, a fonte de sua existência, a presença do Pai. Embora não o conhecesse totalmente, encontra um Pai justo, que nunca o expulsará. Pela primeira vez, toma conhecimento de um amor seguro, estável, sólido que, ao mesmo tempo, é verdadeiro.

Nesse momento, iluminado a partir do interior, pode dizer: “Pequei”. E o faz de maneira honesta, sem reserva, sem se justificar. Não esconde mais a sua verdade interior. Agora, o seu olhar modificou-se: pode assumir aquilo que é, aquilo que viveu.

A misericórdia do pai é uma misericórdia paciente, que sabe esperar; e é, ao mesmo tempo, uma misericórdia inquieta, apressada, que corre ao encontro do filho para devolver-lhe a filiação perdida. Por isso ordena aos servos que sejam eliminados imediatamente todos os sinais da degradação e da escravidão do filho e todos os sinais dos sofrimentos e das humilhações que sofreu.

O pai veste o filho com todos os sinais de liberdade; a liberdade que fora buscada longe de casa, agora é encontrada no calor do seu próprio lar.

Por outro lado, “filho mais velho” exprime vivamente a sua revolta: “jamais transgredi um só dos teus mandamentos”. O problema fundamental dele é acreditar-se sem pecado. Crê-se justo e, consequentemente, possui um coração de justiceiro. Ele está cheio de si mesmo e se engana.

Jamais encontrou o amor, provavelmente porque foi incapaz de deixar-se questionar ou de se converter. Busca, antes de tudo, um legalismo e um perfeccionismo de ordem superficial e ilusória. Assim, fica de fora, sozinho e sem alegria, longe do relacionamento e da festa.

O Pai faz a festa para o filho perdido e reencontrado. Mas ama também aquele que ficou em casa, ao seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria do reencontro. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado.

O Pai vai também procurar aqueles que tem um coração de pedra, egoístas e invejosos. O surpreendente não está só no fato do pai correr ao encontro do filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”.

O pai não repreende e nem acusa seu primogênito; ele o convida para a alegria – e esse convite se estende a nós, que também temos esse lado do irmão mais velho. A parábola não diz se o irmão mais velho aceitou o convite.

Deus não nos força a nada. Ele nos convida: se aceitarmos o desafio da parábola e a ouvirmos com o coração, ocorrerá uma ampliação do nosso espaço interior confinado, o nosso coração se abrirá. Então poderemos perdoar a nós mesmos e aos outros; o rosto divino da misericórdia se resplandecerá em nós. Seremos presenças misericordiosas.


Texto bíblico
: Evangelho segundo Lucas 15,1-3.11-32

Na oração:

Todos nós deixamos transparecer as marcas de cada um dos personagens da parábola.

- Considerar, diante de Deus, quando você vive atitudes do filho mais novo, do mais velho e do pai.


quinta-feira, 20 de março de 2025

Evangelizar nossas raízes interiores - 3º Domingo da Quaresma

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo da Quaresma (2025).

Quaresma: tempo privilegiado para evangelizar nossas raízes interiores

Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto” (Lc 13,8)


E Deus viu que tudo era muito bom”: este é lema da Campanha da Fraternidade deste ano que nos provoca e amplia nossa visão em direção à grandeza da Criação, Casa Comum de todos.

A preocupação pela vivência de uma “Ecologia integral” não é opcional para quem deseja viver o seguimento de Jesus; é missão de todos nós.

Ser protetores da obra de Deus é parte essencial de uma existência virtuosa, não consiste em algo opcional nem em um aspecto secundário da experiência cristã” (Laudato si’, n. 217).

O decisivo é que seja uma “ecologia com Espírito”, motivada por Ele, alentada e inspirada por Ele e seu projeto de novos céus e nova terra.

Na experiência espiritual da Quaresma, nos é pedido que, junto com Jesus, mergulhemos os pés no “chão da vida”, como as raízes na obscuridade, na vivência do deserto. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio.

Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão da vida e viver em comunhão com a comunidade das criaturas. A hora é de somar em prol da vida e no cuidado de todos os seres da Terra.

Avançamos no percurso quaresmal. A parábola da figueira, indicada para este terceiro domingo, não visa dar “lição de moral”; ela nos oferece imagens que devem se projetar sobre nossa interioridade, transforman-do assim todas as imagens negativas que nos impedem viver com mais leveza.

Essas imagens negativas muitas vezes se expressam com palavras como estas: “nunca serei nada”; “sou um caso perdido”; “há algo de errado comigo”; “todos esses esforços não vão dar em nada”; “não consigo sair dessa situação e progredir”.

Cada um de nós conhece esses sentimentos de decepção e nos perguntamos: Qual o sentido da nossa vida? A quem ela serve? Será que não estamos ocupando o lugar de outra pessoa?

Duvidamos do nosso direito de ser. Algumas pessoas então, chegam à amarga conclusão: seria melhor se nem existisse, sou apenas um peso na vida dos outros.

O processo de conversão, a qual Jesus se refere, é um caminho existencial, uma viagem ao centro da Fonte que nos nutre e nos lança à vida, onde está toda nossa potencialidade como reflexo do ato criador de Deus em nossas entranhas. Portanto, a “con-versão” é ir descobrindo uma nova consciência até conectar com nossa “versão” mais original, nossa identidade; um caminho que requer paciência, lucidez, confiança, desejar vincular-nos com o dinamismo profundo que nos impulsiona a sermos mais humanos. Não é um caminho de busca da salvação-plenitude como recompensa, mas da encarnação dessa salvação-plenitude que já faz parte da nossa essência e que requer conectar-nos com o tempo de Deus, tempo de paciência e confiança no “melhor” do ser humano.

Não temos de esperar nada de fora; Deus já nos deu tudo; temos reservas de recursos nobres escondidos em nosso interior. A tarefa fundamental está em descobrir isso de nós mesmos. É um processo de despertar, de iluminação, de tomada de consciência de quem somos.

Converter-nos” é centrar-nos, retornando à essência de nossa fonte interior; ao mesmo tempo é “des-cen-trar-nos”, sairmos de nós mesmos, deslocarmos em direção à realidade que nos cerca, transformando-a.

Se não descobrimos que nosso caminho nos leva aos “aforas” da vida, não estaremos motivados para nenhuma mudança em nossa vida.

Há, em todos nós, ricas potencialidades, recursos originais, dons inspiradores..., que nem suspeitamos e que ainda não encontraram maneiras de se expressarem. Mas, o Jardineiro divino nos conhece e, na sua paciência, sempre nos oferece novas oportunidades para que a nossa nobreza interior possa se fazer visível, através de uma vida comprometida e solidária. Este é o sentido da verdadeira conversão; esta não se reduz a alguns atos externos bons, jejuns, mortificações vazias, ritos expiatórios estéreis, penitências egóicas nas madruga-das da vida..., para mostrar nossa condição pecadora; tais posturas têm muito mais a ver com uma certa soberba escondida que utiliza a própria fragilidade para revelar um falso “deus” que tem prazer com o sofrimento e as mortificações humanas.

E assim vamos nos afundando na lama de uma vida raquítica e distorcida, carregada de culpas e que nos deixa na mesma posição durante anos e anos. Deus não “comercializa” com ritos, práticas religiosas piegas, devocionismos alienantes, que nos distanciam da realidade e do compromisso solidário com os outros. Esta sim que é a esterilidade da figueira, ou seja, toda uma vida plantada no mesmo lugar e inútil para a vinha.

Somos “figueiras” chamadas a dar fruto, um fruto em formato de respeito à dignidade, à liberdade e valor de cada ser humano, de uma nova visão sobre cada rincão do planeta Terra que hoje necessita muita solidariedade, generosidade e compromisso. Neste cenário, alimentamos uma presença inspiradora frente às vítimas da atrocidade humana que nos envolve: ódio, intolerância, violência, preconceito, insensibilidade social e ecológica...

Identificados com Jesus, somos chamados a viver com mais “radicalidade”; e “radicalidade” significa ser suportado, carregado e alimentado por uma raiz que está plantada fundo no chão da vida. É como uma árvore que se apoia, se sustenta e se alimenta das suas raízes. Radical é aquele que vive perto da raiz, que se alimenta da raiz, que toma as coisas pela raiz, pelo fundamento.

Quando dizemos que os homens e as mulheres espirituais costumam ser radicais, queremos mencionar, em primeiro lugar, esta proximidade junto à terra e ao húmus, esse enraizamento profundo que alimenta a vida, que sustenta o tronco e a copa da árvore em todo e qualquer tempo, dando-lhe firmeza e consistência.

A dificuldade para entender o que é radicalidade vem da postura fundamental da nossa cultura pós-moderna que é muito pouco radical e profunda. Nós mal fincamos raízes em algo ou em algum lugar. Em geral, vivemos na superfície, no cultivo da aparência, na distração fundamental.

Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto”. A parábola da figueira nos revela a aridez e a infertilidade da vida quando nos deixamos levar pela inércia dos acontecimentos, das situações, por sentir a segurança em fazer sempre o mesmo, por não enfrentar o medo que supõe entrar em nossa realidade interior para “cavar e adubar” nossa terra pessoal, para tocar as raízes onde está a verdadeira essência de nossa seiva vital.

Conversão tem três componentes que podem nos ajudar numa interpretação mais vital desta palavra: “con” (junto, completamente), “versus” (dar volta, retorno), “tion” (ação e efeito). Estes três componentes nos falam, sem dúvida, de um movimento que conduz muito mais a uma transformação que pode significar um profundo retorno à nossa interioridade do que simples mudanças de atos. Seria uma busca completa de nossa “versão” original e deixar de viver usando máscaras que nos afastam de nossa essência e de nossa verdade profunda.

Conversão não é questão de evitar “atos maus” pontuais que só nos enganam e tranquilizam nossa consciência; trata-se, sobretudo, de encontrar um espaço interior de conexão com nossa origem divina e que toda nossa vida gire em torno a isso.


Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 13,1-9

Na oração:

Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para o mais profundo de nós mesmos, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontramos o nosso “eu original” e a verdadeira paz.

É preciso “descer” até às raízes de nossa existência para descobrir uma nova “seiva” para nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.

Trata-se de despertar, de escavar nosso chão interior, alargar nosso coração e garimpar o “veio de ouro” que está disponível no eu mais profundo.

- O que alimenta as raízes de sua existência? Onde você busca o adubo que se transformará em seiva vital?

- Que frutos de verdade, de compaixão, de santidade, de paz... estão surgindo do interior de seu coração?

terça-feira, 18 de março de 2025

JOSÉ, o Homem do Discernimento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ como sugestão para rezar o Evangelho da Liturgia da Solenidade de São José, Esposo da Bem-Aventurada Virgem Maria, Padroeiro da Igreja Universal.

De forma análoga a quanto fez Deus com Maria, manifestando-Lhe o seu plano de salvação, também revelou a José os seus desígnios por meio de sonhos, que na Bíblia, como em todos os povos antigos, eram considerados um dos meios pelos quais Deus manifesta a sua vontade”

(Papa Francisco – Patris Corde)

Os relatos “da infância de Jesus” (Evangelhos segundo Mateus e Lucas), não são crônicas de acontecimentos, não são “história” no sentido que hoje damos à palavra. São “teologia narrativa”.

Os relatos bíblicos nos revelam que Deus dirige a história. Para isso se serve de pessoas eleitas. Cada vez que há um acontecimento importante na história da salvação, ali aparece um homem ou uma mulher como mediadores da obra de Deus ou transmissores de sua vontade.

O acontecimento mais importante da história da salvação é o Nascimento do Filho de Deus. Para “fazer-se homem”, Deus precisava de uma família. O nome de José está profundamente ligado ao mistério de Jesus. E se o anjo é um sinal de que Deus se faz presente na vida de uma pessoa para comunicar-lhe algum de seus desígnios, Deus mesmo se fez presente a José, por meio de seu anjo. Segundo o evangelho de Mateus, José é a pessoa a quem primeiro lhe é revelado o mistério que sua esposa guardava em seu ventre.

Quantas coisas acontecem envolvidas pela noite e pelo mistério!

Enquanto o agricultor dorme, na noite rompe-se a casca e cresce a semente lançada na escura terra, acompanhada de renovadas expectativas e esperança.

Tudo começa na noite: na noite dos pensamentos, dos corações, das intenções, das esperas, dos encontros.

Eis o mistério, eis a noite! A noite, a nossa noite, é habitada por Aquele que vem.

Até na noite da desolação, na solidão, no deserto, é possível encontrá-Lo.

Deus revelou seus planos a S. José através dos “sonhos”, que na Bíblia eram considerados como um dos meios pelos quais Deus manifestava sua vontade; hoje Deus manifesta seus planos através dos “sinais dos tempos”, que não se centram no sonho, mas na vigilância.

Contemplando a noite de José, nosso coração se alarga até o assombro, nossos braços se abrem para a acolhida, nossos olhos se aquecem ao reconhecer Àquele que vem e na brisa pronuncia o nosso nome. Nas sombras da vida Ele se faz encontrar, na solidão revela sua presença, na fragilidade mostra seu rosto.

O mistério da Encarnação de Jesus, sem dúvida, significou também “a paixão vivida por José, esposo de Maria”. Momentos de angústia, de dúvida; momentos de obscuridade em seu coração; momentos de pura fé na palavra de Deus.

José, assim como Maria, vai além da lógica e das condições humanas; também ele termina se apresentando como “o servo do Senhor”, dizendo em seu coração: “faça-se em mim segundo tua palavra”.

Como a Maria, Deus também diz a José: “Não tenhas medo de receber Maria como tua esposa”.

Há homens que são importantes não pelo que fazem, mas pelo que são no coração. Há homens que são grandes não por suas grandes ideias, mas por acolher a lógica de Deus, que quebra toda lógica humana. José foi o homem humilde como carpinteiro de um povoado; mas José foi grande por ser o “homem da fé”.

Em São José, a obediência se situa entre o escutar e o ver. Dizer “obediência” (de ob-audire) é afirmar a capacidade-dever de “escutar” humildemente a todos e a tudo. A obediência “é uma narração conjunta com Deus, daquilo que alguém via, ouvia e entendia, mais que uma submissão da vontade”.

Do que foi dito, se conclui que a mística da obediência não é a mística da submissão, senão que, como em José, é a mística da responsabilidade; responsabilidade que questiona a liberdade, não a que se fecha sobre si mesma, mas aquela que se abre numa atitude de escuta atenta.

Deus é encontrado, não na estrada suntuosa do domínio e do triunfo, mas na estrada do desapego, da doação, do despojamento e da fragilidade. Para entrar em sintonia com sua Vontade e deixar-se conduzir pelo seu Anjo, não é preciso estar coberto de títulos honoríficos, nem envolto pelo manto de obras realiza-das; é preciso, isto sim, ser como José, sem títulos e sem riquezas, mas justo e humano, como o seu Filho que “não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida”.

Como costuma acontecer com todas aquelas pessoas às quais lhes são confiadas missões importantes, José é um homem discreto. Sua presença é silenciosa. Na relação de José com Jesus, poderíamos aplicar a ele estas palavras: “é preciso que ele (Jesus) cresça e que eu diminua” (Jo 3,30).

Não podemos entender a presença de José em função de si mesmo, mas a serviço de Jesus e de seu mistério. Saber estar em função de outro não é fácil, mas é um dos modos mais belos de amar. O silêncio de José não tem nada de ingênuo. É o silêncio daquele que escuta atentamente para assim poder servir melhor.

José, “homem justo”: para alguns o têrmo é sinônimo de “delicadeza ou piedade”, para outros significa “respeito, reverência” em relação ao mistério de Maria; para outros ainda, é um título jurídico, ou seja, “obediente à lei”. Sabemos que o “Justo” por excelência é Deus, fiel à Aliança e que, com constância, continua seu projeto salvífico, apesar das rupturas provocadas pela infidelidade humana.

José é “justo” porque se ajusta ao modo de agir surpreendente de Deus. É “justo” porque se abre para o infinito, inspirando-se em Deus mesmo, o Justo; à justiça exterior, farisaica, ele opõe a justiça da fé e do coração. Portanto, o termo justo quer indicar a abertura e a adesão à ação suprema de Deus.

Nesse sentido, José se coloca na linha das grandes figuras da história da salvação. Sua vida é um exemplo de silenciosa dedicação ao Reino.

Ele é o homem do discernimento, e nos alegramos que ele tenha se mantido firme e mudado seus critérios para estar a serviço da Vida. Também nós somos “josés” em tempos de obscuridades. Também nós, algumas vezes, nos encontramos em momentos de obscuridade, marcados por dúvidas e crises, pensando em fugir, abandonar a missão. É normal que, ao adentrar-nos em nosso próprio mistério, nos encontremos com nossos medos e preocupações, nossas feridas e tristezas, nossa mediocridade e incoerência.

Mas Deus quer atuar em nós e através de nós; Ele sempre conta conosco para uma nobre missão.

Não devemos nos inquietar, mas permanecer no silêncio. A presença amistosa, que está no mais íntimo de nós, irá nos pacificando, libertando e sanando.

Este mistério último da vida é um mistério de bondade, de perdão e salvação, que está em nós: dentro de todos e cada um de nós. Se o acolhemos em silêncio, conheceremos a alegria de viver.

Na vida, há muitos momentos nos quais só cabe o silêncio, em vez do alvoroço, só cabe a serenidade, em vez da precipitação; cabe a nós renunciar aos nossos próprios critérios e esperar que Deus fale.

Isso pede de nós confiança total, muitas vezes sem compreender nem conhecer o “por quê e o como”; o decisivo é “deixar-nos fazer” por Deus, deixar-nos conduzir por Aquele que, a partir do mais profundo de nós mesmos, abre um horizonte de sentido e de surpresas. Aprendamos de José a abrir nosso interior e deixar-nos surpreender por Deus.

Texto bíblico: Mateus 1,18-24; Lucas 12,54-59; Isaías 50,4-11

Na oração:

Deus nunca deixa de atuar no meio das nossas noites, dúvidas, provações. Ele conhece nossos pensamentos e temores. E, no momento certo, nos liberta dos nossos medos e nos dá a conhecer sua Vontade.

- Recordar momentos de dúvidas, incertezas, desolações..., mas que lhe ajudaram a amadurecer na fé e na adesão ao projeto de Deus.

- Diante de pequenas ou grandes decisões: há espaço e tempo de discernimento? De escuta atenta?

quinta-feira, 13 de março de 2025

Peregrinos(as) “trans-figurados(as)” - 2º Domingo da Quaresma

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo da Quaresma (2025).

“Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João, e subiu à montanha para rezar” (Lc 9,28)

 

O tema do Ano Jubilar (“Peregrinos de esperança”) vem confirmar que somos todos peregrinos, pessoas num processo dinâmico de crescimento e amadurecimento. Cada um de nós deve marchar corajosamente seguindo seu próprio ritmo, escalar suas próprias montanhas, ter um horizonte inspirador.

Às vezes, parece-nos mais seguro continuar na velha e conhecida trilha ou ser parte do rebanho. A estrada menos trilhada parece ser a mais arriscada.

No entanto, somos todos peregrinos, cada um a caminho do próprio destino. A estrada não é igual para todos. Cada um de nós é dotado de um potencial imenso e único.

Vivemos uma itinerância que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas da nossa espiritualidade; um percurso revelador, que deixa transparecer nossa verdadeira identidade. Todo caminho nos “trans-figura”, porque desperta nossa essência, ativa nossos melhores recursos, faz emergir nossa nobreza interior.

Uma eterna tentação também habita o ser humano: é mais cômodo e seguro ficar sentado à beira do caminho. Mas, ficar sentado é estagnar, é não crescer, é perder o caminho e se acomodar. É aceitar ser menos. É conformar-se em ter a mediocridade como horizonte; é ter vida “des-figurada”.

Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal, a sua esperança.

É corajoso e persistente. Faz amigos e companheiros de caminhada. Vida “trans-figurada”.

A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro.

O tempo litúrgico da Quaresma vem nos arrancar de nossa mediocridade e de nossa acomodação; ele nos sintoniza com Aquele que é o Peregrino por excelência. Por ser Peregrino, Jesus vive sempre “trans-figurado”.

Mas os evangelistas querem destacar um momento mais denso na vida transfigurada de Jesus. Por isso, o evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos move a “subir” com Jesus ao Monte Tabor, para ali vislumbrar a verdadeira identadade d’Ele e também a nossa.

A experiência de Montanha, portanto, significa experiência de trans-figuração, ou seja, nos revela nosso ser essencial, nos faz ir além de nossa aparência para captar nossa riqueza interior, nosso eu original.

Como aconteceu a Pedro, Tiago e João, Jesus também nos tira do caminho e nos leva consigo para nos fazer testemunhas e partícipes de seu encontro com o Pai, deste fato central em sua vida: experimentar-se como Filho Amado.

Tal relato nos convida a estar atentos diante da presença próxima e amorosa de Deus, como filhos e filhas amados(as), e a experimentar o encontro com Ele que nos “transfigura”.

A experiência de intimidade com o Pai está narrada com todos os elementos das teofanias bíblicas: subida ao monte (lugar em que Deus habita), vestimentas resplandecentes e personagens centrais da história do povo que nos conectam com a Lei e os Profetas. Mas estes elementos da teofania não nos devem tirar a nossa atenção do foco. A importância e a grandiosidade da proximidade de Deus não está na “roupagem” brilhante, mas na profundidade da experiência de Jesus, que se vê e se sente a si mesmo profundamente amado como Filho. Ele é o Filho amado do Pai, de seu Abbá. É desta experiência que os três discípulos são testemunhas. É ali, ao descobrir Jesus como Filho amado de Deus, que eles se sentem chamados a escutá-lo; ali também brota uma atração irresistível de permanecer com Ele, na montanha.

Pedro, em nome dos outros, se sentiu atordoado e pensou que já tinha chegado à hora final da Lei, do mundo e da história. E, no meio do espanto, disse: “façamos três tendas!”. Tendas, para que fiquem acampados e assim possam conservar o brilho de Deus para sempre; tendas de campanha que logo se tornarão imensos mosteiros, catedrais, basílicas gloriosas, para descansar, para admirar.

Mas, a questão verdadeira foi e continua aberta. Há um “Pedro” que continua sonhando com “templos suntuosos” e “vestes resplandecentes”, enquanto Jesus continua dialogando em meio à nuvem, com Moisés e Elias, sobre a forma de subir a Jerusalém, realizando o grande “êxodo”, o caminho que conduz à nova humanidade.

O Monte da Transfiguração é “parada inspiradora”, lugar da escuta e do discernimento, ambiente privilegiado para iluminar a opção do caminho a ser realizado.

Nesse sentido, o evangelho da transfiguração nos ajuda a descobrir nossa capacidade de escuta. Quantas vezes entramos no mais profundo de nosso ser (Tabor) para que ressoe em nós a mesma voz que Jesus ouviu: “És meu filho amado; és minha filha amada”?

Como escuto? Que palavras fazem que meus ouvidos se ampliem, para ouvir melhor? A quem fecho meus ouvidos? Que ruídos me impedem escutar atentamente o que de verdade vale a pena?

Se não fazemos silêncio em nossa vida, como vamos poder escutar as provocativas palavras que o Abbá nos diz ao coração? Se não cuidamos da experiência de sermos filhos e filhas de Deus, de onde tiraremos a força para viver cada dia?

Esta experiência de interioridade nos trans-figura, nos transforma radicalmente. Fomos criados à imagem e semelhança do bom Deus; só no silêncio podemos escutar cada dia a Palavra que nos ajuda a viver uma contínua conversão, a crescer como filhos e como irmãos, especialmente das pessoas mais pobres.

Nossa vida não se resume a pura aparência ou exterioridade, mas podemos dizer que trazemos a trans-figuração em nosso DNA.

A oração é o caminho deste retorno para dentro de nosso ser. Temos necessidade de um mundo interior, de um gosto pela “solitude” (solidão habitada), de um tempo de silêncio, de uma experiência de deserto...

Há situações humanas ante as quais nos encontramos despojados de nossos papéis, nossos títulos, nossos instrumentos de trabalho, nossas justificações, nossos disfarces... e não tem outro remédio a não ser acudir às nossas reservas mais profundas para encontrar, não tanto uma explicação, mas uma força e um sentido.

Ao experienciar-nos enraizados(as) em Deus, tornamo-nos fonte de felicidade, de paz e de alegria.

Somos gerados(as) no Amor e para o Amor.

O Amor fundante de Deus perpassa todo o nosso ser e plasma um coração novo, um novo modo de ser, de perceber, de relacionar-nos e de sentir, infundindo-nos uma visão nova de nós mesmos, dos outros, da realidade e de Deus. A pessoa é transformada por dentro.

Isto nos torna herdeiros da “imagem e semelhança” de Deus, que se revelou a Moisés como “EU SOU”.

Todo ser humano, na sua identidade original, é uma faísca irrepetível do “EU SOU”, que reveste com Seu brilho o “eu sou” de cada pessoa.

Cada “faísca” traz, em si, a luz e o amor, o brilho e a vida da Trindade, que a torna única e vive uma relação pessoal no Mistério do Amor. A oração passa a ser o lugar da construção da própria identidade.

Por isso, S. Paulo fala que a “nossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3).

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 9,28-36

Na oração:

Inspirados pela transfiguração de Jesus, somos movidos a fazer o mesmo caminho de subida à montanha, para saber quem Ele é, para abandonar nossas tendas ilusórias, para segui-lo, sabendo que o brilho divino de seu rosto está presente em todos os homens e mulheres, e em especial nos marginalizados e explorados.

A oração é o ambiente propício de revelação de nosso Tabor interno, lugar da intimidade com o Senhor, onde cessa todo palavreado crônico, toda imagem egóica, todo pensamento interesseiro... Aqui brota um “sentimento” oblativo, despojado, simples..., através do qual Deus comunica sua Vontade.

- Sua oração: palavreado mecânico, repetitivo, auto-centrado..., ou esvaziamento de si na gratuidade?

quinta-feira, 6 de março de 2025

Peregrinos no deserto da vida - 1º Domingo da Quaresma

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do 1º  Domingo da Quaresma (2025).

 “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)

Estamos no início do percurso quaresmal, em sintonia com toda a Igreja que celebra o Jubileu ordinário, inspirado no tema: “Peregrinos de esperança”.

Na verdade, os caminhos estão dentro de nós. Sem caminhos nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência. Mas, é preciso perguntar aos caminhos o porque das distâncias, porque às vezes são tortuosos, cansam e são difíceis de serem percorridos. Eles guardam os segredos dos pés dos caminhantes: o peso de sua tristeza, a leveza de sua alegria ao encontrar a pessoa amada, as descobertas surpreendentes, o encontro com o diferente...

Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade... Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.

Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor.

Esta é a grande esperança que dignifica toda a humanidade.

Tornar-nos “peregrinos” é a experiência de uma grande liberdade pela via do desprendimento (coisas, apegos, poder, riquezas, ideias fixas, posturas fechadas, conservadorismo...) e aí se abre a possibilidade de um encontro com o Transcendente, com o Deus Peregrino.

Assim, a contemplação da vida de Jesus nos move à liberdade e se manifesta como um chamado a uma vida mais simples, partilhada, apaixonada, natural, livre, transcendente, intensa, comprometida...

Este é o sentido do relato lucano das “tentações de Jesus no deserto”.

Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da Graça.

Com sua austeridade e simplicidade, o deserto não é lugar de experiências fúteis e superficiais.

A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e experimentada no deserto.

Quem anda no deserto sente profundamente o que é o “nada”; deserto grita o nosso “nada”, nos coloca entre a areia e o céu, o nada e o Tudo, o eu e Deus.

A prática do “deserto” é um fator sempre presente em toda procura séria de Deus.

De Deus viemos. N’Ele somos. N’Ele vivemos. Para Ele caminhamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.

Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo(a) seu(sua) seguidor(a). O mundo, nossa casa sem paredes.

Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.

A tríplice tentação de Jesus no deserto condensa os “impulsos ou dinamismos” mais importantes que o ser humano experimenta e que, quando alimentados, podem afastá-lo do melhor de si: o ter, poder e o prestígio (fama). Nesse sentido, Jesus não vive para seus interesses, mas em docilidade à Vontade de Deus; Jesus não é um Messias que se impõe pelo poder nem pelo êxito; a única força que o move é a fidelidade ao Pai e à missão.

Para muitos, sempre será tentador utilizar o espaço religioso para alimentar a vaidade, buscar reputação, poder e prestígio. Poucas coisas são mais ridículas no seguimento de Jesus que a ostentação e a busca de honras. Causam danos à comunidade cristã e a esvaziam de sua verdade.

As tentações que são descritas em Lucas não são propriamente de ordem moral. O relato nos está advertindo de que podemos arruinar nossa vida se nos desviamos do caminho que Jesus trilhou.

Jesus, nas suas tentações, não cita a Escritura para justificar seus interesses.

Na primeira tentação, Ele renuncia utilizar o nome de Deus para “transformar” as pedras em pães e, assim, saciar sua fome. Ele não segue esse caminho; não vive buscando seu próprio interesse; não utiliza o Pai de maneira egoísta. Alimenta-se da Palavra viva de Deus e só “multiplicará” os pães para saciar a fome da multidão.

Na segunda tentação, Jesus renuncia conquistar “poder e glória”, e não se submete, como todos os poderosos, aos abusos, mentiras e injustiças nas quais se apoia o poder diabólico. Jesus rejeita a tentação do poder porque, para Ele, não há outro meio de salvação e libertação a não ser a solidariedade até a extrema radicalidade. O Reino de Deus não se impõe, mas se oferece com amor. Por isso, Jesus só adora o Deus dos pobres, dos fracos e indefesos.

Na terceira tentação, Jesus renuncia cumprir sua missão recorrendo ao êxito fácil e à ostentação. Não será um Messias triunfalista. Nunca manipula Deus a serviço de sua vanglória. Está entre os seus como aquele que serve.

A contemplação de Jesus no deserto desmascara aquelas atitudes que afogam em nós a possibilidade de viver o seguimento d’Ele com mais intensidade; tal exercício desmascara nosso modo de viver o cristianismo, acomodado aos critérios do mundo, ou seja: insensibilidade do coração, deixar-nos prender pelas garras do consumismo, concretizado nos “afetos desordenados” ou apegos aos bens, poder, auto-imagem, lugares, pessoas, títulos..., que acabam esvaziando nossa vida e nos deslocando do essencial. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.

Diante das carências existenciais, surge a tentação de buscar compensações, que exigem investimento afetivo, nos tiram do foco e nos fazem cair em estado de letargia e acomodação. Mas, todas essas compen-sações têm algo em comum: elas nos fazem adormecer e, desse modo, abortam a novidade que poderia brotar em nós e atrofiam a esperança, pois nos prende ao mais imediato (fixação afetiva).

O caminho da transformação implica reconhecer a importância da vida simples e sóbria. É sábio tomar consciência de que vivemos uma super-excitação do desejo de posse. É preciso fazer a experiência de que podemos prescindir da maioria das coisas que nos são oferecidas. O papa Francisco nos recorda que “a espiritualidade cristã propõe um modo alternativo de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria, sem estar obcecado pelo consumo. É importante adotar um antigo ensinamento, presente em diferentes tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que ‘quanto menos, tanto mais’” (Laudato si’ n. 222).

Fazer estrada com Jesus” não nega nossas necessidades e desejos naturais, mas re-ordena nossas prioridades e nos recorda constantemente que Ele está nos chamando e nos atraindo para um modo alternativo de viver, mais humano e mais leve.

Texto bíblicoEvangelho segundo Lucas 4,1-13

Na oração:

A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, poder, prestígio.

- No fundo, a questão fundamental é esta: a quê “reino” estou servindo? O “reino” do meu ego, ou o Reinado do Pai, no seguimento de seu Filho?

- Quais “tentações” exercem maior sedução em minha vida? Onde estou investindo o melhor de minha vida?

terça-feira, 4 de março de 2025

Quarta-feira de Cinzas

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da Quarta-feira de Cinzas (2025), que inicia o Tempo Litúrgico da Quaresma. Desejamos uma profunda "travessia quaresmal" a todos.

Começamos a Quaresma com o rito da “imposição das cinzas”. Há um risco de vivermos a travessia quaresmal contentando-nos com atos externos de penitência, renúncia, mortificações... sem referência à pessoa de Jesus Cristo e sem abertura aos outros. O silêncio do deserto nos ajuda a encontrar nosso centro, a partir de onde podemos acertar em nossas opções vitais, sem cair nas armadilhas do ego.

Esta Quaresma pode ser um marco no nosso caminho, um caminho de Paixão que já estamos vivendo nestes momentos de profundas crises, rupturas sociais e destruição da natureza; quer ser também um caminho de Ressurreição e que não poderá ser uma experiência solitária; ou nos renascemos todos para uma nova humanidade ou este mundo será uma experiência falida.

Há um drama radical que nos afeta a todos e que, cada vez mais, assume um rosto assustador. Trata-se da gravidade da destruição da Casa Comum, com profundas consequências: desmatamentos, secas, poluição ambiental, contaminação das águas...

Precisamos, neste tempo litúrgico especial, despertar nossa consciência ecológica para alimentar um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental que perpassa todas os seres do universo, na forma de uma “rede”. Nenhuma espécie é autossuficiente; todas são interdependentes.

Nós, seres humanos, também fazemos parte desta vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza, desde a menor célula até a vastidão do cosmos. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta.

Para tornar a nossa vida mais fraterna, aberta e comprometida com a causa da vida, a Campanha da Fraternidade da Igreja no Brasil nos situa diante desta dura realidade que nos escandaliza. Com o provocativo tema - “Fraternidade e Ecologia Integral” – e o lema – “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31) - somos chamados a despertar nossa sensibilidade solidária frente a esta grave situação de destruição que nos envergonha.

A ecologia integral começa por uma mudança de mentalidade, por uma nova sensibilidade e deve nos conduzir a uma simplicidade de vida, não consumista, solidária, defensora dos pobres e da natureza, agradecida ao Deus criador do céu e da terra.

A conversão ecológica, à qual o papa Francisco nos convida, afeta todas as dimensões da condição humana: a relacional, a social, a afetiva, a econômica, a política, a espiritual...

Assim, através da contemplação reverente, mergulhamos nesse “mar cósmico”, que deixa transparecer a presença divina. “Sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio) nos conduz à iluminação, à profunda serenidade e à integração com o universo.

Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida, tal como foi criada e sustentada por Deus. Há uma íntima relação entre nós, seres humanos, e a natureza. Humanidade e Terra, formamos uma única realidade esplêndida, reluzente, frágil e cheia de vigor. Viemos da Terra e voltaremos à Terra. Somos parte do universo, feitos do mesmo pó cósmico que se originou com a explosão das grandes estrelas vermelhas.

As mesmas energias, os mesmos elementos físico-químicos da Terra circulam por todo o nosso corpo, sangue e cérebro. Somos argila sobre a qual é soprado o Espírito divino que anima e inspira.

Neste início da Quaresma, o gesto de receber as cinzas sobre nossas cabeças tem o sentido de uma mobilização para começarmos a caminhar em direção ao “centro de nosso ser”, conscientes de que este caminho nos humaniza e nos diviniza ao mesmo tempo. Receber as cinzas nos faz entrar em comunhão com toda a natureza e vem reforçar a fraternidade universal: “somos pó, mas pó apaixonado”, habitados pelo Sopro do Espírito.

Para viver com mais intensidade o espírito quaresmal, a liturgia nos propõe três atitudes que nos descentram e nos fazem entrar no ritmo da radical gratuidade: a oração, o jejum e a esmola (caridade fraterna).

Uma vez no deserto com Jesus, devemos ativar a atitude de escuta daquela voz interior que se desperta diante da força da Palavra. A isso chamamos oração. Oramos quando dirigimos nosso olhar a Deus, ao mundo e a nós mesmos. Oramos com a Bíblia, com a natureza, com as notícias, com os desejos, com os medos... Oramos de mil formas diferentes... Na oração expressamos o melhor de nossa vida, e entramos em sintonia com toda a Criação: na intimidade com Deus somos porta-vozes dos clamores da humanidade e de todas as criaturas.

E, se escutarmos profundamente com os sentidos ativos, brotarão gestos de atenção e sensibilidade diante de homens e mulheres que mais precisam de paz, pão e palavra. Chamamos isso de “esmola” (ou “caridade fraterna”), que significa porta aberta para viver a partilha e o encontro com todos, movidos pelo nosso olhar contemplativo e pelas nossas entranhas compassivas.

Depois da esmola e da oração, culminando a trilogia da “justiça” do evangelho de Mateus, vem o gesto da renúncia positiva, não por sadismo ou vitimismo, mas por elevação da interioridade pessoal e pela solidariedade humana. Este é o sentido do jejum da quaresma cristã: ao lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê e para quem vivemos? Só para acumular e encher nossos “celeiros” ...?

Fazer jejum sem despertar uma atitude de solidariedade e de partilha é cair no “farisaísmo egóico”. Falamos de um jejum humano, espiritual e corporal no sentido mais profundo; jejum pessoal, mas que quebra nosso farisaísmo e nos conduz a uma autêntica solidariedade e comunhão com os outros, sobretudo com as vítimas da fome e da miséria.

Jesus, ao recuperar o sentido verdadeiro destas três práticas quaresmais, nos “revela” aquilo que os hipócritas esquecem: a esmola, a oração e o jejum precisam ser vividos no “escondimento”. O essencial da vida, que é o amor, sempre é discreto. O que não é essencial faz barulho, como a vaidade, o prestígio social, o querer despertar uma boa impressão nos outros...; tudo isso é pura hipocrisia.

Quaresma pede humildade e sinceridade de coração.

Durante o percurso quaresmal deste ano, também não podemos esquecer o apelo do Papa Francisco para que todas as comunidades cristãs vivam, com sentido e inspiração, o tema do Ano Jubilar: “Peregrinos de esperança”. “Agora chegou o momento de um novo Jubileu, em que se abre novamente, de par em par, a Porta Santa para oferecer a experiência viva do amor de Deus, que desperta no coração a esperança segura da salvação em Cristo” (Bula Papa Francisco, n. 6).

Somos todos peregrinos, mas os viajantes são diferentes. A estrada não é igual para todos. Vivemos uma caminhada que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas do nosso eu profundo.

Mas, ao mesmo tempo, é um caminhar solidário: na peregrinação de cada pessoa estão presentes milhões e milhões de experiências de caminhos vividos e percorridos por incontáveis gerações. A missão de cada um é prolongar este caminho e vivê-lo tão intensamente que aprofunde o caminho recebido, endireite o caminho retorcido e ofereça aos futuros caminhantes um caminho enriquecido com suas pisadas.

Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho, o Peregrino por excelência.

Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade. “Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.

Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 6,1-6.16-18

Na oração:

Senhor, mostra-nos teus caminhos!

Este é o apelo que se faz mais forte durante o tempo quaresmal. O deserto é, ao longo de toda a Bíblia, um lugar privilegiado para novas experiências do Deus que caminha em meio a seu povo.

Para fazer uma “travessia quaresmal” é preciso uma inspirada preparação e uma mobilização de todo o seu ser.

- Como você se propõe a viver as “três práticas quaresmais”: oração, jejum e esmola?

- O tema da Campanha da Fraternidade deste ano (Fraternidade e Ecologia Integral) tem ressonância em seu interior?

- Que gestos concretos você poderia assumir para viver a Ecologia integral?