sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Apresentação do Menino Jesus: nova “epifania”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Apresentação de Jesus no Templo.

 “Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)

No oriente, esta festa é conhecida como “o encontro”; no Ocidente, tomou o nome de “purificação de Maria” ou “candelária”, porque a cerimônia mais vistosa deste dia era a procissão das candeias, ou seja, quarenta dias depois do nascimento de Jesus (fechando o ciclo do Natal), os cristãos (especialmente as mulheres) iam às igrejas com velas/candeias, dando graças pela vida.

Na nova liturgia, a festa deste dia chama-se “apresentação do Senhor”; nela retoma-se o simbolismo da Epifania, recordando Jesus como Luz de todos os povos.

Falamos de nova Epifania quando Jesus é manifestado a Israel, representado por dois idosos (Simeão e Ana) que estavam no Templo, alimentando uma esperança que agora se realiza: tomar nos braços o Menino Salvador. Na primeira Epifania, os Magos, depois de adorarem o Menino, regressam às suas terras por outro caminho. Agora é a Epifania daqueles que também querem “partir” com a vida plena e realizada.

O relato do nascimento de Jesus em S. Lucas é desconcertante: não há lugar para acolhê-lo; os pastores o encontram deitado em um presépio, sem outras testemunhas a não ser Maria e José. Temos a impressão que Lucas sente a necessidade de construir um segundo relato no qual o menino é resgatado do seu anonimato para ser apresentado publicamente. E o Templo de Jerusalém é o lugar mais apropriado para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus a seu povo.

Mas, de novo, o relato de Lucas é desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com o menino, não são os sumos sacerdotes nem os demais dirigentes religiosos que saem ao seu encontro. Também não é recebido pelos mestres da Lei que pregam suas “tradições humanas” nos átrios do Templo.

Jesus não encontra acolhida nessa religião fechada em si mesma e distante do sofrimento dos mais pobres; não encontra amparo em doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais humana.

Somente os olhos apagados de dois idosos (Simeão e Ana) conseguem ver o Salvador; somente os braços cansados desse casal ancião conseguem abraçar o Salvador; somente eles conseguem estreitar em seus corações Aquele que é a Esperança dos povos. Uma vida cheia de promessas e esperanças; agora, marcados pela gratidão, cantam de alegria e louvam o privilégio de acolher a Quem tinham esperado durante toda uma vida.

O mundo está cheio de mistérios grandiosos que cobrimos com a rotina e as pressas. Falta-nos capacidade de assombro e pureza no olhar. Quando o mundo é visto tão somente com os olhos estreitos e interessados, os encantos e as surpresas da vida passam desapercebidas e se tornam realidades opacas, ambíguas, obscuras.

Os modos de agir de Deus são discretos, quase escondidos; só um olhar contemplativo consegue perceber. Por isso, podemos evocar aqui o ícone da Apresentação de Jesus no Templo, onde o Espírito convoca todos os personagens e os faz coincidir em uma festa de promessas cumpridas. Todo o relato do evangelho deste domingo está atravessado de cotidianidade, tudo transcorre “sob a lei” e alguns ritos. Simeão e Ana são presenteados com o privilégio de contemplar o Salvador, porque souberam esperar e permanecer na fidelidade; souberam contemplar, na vulnerabilidade de um menino, o desejado de Israel.

Na passagem de Lucas, nem os sacerdotes do templo, nem os mestres da lei, nem os legitimados pela religião ou pelo poder social reconhecem no Menino a presença do Salvador. Aqui falam os pequenos e os simples; aqueles que não costumam ter palavra – pastores, pagãos, idosos – são os que veem mais além, maravilham-se, reconhecem e confessam. E com eles devemos estar, se queremos também reconhecê-Lo.

Podemos dizer que o Nascimento de Jesus está rodeado de idosos(as); os anciãos são despertados: primeiro foi Zacarias; logo depois, Isabel. Mais tarde Simeão e Ana.

Simeão, aquele da promessa de que não morreria sem ver o Salvador. Ana, a profetisa que dá graças a Deus e fala do menino a todos os que aguardam a libertação de Jerusalém.

A cena da “apresentação de Jesus” nos faz recordar e compreender o valor e a importância da presença dos anciãos, sobretudo entre as crianças e os jovens. Eles são um tesouro.

O Papa Francisco nos diz: “Nós vivemos em um tempo no qual os anciãos não são contados. É feio dizer isso, mas eles são descartados porque atrapalham”. No entanto, “os anciãos são aqueles que nos trazem a história, a doutrina, a fé e nos deixam como herança. São como o bom vinho envelhecido, isto é, tem dentro de si a força para nos dar essa herança nobre”.

Jesus é “apresentado” publicamente no Tempo; mas, só dois idosos desconhecidos saem do “anonimato” e cantam a esperança que os alimentara tanto tempo. Seus olhares cansados conseguem ver naquela criança a esperança realizada do Povo de Israel.

O velho Simeão personifica a justiça e a piedade israelita; representa o povo que escuta a Deus, que recebe seu Espírito e espera a chegada do Messias. Não tem idade, não é de agora nem de antes; é de sempre, é a plenitude da esperança. Recebeu a promessa de ver a Cristo Senhor antes de morrer e vive somente para isso. Assim, quando chegam os pais de Jesus, ele se apresenta, toma o menino em seus braços e bendiz a Deus dizendo: “Agora, Senhor, podes deixar teu servo ir em paz...”

Soube esperar; agora, sabe esperar a morte com serenidade. Sua vida culminou, teve sentido tudo o que tinha feito. Agora pode morrer com a esperança realizada, como indivíduo concreto e como patriarca, representante do povo, condensado em sua pessoa. O verdadeiro Israel, que é Simeão, cumpriu sua missão esperando o Salvador em quem todos os povos se vinculam no gesto de paz. Toda uma vida centrada numa promessa; toda uma vida carregada de esperança; toda uma vida que não se cansa de esperar.

Simeão viveu e envelheceu crendo numa promessa; viveu e envelheceu sem cansar-se de esperar. A luz tardou em iluminar; a noite foi longa para envelhecer. Mas, a esperança é assim: não tem hora; as esperanças semeadas no coração terminam amanhecendo. Começa a fazer-se luz quando seus olhos já estão se apagando. Pode abraçar o Salvador prometido, quando seus braços já estão cansados.

O evangelho de hoje nos fala também de outra grande mulher, cuja pequenez enaltece: Ana, a profetisa.

Ana conectou sua vida com as batidas do coração de Deus, esteve sempre em oração, sempre no Templo, em sintonia com uma esperança que pairava no ar. Ela nos fala da espiritualidade do esvaziamento de nossos egos inflados, nossas soberbas, saindo de nós mesmos para deixar espaço ao Menino, colocando nossa voz, nossas pessoas, nossas vidas para torná-lo conhecido entre todos. O importante é falar do Menino, como Ana; ser profetas e profetisas, em seu nome.

Ana, a profetisa, pode nos comunicar algo do segredo da esperança. Para isso, como esta idosa, conectemos com esse pulsar que, se estivermos atentos, sentiremos em nossas entranhas. Deixemos que a Ana profetisa que há em todos nós, tenha vida e fale a todos do Menino. Despojemo-nos de tudo o que nos impede ser Ana, daquilo que não nos deixa ser profetas e profetisas.

Esqueçamos nossa mediocridade e deixemos levar, deixemos fluir a Vida de Deus em nós, em nosso entorno. Sejamos como Ana, portadora da Boa Notícia do Menino, tão pequeno e tão grande.

Em seguida, a família de Jesus retorna ao cotidiano de Nazaré; ali, o Menino “crescia” e se “humanizava”. De fato, o ambiente familiar é o lugar privilegiado para o amadurecimento físico, espiritual, social... de todo ser humano. É também o espaço propício para que cada um vá desenvolvendo e ampliando suas capacidades, seus sonhos, seu projeto de vida... Se Jesus, mais tarde, pregou e viveu o amor, a entrega, o serviço, a solicitude para com o outro, quer dizer que Ele foi incentivado a viver tudo isso no seu ambiente familiar. Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz.

Ele viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do seu povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.

Texto bíblicoEvangelho segundo Lucas 2,22-40

Na oração:

Não é necessário que alguém me apresente diante de Deus. Sei que sou mais d’Ele que de mim mesmo e eu nada seria se me separasse d’Ele. Essa realidade desconcertante me ultrapassa. Uma vez descoberta e aceita, me abre possibilidades infinitas como ser humano” (Fray Marcos).

- Como integrar, na sua vida, estes dois ambientes: Jerusalém e Nazaré?

- Rezar o seu “cotidiano” familiar, comunitário, profissional, social... Sua presença “faz diferença”?


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Identidade cristã: somos “teófilos”, amigos(as) de Deus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 3º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“... após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo” (Lc 1,3)

 

Neste terceiro domingo do Tempo Comum, a liturgia nos convida a um passeio pelos primeiros capítulos do terceiro evangelista. O texto de hoje nos dá boas-vindas ao Evangelho de Lucas; em seguida, salta os relatos da infância e do batismo de Jesus. Depois de procurar dar solidez aos testemunhos da comunidade lucana e a tudo o que foi fixado por escrito a respeito de Jesus, nos situa diretamente em sua vida pública, já com o discernimento feito, durante o tempo do deserto, sobre o sentido de sua missão.

Antes de começar a narrar o ministério da vida pública, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsionou Jesus e qual foi o horizonte de sua atuação. Os cristãos devem saber em que direção o Espírito de Deus conduziu Jesus, pois segui-Lo é precisamente caminhar em sua mesma direção.

Lucas nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. O Evangelho de hoje marca o início da missão de Jesus: conduzido pela força do Espírito, Ele começa justamente lá onde ninguém era capaz de dirigir o olhar e o coração”.

O relato deste domingo começa com um formato epistolar dirigido a Teófilo. Lucas o situa no princípio do Evangelho e no começo do livro dos Atos dos Apóstolos, para dar-lhe um caráter literário, como se fosse uma longa carta remetida a seu companheiro Teófilo. Mas não é só uma carta subjetiva relatando o que fora experimentado, mas alude a uma investigação diligente para dar consistência e solidez aos fatos que marcaram profundamente Aquele que passou por esta vida fazendo o bem.

Teófilo não é tanto um indivíduo, mas devemos entendê-lo no sentido etimológico da palavra: “Theos”: Deus/”philos”: amigo. Lucas dirige seu evangelho aos amigos de Deus. Deus é amigo, amigo nosso, amigo de todos. Nossa relação com Ele não se fundamenta no poder, na ameaça, na imposição e no domínio, mas na amizade que não alimenta medo, angústia, submissão.

Segundo o Evangelho, somos amigos(as) de Deus (Teófilo), não clientes de uma religião.

“Teófilo” somos todos: Deus é amigo de todos nós. No missal romano há uma oração eucarística na qual se diz: “quando pela desobediência perdemos vossa amizade, não nos abandonaste...). E quem disse que Deus deixou de ser amigo das pessoas? Deus não retirou nunca sua amizade para com o ser humano.

É uma consideração de grande transcendência saber que somos todos amigos e amigas de Deus e que Ele nos tem a todos por seus amigos e amigas. Infelizmente, na vida cristã, dá-se muito maior peso a expressões carregadas negativamente: pecadores, indignos, miseráveis... Fala-se tanto de pecado e de inferno e muito pouco do “Deus amigo” que nos quer bem, que nos ama a todos.

É um bálsamo escutar S. Lucas afirmar que Deus é nosso amigo. O Evangelho de Jesus, portanto, é boa-notícia dirigida aos amigos e amigas de Deus. O Deus de Jesus não é um justiceiro temível a quem devemos aplacá-lo com nossas míseras penitências e mortificações. Deus é amigo; quem é amigo não sufoca o outro com pesadas cargas de leis, culpas e condenações; quem é amigo não se impõe sobre os outros através da obediência cega. Quão distante estamos do “Deus amigo” revelado por Jesus!

Avançando no texto, o evangelista Lucas nos mostra Jesus no início de seu ministério, expondo seu “projeto com vida” na sinagoga de Nazaré. É a etapa do início de sua pregação, de sua vida itinerante e, posteriormente, já em Cafarnaum, o relato de suas primeiras curas e do chamado de seus primeiros discípulos.

Jesus dirige-se à sinagoga, como era costume entre os judeus, e ali lhe entregam o pergaminho onde estava escrito o texto do profeta Isaías (61,1-2). Não há dúvida que Lucas persegue um objetivo claro: fazer deste discurso em Nazaré o programa daquilo que vai ser toda a atuação de Jesus na Galileia.

A cena na Sinagoga em Nazaré é impactante. Não é casual que Lucas a eleja como ponto de partida de todo o ministério de Jesus. Chama a atenção, antes de tudo, a “ousadia” de Jesus: ele, o carpinteiro do povo, sem título algum, se levanta na sinagoga de seu próprio povo e se reveste da função do escriba, se apresenta como mestre, diante da admiração e espanto de todos.

Lucas descreve com todo detalhe o que Jesus faz na sinagoga: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, ele mesmo busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e senta-se. Todos escutam com atenção as palavras escolhidas por Ele, pois revelam a missão à qual se sente chamado por Deus.

É sintomático que, na leitura do texto de Isaías, Jesus tenha omitido o último versículo: “anunciar um dia de vingança do nosso Deus”. Isso é de muita importância porque desmonta uma falsa imagem de Deus. Jesus se sente com autoridade suficiente para começar a re-interpretar a lei judaica a partir da coerência com sua nova consciência: sentir-se habitado pelo Espírito, que lhe tinha fortalecido no deserto, e pelo amor filial, experimentado no batismo.

De fato, a imagem de um Deus vingativo choca frontalmente com a imagem de um Deus Mãe-Pai que cuida, protege, dignifica e lança ao crescimento, à liberdade e à autonomia a partir de um vínculo profundo.

Trata-se de uma passagem para a consciência adulta centrada na concepção da religiosidade que não se encaixa com a dinâmica infantil do prêmio-castigo diante do bem ou do mal praticado. Jesus nos situa diante de um Deus que habita nosso ser mais profundo e que se manifesta como “graça”, como luz, força, cura e autoridade, a partir da dignidade que nos confere. Uma consciência de liberdade que favorece a eleição daquilo que vai dar um sentido profundo à nossa vida. E esta visão vital tem claríssimas consequências como Jesus expõe nessa recuperação do texto de Isaías.

Poderíamos dizer que Lucas apresenta Jesus pronunciando seu “discurso programático”, fruto do discernimento durante sua estadia no deserto, logo após seu batismo. A “força” de seu programa não procede de uma ideologia poderosa, nem de uma determinada religião, nem de um patriotismo doentio; Jesus vive e começa a atuar impulsionado pela “força do Espírito de Deus”. Ele se deixa conduzir, no mais profundo de si mesmo, pelo Espírito; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele.

O modo de ser e viver de Jesus é o do Espírito de Deus. O mesmo Espírito criador e criativo do Gênesis, agora “paira” sobre Jesus: Espírito de vida. O mesmo Espírito que atuou durante o êxodo do povo de Israel: Espírito de Liberdade. O Espírito é brisa suave, descanso, é consolo e ânimo. É o mesmo Espírito de fecundidade e vida (Maria-Jesus). Espírito que move a comunidade cristã, arrancando-a de seus medos. E esse Espírito é paz, alegria, impulso e esperança para viver.

A vida e a missão de Jesus são presididas não por esquemas religiosos, mas pela criatividade, pela liberdade, pela vida, pelo ânimo, consolo... despertados pelo Espírito.

Sob a ação do Espírito, Jesus deixa claro que sua missão é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...

Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher.

Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”.

E, ao “fixar os olhos n’Ele”, os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo.

As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.

Texto bíblico:  Evangelho segundo Lucas 1,1-4;4,14-21

Na oração:

Se o que fazemos e proclamamos, como cristãos, não é captado como algo bom e libertador pelos que mais sofrem, que Evangelho estamos anunciando? A que Jesus estamos seguindo? Quê espiritualidade estamos promovendo? Estamos caminhando na mesma direção que Jesus caminhou?

- Inspirado(a) na missão de Jesus, qual é sua missão no ambiente em que você vive? Família, trabalho, comunidade cristã, compromisso social...?

- Sua missão o(a) situa no horizonte do empobrecido, do excluído...?

- Na sinagoga de sua vida, o que prevalece? a preocupação com o rito, com a doutrina, com as leis... ou é lugar de abertura ao mundo do outro?

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Caná: vida com sabor de amizade, festa e vinho

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 2º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10)

 

Talvez porque Israel e Jesus eram mediterrâneos, viram no vinho o sinal de abundância e alegria. Isto está muito presente na Bíblia e na cultura popular.

O vinho é um tema muito usado por Jesus, para falar da nova situação do Reino: vinho novo, odres novos.

A vida de Jesus transcorrerá entre refeições e encontros, banquetes e bodas, multiplicação de pães, etc. Não é muito complicado entender que o cristianismo é alimento, vida e festa em todos os sentidos da palavra.

Jesus oferece a verdadeira salvação, mas esta não vai depender de nenhuma lei (talhas). A água se converterá em vinho fora delas.

“Celebrai a vida com vinho!”, nos diz Jesus, que é o amor que se expande, que contagia,

É antes de tudo o vinho dos “noivos”, daqueles que se uniram para celebrar a festa de sua vida, para beber juntos da mesma taça o vinho do amor que cresce sempre mais. É a festa de todos os convidados, entre eles Maria e os discípulos, que devem transformar o mundo à base de bom vinho. Quando há abundância de vinho e aprende-se a beber em comunhão de prazer, a vida se transforma.

Este é o motivo central da festa de Jesus que nos faz celebrantes da vida, animadores dessa festa, que é de todos, homens e mulheres, convidados ao banquete das bodas, sem que ninguém fique excluído, sem que ninguém o monopolize. Este é o tempo de passar do vinho ruim ao bom vinho de festa, de amor generoso, de bodas de vinho para todos, superando as velhas leis e purificações, para nos colocar a serviço da vida.

Com toda certeza, a festa de casamento era e é um dos momentos mais felizes e importantes na vida dos noivos; a boda é encontro, amor, alegria, festa, esperança, amizade... Talvez por isso a boda era imagem dos tempos messiânicos. O banquete de bodas foi um sinal muito utilizado por Jesus: o Reino de Deus é como um banquete de bodas ao qual somos todos convidados. Nosso Deus é “festeiro” e que organiza ricas refeições.

Esse é o sentido do “evangelho das bodas” onde está presente a alegria de um homem e uma mulher que se vinculam em amor e querem que esse amor se expanda e que chegue a todos, expresso no vinho de festa e na plenitude prazerosa. O judaísmo era religião de purificações e jejuns; por isso, precisava de muita água para as abluções. Pois bem, contra isso, o evangelho começa sendo experiência messiânica de festa. No meio dela, como animadora e guia, como irmã e amiga, encontramos a Mãe de Jesus. Não a busquemos nas penitências e mortificações, mas nas alegrias da vida. Só assim, quando saboreamos com ela do vinho de Jesus, poderemos dedicar nosso trabalho e alegria a serviço daqueles que estão excluídos e não tem acesso ao vinho saboroso.

Muitas vezes, na própria comunidade cristã tem-se impedido que haja vinho para todos: uns desperdiçam, outros só oferecem “vinagre” (ritos estéreis, mortificações, penitências...), outros retém para si o melhor vinho e não o oferecem aos outros...

Às vezes temos a sensação de que a Igreja atual se encontra na mesma situação dos noivos e dos convidados à festa: “eles não têm mais vinho”. Anuncia-se com trombetas a festa, mas não se consegue oferecer nada: só aparência de bodas, uma festa vazia, carregada de ritos que alimentam culpas, inclusive com músicos pagos, ornamentações luxuosas..., mas falta o melhor: o vinho.

Sem o vinho, nem os noivos podem pronunciar sua palavra de amor, nem os amigos podem compartilhar e celebrar com eles, conforme o ritual judaico. Esta é a situação: em muitas comunidades cristãs predomina um funeral de críticas, lamentações e abandono. E muitos vão embora da festa, pois falta o vinho.

“Enchei as talhas de água”, ordenou Jesus, pois estavam vazias. “Estavam seis talhas de pedras colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer”. Em plano externo, eram necessárias para que os judeus pudessem cultivar sua pureza ritual, mas eram incapazes de oferecer às pessoas a vida e o prazer do Reino.

Em Caná, Jesus se valerá da estrutura religiosa para propor o projeto do Reino, centrado no amor e na amizade entre seus integrantes. O “melhor vinho”, símbolo da qualidade dessas relações, revela-se essencial e não pode faltar na festa existencial que Ele propõe (bodas). Com seu gesto, Jesus declara caduco a antiga ordem centrada na Lei; deslocando-a para uma melhor pauta de vida: alegria, festa, amizade...

Com sua presença numa festa de casamento, Jesus funda uma “nova comunidade”, marcada pela alegria, pela festa e pela abundância do melhor vinho.

É o momento da boda, da vida, do amor, do encontro... Somente esta passagem da água real ao vinho realíssimo da festa, da nova consciência, do prazer partilhado, expressa a novidade de Jesus.

Muitas vezes, corremos o risco de bloquear o projeto de Jesus e fechá-lo em grandes cântaros de água. Pois bem, é a hora de um novo tempo, de abrir as talhas e enchê-las de água nova, para que Jesus nos ajude a transformar a água em vinho da festa sem fim.

Festejar é afirmar a bondade e o sabor da vida. Sem festa não conseguiremos nos ajustar bem à existência e à convivência; falta-nos a leveza existencial da liberdade e do sentido da vida. Na festa, a comunidade que celebra encontra legitimação para sua atuação, re-criando a espiritualidade da vida, aprofundando-a a nível emotivo-afetivo, reavivando a esperança que anima, antecipando a utopia que a une.

O ápice da festa é gratuito. Justamente por isso a festa tem algo a ver com o mistério da vida.

Por sua gratuidade, a festa faz descobrir a gratuidade da vida humana, a gratuidade da ação histórica.

Os evangelhos apresentam Jesus concentrado, não na religião, mas na vida. Viver o “estilo de vida” de Jesus não é só para pessoas religiosas e piedosas. É também para quem ficou decepcionado com a religião, mas sente necessidade de viver de forma mais digna e ditosa. Por quê? Porque Jesus contagia a fé num Deus festeiro, que não complica nossa vida, mas nos move a confiar n’Ele, que com Ele podemos viver com alegria pois Ele nos atrai para uma vida mais generosa, movida por um amor solidário.

A espiritualidade de Jesus não é a espiritualidade do sacrifício, do pecado e da culpa, da busca da perfeição, mas é a espiritualidade da felicidade e da alegria para as pessoas. Com sua presença, participando das bodas, das refeições festivas e dos banquetes, Jesus anunciava e indicava um outro mundo diferente, onde partilha-se a vida, a convivência, a alegria, abrindo espaço à participação de todos, sobretudo daqueles que eram excluídos da religião. É a alegria contagiante do Evangelho.

Para Jesus, Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos impulsionam a viver mais plenamente. Deus não quer que renunciemos nada do que é verdadeiramente humano. Ele quer que vivamos o divino no que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da renúncia como exigência divina é anti-evangélica.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 2,1-11

Na oração:

Deixe-se mobilizar pelo Espírito: Ele suscita, em você e na realidade, ricas possibilidades que equivalem a um saboroso vinho da melhor qualidade

Não seja nunca uma “talha de pedra” que sufoca a Vida. Mereça a Vida que Deus lhe dá! Que em você, a vida saboreada seja expressão de sua filial sintonia com o Senhor.

Faça-se disponível perante Ele; seja um bom recipiente do melhor vinho da Graça!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Batismo, início da vida itinerante de Jesus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Festa do Batismo de Jesus.


 “Quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também recebeu o batismo” (Lc 3,21)


Terminado o “tempo natalino”, começamos o tempo litúrgico conhecido como “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos. Toda a liturgia deste ano (2025) deve estar iluminada pelo tema do “Ano Jubilar”: “Peregrinos de esperança”.

O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar.

Com o seu Batismo, Jesus “começa algo novo”, um movimento de vida, fora das estruturas religiosas de seu tempo. É a primeira coisa que os evangelistas deixam claro. Todo o anterior pertence ao passado. Jesus é o começo de um caminho novo e, com uma presença inconfundível, reacende a esperança nas pessoas, sobretudo naquelas mais excluídas.

O relato do evangelho deste domingo afirma que Jesus deixou Nazaré, sua casa e sua comunidade, e se dirigiu para as margens do Jordão, onde fora batizado por João. Começa sua vida itinerante.

A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto misericordioso de Deus à humanidade. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.

Ele é o “autor” da estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.

Com os itinerantes Jesus dá início a um movimento a serviço do Reino e Ele mesmo é um itinerante. Não permanece numa casa, não se fecha em um lugar, não fundou uma instituição vinculada a um tipo de templo, sinagoga ou santuário, mas percorre, com um grupo de discípulos(as)/amigos(as), também itinerantes, os povoados e aldeias da Galileia, anunciando e realizando o Reinado do Pai.

Ele é o inspirador de toda itinerância; com sua peregrinação Ele abre possibilidade de outros caminhos. Ele convoca a todos a um seguimento que está profundamente conectado com o seu próprio destino.

Fazer caminho” não significa apenas deslocamento geográfico. As travessias nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o ser humano anda. Isso significa não perceber a profundeza do seu ser; “deslocar-se”, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma expansão do próprio olhar, uma abertura ao novo, uma alteração do ângulo habitual, uma adaptação a realidades, tempos e linguagens, um encontro com o diferente, um diálogo inspirador ou deslumbrado, que deixa necessaariamente impressões muito profundas.

Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-se configurar”, isto é, movimento pelo qual cada um vai sendo modelado à imagem d’Ele.

Para entrar em sintonia com o Peregrino, é preciso sair dos lugares estreitos, das posições fechadas, das ideias fixas..., e “fazer estrada” com Ele. Aqui está a verdadeira identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus: o(as) “adeptos(as) do caminho”.

De fato, em seus inícios, o cristianismo era conhecido como “o Caminho” (At 18,25-26). Tornar-se cristão não era simplesmente entrar numa nova religião; era encontrar o caminho acertado da vida, caminhando sob as pegadas de Jesus, para viver com sentido e esperança. A fé cristã não era entendida como um “sistema religioso” (leis, ritos, doutrinas, hierarquias...), mas um “caminho novo e vivo” que fora inaugurado por Jesus, um caminho que era percorrido com os olhos fixos n’Ele. Ser cristão significava, para eles, “seguir” a Cristo. Isto era o fundamental, o decisivo.

Por isso, não é estranho que ainda hoje podemos encontrar muitas pessoas que se sentem cristãs simplesmente porque foram batizadas e cumprem alguns deveres religiosos, embora nunca tenham considerado a vida como um seguimento de Jesus Cristo. Este fato, bastante generalizado, seria inimaginável nos primeiros tempos do cristianismo.

Então, qual o sentido do batismo de Jesus? Trata-se de um acontecimento que traz uma mensagem nova e que supera radicalmente o Batista. Os evangelistas cuidaram com esmero desta cena. O céu, que permanecia fechado e impenetrável, se abre para mostrar seu segredo. Ao abrir-se, não descarrega a ira divina que João Batista anunciava, mas revela o amor de Deus, o Espírito, que pousa pacificamente sobre Jesus. Do céu se escuta uma voz: “Tu és o meu Filho amado”.

A alusão aos céus que se abrem definitivamente é a expressão de uma esperança de todo o AT: “Quem dera rasgasses o céu e descesses!” (Is 63,19). A comunicação entre o divino e o humano, que havia ficado interrompida por culpa da infidelidade do povo, é, a partir de agora, possível graças à total fidelidade de Jesus. A distância entre Deus e o ser humano fica superada para sempre. Jesus ouviu a voz dentro de si mesmo e esta lhe deu a garantia absoluta de que Deus estava com Ele para levar a missão a bom termo.

A mensagem é clara: com Jesus Cristo o céu permanece aberto; de Deus só brota amor e paz; podemos viver com confiança. Apesar de nossas limitações e de nossa mediocridade, também para nós “o céu se abre”. Também nós podemos escutar com Jesus a voz do Pai: “tu és para mim um filho amado, uma filha amada”. De agora em diante podemos assumir nossa história de vida como a marca da dignidade de filhos(as) de Deus, e que devemos cuidar com zelo e agradecimento.

Para quem vive a fé no Deus que “rasga os céus e desce”, a vida se revela cheia de momentos de graça: o nascimento de uma criança, o encontro com uma pessoa cheia de bondade, o serviço gratuito, a experiência de um amor oblativo, o cuidado com a criação..., que põem em nossa vida uma luz e um calor novos. De imediato nos parece ver “o céu aberto”. Algo novo começa em nós: sentimo-nos vivos, desperta-se o melhor que há em nosso coração, reacende-se uma nova esperança, novas relações interpessoais são vividas...

Talvez aquilo que sonhávamos secretamente, agora nos é presenteado de forma inesperada: um início novo, uma vida diferente, um “batismo de Espírito”. Por detrás dessas experiências está Deus nos amando como Pai, está seu Amor e seu Espírito, doador de vida.

Recebemos o batismo gratuitamente; talvez, por isso mesmo, não damos o devido valor.

Efetivamente, não fomos consultados para ser batizados, mas tampouco fomos consultados para nascer, nem na família que temos. Tampouco nos pediram opinião para amanhecer em determinado lugar do mapa, nem para ser de uma determinada raça. E, no entanto, tudo isso é decisivo e nos constitui como pessoas.

Por que não damos o devido valor ao nosso batismo? Por que não somos mais humildes e nos coloquemos na fila dos demais? Por que não somos mais agradecidos e, com Jesus, mergulhemos nas águas do Jordão para sermos re-batizados?

Esquecemos que “ser cristão” é “seguir” Jesus Cristo: mover-nos, dar passos, caminhar, construir nossa vida seguindo suas pegadas. Nossa vivência cristã, às vezes, permanece numa fé teórica e inoperante, ou se reduz a uma prática religiosa rotineira, estéril, sem maiores compromissos; não transforma nossa vida em seguimento. “Batiza-nos, Senhor, com teu fogo!”

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 3,15-16.21-22

Na oração:

Nutramos nosso “ser peregrino” que carregamos dentro de nós! Deixemos que ele se submerja nas águas da vida, para um novo renascimento.

Despertemos a esperança adentrando-nos em “nosso Jordão”! E desfrutemos da paisagem externa, descobrindo assim a paisagem de dentro. Deixemos emergir nosso mapa interior. Contemplemo-lo e agradeçamos... tudo. O bom. O boníssimo e o difícil ou tortuoso. Assim é o caminho da vida.

- Sua vivência batismal se reduz a algumas práticas religiosas egóicas? Ou ela tem a marca de Jesus que, após seu batismo, viveu o compromisso com os pobres e excluídos até à radicalidade?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

“Magos”, os primeiros “peregrinos de esperança”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Epifania do Senhor (Dia de Santos Reis).


... retornaram para sua terra seguindo outro caminho” (Mt 2,12)

Celebremos “Epifania” situando-nos no horizonte do Ano Jubilar, com o tema: “Peregrinos de esperança”. Guiados pela estrela no céu e pela estrela de uma grande esperança no coração, os Magos começaram a caminhar. Na sua busca, examinaram o céu e auscultaram o próprio coração. Porque buscavam, empreenderam o caminho. Puseram-se a caminho porque tinham perguntas e uma inquietante esperança no coração.

A itinerância dos Magos vem nos recordar que “caminhantes somos”, todos no mesmo percurso, no mesmo voo, no mesmo barco. Mas temos esquecido nossa condição de nômades do tempo e da vida, peregrinos de Deus, pensando que podemos construir, com a ajuda do mesmo Deus, uma casa permanente sobre o mun-do, um “tabernáculo” perpétuo onde repousar, seja na forma “sacral” (nossas seguranças religiosas), seja na forma secular (nossos sistemas econômico-sociais). Mas, as condições dos tempos e, de um modo especial, a experiência mesma do evangelho, nos fazem descobrir que somos nômades do tempo e peregrinos de Deus, para além de todas as formas e estruturas que fomos criando ao longo da história.

Ser nômade do tempo significa caminhar (voar, navegar), leves de equipagem e por itinerários que ainda não foram percorridos por ninguém, não como aves migratórias que vão e voltam por rotas pré-fixadas na mesma evolução do tempo, pelas estações e pelos ventos da terra. Somente nós, seres humanos, somos verdadeiros peregrinos da criação, pois para continuar existindo precisamos abrir, por terra, mar e ar (ou seja, por nós mesmos, no interior de nossa humanidade), os caminhos que ainda não existem, pois nós mesmos os traçamos.

Peregrinos somos, e assim a festa da Epifania, inspirado no deslocamento dos Magos, nos leva para fora dos pequenos lugares de refúgio que fomos edificando (nossas torres de Babel) para amar, viver e morrer no descampado, como Jesus, enquanto buscamos e esperamos a cidade futura. Assim, caminhamos com Ele, sabendo que nem o olho viu e nem o ouvido ouviu o que poderemos olhar e escutar se continuamos caminhando com Jesus.

Na Epifania, não somos simples espectadores, mas, sim, criadores de futuro, ou seja, de nós mesmos, em Deus. Unidos por uma esperança compartilhada, queremos ser pessoas “epifânicas”, sabendo que nossa história não está escrita nem fixada ainda, mas que nós mesmos vamos traçando-a, enquanto Deus percorre seu caminho em nós e por nós. Como cristãos cremos que nossa vida não está escrita, mas que precisamos escrevê-la, nós em Deus e com Deus. Por isso “somos epifania”; vivemos em “estado de epifania”.

O caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e simultaneamente é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Assim se encontra a humanidade, sem rumo e num voo cego, sem bússola e sem estrelas para orientá-la nas noites tenebrosas.

Cada ser humano é “homo viator”, um itinerante pelos caminhos da vida. Assim disse o poeta cantor argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência acabada; devemos construi-la. E para isso é preciso abrir caminho, a partir e mais além dos caminhos andados que nos precederam. Assim, nosso caminho pessoal nunca está dado completamente: tem de ser construído com criatividade e sem medo.

Esse é o sentido de nossa existência: escolher quê caminho construir e como seguir por ele, sabendo que nunca o percorremos sozinhos. Conosco caminham multidões, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por Alguém chamado “Emanuel, Deus conosco”.

Todo caminho implica um mundo de relações; relações livres porque não sabemos com quem vamos encontrar; falamos de igual para igual, compartilhamos alegrias e tristezas, nossa conversação, nossa ajuda. Não há pré-juízos no trato mútuo, ajudamos e somos ajudados, carregamos a mochila de nosso irmão cansado, curamos suas bolhas nos pés; aproximamo-nos das pessoas sem barreiras, superando fronteiras de raça, credo e cultura.

Nosso caminhar pessoal, familiar, social, histórico... é um caminhar para a “terra prometida”, para o melhor, para a superação constante...; é um caminhar que se abre a nós cheio de possibilidades, que alimenta a esperança, que nos enche de novas energias..., porque Deus, que é novidade constante, nos impulsiona a partir de dentro.

Os sábios do Oriente, com humildade perscrutaram por entre as pegadas da ciência em busca da verdade e quando descobriram um vestígio dela, puseram-se em movimento.

Viram a estrela e partiram, seguindo seu caminho; e no seu trajeto se informaram, procuraram, indagaram, retomaram o caminho. Com a paciência do diálogo, com a humildade da espera, com a alegria da esperança, esses foram ao encontro da Verdade.

O cristão é alguém que vislumbrou a “estrela”, aponta-a e, junto com os outros, desloca-se seguindo sua direção. O caminho da vida é marcado por percalços, dúvidas, fracassos..., mas seu coração é portador da força insubstituível da busca.

Como os Magos, porque busca, desperta nos outros o “ser buscador” que está escondido.

No processo da experiência cristã, a busca é um dinamismo determinante da mente e do coração de cada pessoa. Aquele que busca, movido por uma razão, quando encontra vibra de alegria, como a parábola do buscador de pérolas.

“Se eles (magos) percorreram um caminho tão longo para ver o recém-nascido, que desculpa terás tu, se nem sequer fores ao bairro ao lado para visitá-lo enfermo e encarcerado”? (São João Crisóstomo).

De Deus viemos. Dele somos. Nele vivemos. Para Ele vamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.

Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos Pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo(a) seu(sua) seguidor(a). O mundo, nossa casa sem paredes.

Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.

Em chave de interioridade, podemos interpretar o relato de Mateus recorrendo à psicologia do profundo. Os magos representam o caminho que seguem aqueles que escutam seus desejos mais nobres do coração humano; a estrela que os guia é a busca do divino; o caminho que percorrem é o desejo; o menino é a eterna criança que nos habita. Para descobrir o divino no humano, para adorar o menino em vez de buscar sua morte, para reconhecer a dignidade do ser humano em vez de destruí-la, é preciso percorrer um caminho oposto àquele que Herodes segue.

Podemos também recordar o significado simbólico dos presentes que os Magos oferecem. Com o ouro reconhecem a dignidade e o valor inestimável do ser humano: tudo há de ficar subordinado à sua felicidade; um Menino merece que sejam colocadas a seus pés todas as riquezas do mundo.

O incenso recolhe o desejo que a vida desse menino se expanda e sua dignidade se eleve até o céu: todo ser humano é chamado a participar da vida mesma de Deus.

A mirra é o remédio para curar a enfermidade e aliviar o sofrimento: o ser humano necessita de cuidados e consolo, não de violência e agressão.

Texto bíblico: Evanglho segundo Mateus 2,1-12

Na oração:

No contexto pós-moderno, onde predomina o uso dos meios eletrônicos, os “lugares virtuais” acabam determinando nossa vida, nosso modo de pensar, nossa visão, nosso sentir... Enquanto a tecnologia nos permite transitar por todos os lugares e encontrar pessoas mais distantes, cresce, no entanto, o medo do outro, daquele que é “diferente” de nós, daquele que não pensa como nós, encerrando-nos em pequenos mundos. Assim, os “percursos virtuais” acabam atrofiando nosso horizonte, nossos desejos e inspirações; as relações tornam-se frias, neutras, não nos comprometemos com o outro e não permitimos o confronto; matamos a possibilidade de viver contínuas travessias.

- É preciso despertar o “mago peregrino” que habita no interior de cada um, para empreender caminhos novos e acolher descobertas surpreendentes.

- Sua vida carrega a marca dos “magos buscadores” ou de Herodes acomodado, amigo da morte?