terça-feira, 15 de abril de 2025

Sexta-feira da Semana Santa - Esperança crucificada

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da sexta-feira da Semana Santa - Paixão do Senhor (2025).

“A esperança nasce do amor e funda-se no amor que brota do coração de Jesus trespassado na Cruz” (Papa Francisco, Bula n. 3).

 

O mistério Pascal constitui o núcleo central da fé cristã, ou seja, a paixão-morte e ressurreição de Jesus de Nazaré e a efusão do Espírito sobre toda a Criação.

Este mistério pascal se estende também a todo o povo crucificado, ou seja, a esta grande maioria da humanidade que vive explorada e marginalizada, vítima dos interesses de uma minoria. Por isso, crer no Crucificado implica fazer descer da Cruz todos os que estão dependurados nela.

Mas a imagem da crucifixão se aplica também à situação de nossa Terra, explorada, desertificada, contaminada, com a biodiversidade destruída e os oceanos transformados em cemitérios.

Por sua atitude de arrogância e de autossuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a Terra herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar do seu jardim e de compartilhar os seus frutos.

Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As consequências trágicas estão presentes por toda parte. O desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra. Estamos diante da “Terra crucificada”.

A vida cristã significa encontro e seguimento de Jesus de Nazaré, libertador e fundamento de nossa esperança. Na realidade, a esperança cristã nasce a partir da morte de um homem simples e pobre, assassinado numa cruz, desprotegido, abandonado, condenado injustamente como um homem perigoso, porque se rebelou contra as estruturas religiosas e contra os poderosos daquele tempo.

Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte...  Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.

“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...

Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que quer que todos vivam intensamente.

A vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.

Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos sabem viver, porque incapazes de re-inventar a vida no seu cotidiano e alimentar uma ousada esperança. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia a dia, carregá-la de sentido.

A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de cada um, enquanto vive: sonhos, criatividade, intuição, esperança. “A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).

Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.

O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”

Quando fazemos o percurso em direção ao Gólgota, em comunhão com Aquele que foi fiel até o fim, não estamos fazendo um ato derrotista, nem de tristeza inútil, nem de mergulho na escuridão existencial. Estamos fazendo uma profissão de fé na força da esperança.

Esperança é uma virtude vencedora. Quando tudo parece perdido, irremediável, destruído, ela comparece para salvar. Ela é capaz de transformar a derrota em vitória, o perigo em alívio, o desespero em alegria. A esperança é tão poderosa que consegue tirar do domínio da morte os que não veem mais razões para viver. 

A esperança transforma as cinzas em fênix, a cruz em sinal de vida, as lágrimas em vitória. A esperança é a última que morre, diz o jargão popular. Ela é desprezada pelos pessimistas, ameaçada pelos gananciosos, agredida pelos incrédulos. Da esperança tudo renasce, ainda que pareça impossível recomeçar.

O pecado costuma bloquear a esperança, causar o desânimo e desiludir quem ia bem e de repente cai. A esperança é uma senhora que vem dar a mão àquele que se desiludiu consigo mesmo ou com a situação em que foi precipitar-se.

Embora tudo pareça arruinado, há uma potência interior que não permite ao ser humano desistir de si mesmo nem dos outros. Ela recobra a energia do perdão, o ânimo para não desistir, a confiança nas pessoas, a amizade que ficou ameaçada, a fidelidade a uma causa nobre.

A esperança é filha da e ambas se juntam para que aconteça a caridade.

Ao entrar no caminho do Calvário, mergulhamos no mar da esperança e dele saímos transformados, renovados em nosso ânimo e certos de que a morte não tem a última palavra, pois a Cruz já aponta para a Ressurreição, e aquilo que parecia não ter mais remédio encontrou vida nova.

Podem nos roubar a paz, a honra, a dignidade, a saúde, a alegria, a confiança, mas não podem nos roubar a esperança, se cremos na força criativa de nós mesmos, na capacidade de reerguer do chão, mesmo se a queda se repetiu três vezes no caminho do Gólgota.

O Jesus que seguimos até o Calvário nos levará à Páscoa. A esperança não nos será roubada, a alegria voltará a acontecer, pois não estamos sozinhos. Ele vive entre nós!

“Esperamos contra toda a esperança”, como Abraão, Maria e o próprio Jesus.


Textos bíblicos: Evangelho segundo Marcos, capítulos 14 e 15; João 18,1-19,42

Na oração:

- A dor, como consequência de uma opção de vida, é o subsolo do qual brota a esperança.

- O sofrimento não se anula nem se nega, mas está sempre transpassado pela esperança.

- A esperança que brota do sofrimento possibilita um “perene nascer do coração”.

Na Paixão, tornamo-nos solidários com a dor de um Homem que espera, apesar de tudo, e que se abre à dor de todos, encontrando na solidariedade e na dor dos outros, razões para relativizar sua própria dor.

Jesus foi realmente o homem solidário com a dor da humanidade para contagiar a todos com sua esperança de vida plena e definitiva. Jesus assume a dor de todos e desvela o ser humano à luz da esperança.

Esperança de vida: a Cruz – que se completa com a mensagem da ressurreição, com a qual forma um único acontecimento – proclama que a Vida não morre; que, inclusive naquelas circunstâncias nas quais parece que tudo é fracasso, a Vida abre caminho; nenhuma morte é o final.

Quinta-feira da Semana Santa - ELE começou a lavar os pés dos discípulos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da quinta-feira da Semana Santa - Ceia do Senhor e Lava-pés (2025).

“Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13,5)

Jesus, durante sua vida pública, revelou uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só participou de muitas refeições, mas instituiu a grande Mesa da festa, da intimidade, da memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.

Ali, Ele “despojou-se do manto” (sinal de dignidade de “senhor”), pegou o avental (toalha, “ferramenta” do servo); “derramou água numa bacia...” (água derramada com extrema delicadeza, com atenção e amor); “...e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha(Jesus inclinou-se aos pés dos seus discípulos, até o chão, com reverência, cuidado, acolhida, sem fazer distinção de ninguém; lavou os pés de todos igualmente).

 Jesus está no meio das pessoas como Aquele que serve. Ele é o Senhor que assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas para seus seguidores. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio.

No “lava-pés”, Jesus deixa transparecer um amor que escandaliza, porque rompe todos os cânones estabelecidos. Um amor “subversivo”, porque subverte os critérios sociais e religiosos de seu tempo, desloca advérbios, adjetivos, nomes: acima-abaixo, dentro-fora, mais-menos, primeiros-últimos, poder-serviço, sábios-néscios, cegos-videntes, justos-pecadores, sãos-enfermos... Com sua atitude, Jesus subverte as crenças religiosas de seu tempo (centradas na lei) para reivindicar os atributos próprios de Deus em quem Ele acreditava; Ele deixa transparecer o rosto amoroso e cuidadoso do Pai.

Um amor inclusivo: não discrimina a ninguém, constitui uma comunidade de iguais, unindo em torno a si homens e mulheres, crianças e idosos...

Um amor universal e preferencial: todas as pessoas cabem em seu coração, mas de um modo especial as pessoas excluídas por qualquer razão: os pobres, os enfermos, os marginalizados, os considerados pecadores, judeus e pagãos...

Um amor que se faz estremecimento das entranhas e que gera uma atitude de compaixão operativa.

Um amor que, como a água pura, se “derrama” e se expande no cuidado simples, despojado, acolhedor...

Para revelar seu extremo amor, Jesus toma em suas mãos o elemento da natureza mais universal: a água. Ele “derrama água numa bacia”: gesto simples, mas carregado de significados; é símbolo de vida derramada, doada, entregue.  A água dá vida, regenera, purifica, é disponível a todos; não vive para si mesma, senão para quantos dela necessitam; adapta-se a todos os tempos, recipientes e lugares. Sabe estar em jarras de barro e em vasilhas de ouro. Sabe manchar-se para que os outros estejam limpos. Não faz distinção das criaturas: a todas molha, lava, põe frescor e beleza.

A água é canção, alegria, paisagem, espelho de sonhos e poesia. Ela transforma, regenera e põe vida em toda a Criação. Ela abre os povos à comunicação, à cultura e ao encontro. Ela está sempre disponível e aberta a todos os campos, terra, plantas, animais e pessoas que dela precisam.

Na cultura hebraica, a hospitalidade exige que se ofereça água fresca ao visitante, para que lavem seus pés, a fim de assegurar a paz de seu descanso.

A Campanha da Fraternidade deste ano vem nos lembrar que no princípio eram as águas; águas que criam e re-criam o universo. Elas tomam as mais diferentes formas. Na natureza, contornam todos os obstáculos, esculpem as pedras dos rios e o fundo dos mares; elas se manifestam tranquilas nos lagos, rebeldes nas cachoeiras, abençoadas nas chuvas, sempre em movimento. “A água nunca descobrirá o que ela é. Mas, precisamente por ser água, continuará a brotar, a cantar e a lavar a terra e a buscar o mar”.

Apesar de tomarem as mais variadas formas, nem perdem sua identidade, são sempre flexíveis, maleáveis, por vezes teimosas a percorrerem seus caminhos ao encontro do mar.

Águas, dádivas divinas. Águas que matam nossa sede e nos curam; águas que nos purificam e refrescam; águas que nos descansam e nos reanimam. Águas que envolvem e acolhem a todos sem distinção; águas sem preconceitos; águas que não se recusam em umedecer territórios ressequidos, nem se espalhar em lugares sujos.

Deus cria a partir das águas. Só podemos ser co-criadores a partir das águas. Quem não cuida, não respeita e não tem uma relação de veneração e de encantamento para com as águas, não pode ser criativo.

Urge recomeçar, re-criar a partir da água, antes que seja tarde demais. No princípio era a água, mas ela também poderá chegar ao fim. O clamor das águas contaminadas de nosso tempo chega aos céus.

Como profetizas, as águas consolam os cansados, saciam os sedentos, lavam os suados pelo trabalho, revigoram as forças dos desanimados, mas também as águas clamam por respeito e por justiça.

Os rios fervem o sangue de indignação contra cidades desgovernadas, empresas e pessoas poluidoras que tratam o “sangue da terra” como se fosse receptor de resíduos tóxicos. Ai de quem mata as nascentes, asfixia os mananciais e envenena os rios!

A trajetória do Povo de Deus foi marcada pela experiência com a água. Ela está relacionada com os principais eventos fundantes do povo da Bíblia: na criação, no dilúvio, na saída do Egito, na entrada da Terra Prometida, etc... Qualquer projeto bíblico só se sustenta perto de fontes de água, de rios ou cisternas.

Segundo o relato bíblico de Gn 2,1-10.15, a terra é vocacionada para ser um jardim de Deus e o ser humano, um jardineiro. As águas foram feitas para irrigar o jardim da vida.

Para os povos de regiões áridas, a primeira obra de Deus foi viabilizar a chuva sobre a terra e irrigar uma região quase desértica.

A Bíblia testemunha um mistério em torno dos poços de água. “Todo deserto contém um poço escondido” (Saint-Exupèry). Em uma região árida, cada fonte, cada olho d´água, cada poço é quase um milagre. Toda fonte é sinal forte da benção divina, um presente de seu amor.

As fontes fazem parte da promessa de Deus para o seu povo (Dt 8,7-8).

E a Água se fez “carne” e habitou em todas as criaturas do universo. Não somos apenas filhos e filhas da água. Somos mais: somos água que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria... Estamos vinculados à Criação toda através da água.

Devemos nos espelhar na gestualidade de Jesus que derrama água para lavar os pés de seus discípulos.

O desafio de viver uma “ecologia integral” convoca todas as tradições humanistas e religiosas a salvarem o planeta Terra. Se a água nos trouxe à vida, o dia que ela acaba não restará nenhum ser vivente. É através da água que é possível estabelecer uma profunda unidade entre todos os seres vivos e não vivos.

Pertencemos todos à água e ela nos pertence; ela é o sangue que circula pelas veias da Criação inteira, possibilitando e recriando a vida; é ela que alimenta a interdependência entre os seres. Assim como os minerais combinam e intercambiam moléculas e cores, a água é a mediação através da qual os seres vivos compartilham suas vidas.

“Tal qual poça d´água deixemos o céu refletir em nós” (Dom Helder)

Texto bíblico: Evangelho segundo João 13,1-15

Na oração:

É preciso compreender que o gesto do “lava-pés” constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade d’aqueles que seguem Jesus e exercem algum serviço em sua comunidade. Gesto que é revelação e ensinamento, amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...

Na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”: vestir o coração com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço gratuito...

Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo. 

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Quarta-feira da Semana Santa - Jesus se pôs à mesa com os Doze

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da quarta-feira da Semana Santa (2025).

“Ao cair da tarde, Jesus se pôs à mesa com os Doze”

Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” da Última Ceia, uma refeição tão especial e carregada de sentido. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como marca dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.

É em torno a esta mesa que os seguidores de Jesus se constituem como verdadeira comunidade. Ao recordar a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.

Jesus quis cear com os seus amigos mais próximos e, por isso, precisa encontrar uma sala na qual houvesse espaço para estarem juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que acontecem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...

Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes. Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino. E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.

Jesus fez questão de se confraternizar com o círculo dos amigos, do qual Judas fazia parte.

Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que se serviu comigo do prato é que vai me entregar". Esta maneira de anunciar a traição acentua o contraste. Para os judeus a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus sugere assim que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição.

Na descrição da paixão de Jesus do evangelho de Mateus acentua-se fortemente o fracasso dos discípulos. Apesar da convivência de três anos, nenhum deles ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus conta isto, não para criticar ou condenar, nem para provocar desânimo nos leitores, mas para ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos.

Preparar a mesa e fazer a refeição implica todo um ritual. Comer é mais do que ingerir alimentos, é entrar em comunhão com as energias que sustentam o universo e, por meio dos alimentos, garantem a vida.

Por isso, a mesa, a ceia e o banquete são cercados por uma rica simbologia. O próprio Reino de Deus, a utopia de Jesus, é apresentado como uma ceia ou um banquete na casa do Pai

É junto à mesa que se dá o processo de humanização e comunhão; a partir desse ato sagrado, podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).

É assim a comunidade dos cristãos, a Igreja: juntos, conspirando”, mãos dadas, comendo o pão, bebendo o vinho e sentindo uma saudade/esperança sem fim...

À luz do tema da CF (Fraternidade e Ecologia integral) podemos dizer que no pão e no vinho chegam até nós os quatro elementos da mãe natureza: a terra, o sol, a água e o ar. Através do pão e do vinho entramos em comunhão com essa natureza que nos envolve e nos protege maternalmente. Comungamos com ela e dessa comunhão surge nossa humanidade, na qual se encarna o Filho de Deus.

É o Papa Francisco que, em sua importante encíclica (Laudato Sí), faz alusão a esta dimensão cósmica da Eucaristia. Porque, no pão e no vinho se concentra toda a essência da Criação, a exuberante riqueza de seus recursos, a fecundidade inesgotável da terra, a beleza deslumbrante de suas fontes, de seus mares e rios, de seus bosques, de suas montanhas...

Assim expressa o para no n. 236 da encíclica: “A Criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. No auge do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz a partir de cima, mas a partir de dentro, para podermos encontrá-Lo em nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, e é o centro vital do universo, o centro transbordante de amor e de vida inesgotável. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a Criação. No Pão Eucarístico, a Criação está orientada para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”.

O texto é, sem dúvida, de uma grande densidade teológica. Os dons eucarísticos, o pão e o vinho, por sua condição material e terrena e por sua vinculação ao trabalho do ser humano, são parte da Criação, são algo nosso, um “pedaço de matéria”; pertencem à nossa condição mais própria e íntima. Tudo isto nos faz tomar consciência de que, no insondável mistério eucarístico, os dons apresentados são uma representação do cosmos. Todo o universo cósmico é assumido e representado na Eucaristia. Deste modo a Eucaristia se torna o centro do cosmo, o centro vital do universo; ela é celebrada sobre o altar do mundo.

O Universo inteiro é um imenso altar cósmico sobre o qual celebra-se, diariamente, a liturgia da vida; ao mesmo tempo, ele é o lugar no qual podemos contemplar e acolher a presença do Criador, a harmonia dos seres, a comunhão das criaturas. Sobre o altar do mundo se entrelaçam o céu e a terra, de modo que toda a Criação é iluminada pela Eucaristia.

Todas as criaturas celebram a grande festa, ao redor da Mesa cósmica (Última Ceia – Ceia universal).

A vivência da Última Ceia nos proporciona uma fecunda experiência cósmico-ecológica. Sentimo-nos conduzidos pela força do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Ao mesmo tempo ela nos convida a nos posicionarmos de maneira diferente no Universo e levarmos a sério a responsabilidade que temos sobre a Criação.

E a “eucaristia cósmica” se prolonga nas refeições cotidianas. A comida-bebida é expressão de dependência, de nossa condição de criaturas.  Por esta ação, manifestamos e experimentamos que necessitamos sair de nós mesmos para subsistir. Nela nos encontramos com algo que nos vem de fora e que necessitamos vitalmente, já que não podemos tirá-la de nosso interior.

Somos solidários do universo porque dependemos dele. É nossa dimensão cósmica mais palpável. Vivemos graças aos frutos da terra. Este sentido de religião já nos insinua o religioso.

O fato de tomar juntos uma refeição é sinal de comunicação inter-humana, pois comemos em companhia e não sozinhos. Na sua raiz, a refeição é uma ação que implica comunidade, comunhão, comunicação. Se falta esta dimensão, a refeição se torna uma simples ingestão de alimento; não é um ato humano integral: comer e beber é expressão de nossa unidade de origem e de nossa solidariedade na condição humana; compartilhamos uma mesma origem e um mesmo destino, um mesmo enraizamento na terra, no cosmos.

Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 26,14-25

Na oração:

Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.

- Re-visitar o sentido e o lugar da mesa-refeição no seu ambiente familiar: é lugar facilitador de partilha e convivência?  

domingo, 13 de abril de 2025

Terça-feira da Semana Santa - Anúncio da traição

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da terça-feira da Semana Santa (2025).

“Um de vós me entregará... Era noite”

A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade profunda.

Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever de todos em lavar os pés uns dos outros. Judas já tinha tomado a trágica decisão e, depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.

De fato, na contemplação da Última Ceia, um personagem vem sempre à nossa lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição a Jesus, mas, no fundo, ele nos causa repulsa porque é projeção das nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.

Mas... o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro? Por que traímos o amor de Deus por todos nós?

Judas ficou decepcionado com o chamado de Jesus. Tinha outros interesses e não conseguiu entrar em sintonia com o coração e o projeto do Mestre; ele destoa porque não captou que em torno a Jesus tudo é gratidão e gratuidade.

Judas aparece nos três relatos evangélicos destes dias (segunda, terça e quarta-feira), não como protagonista, mas como alguém deslocado, frio e insensível diante do drama que Jesus está vivendo; aliás, é ele mesmo que alimenta mais ainda o drama da dor e da perseguição imposta a Jesus.

Os evangelistas não deram muita importância à figura de Judas; na realidade, sentiam-se incomodados com ele e não aceitavam suas posturas e suas atitudes. No entanto, dada a importância do tema da traição, é Jesus quem intervém diretamente e des-vela as questões espinhosas que este discípulo carregava em seu coração. Há coisas que estão muito além do dinheiro: a delicadeza com as pessoas, os gestos de ternura e compaixão, o cuidado com os mais necessitados, o espírito gratuito de serviço...

A vida da comunidade cristã deve estar fundamentada nas atitudes oblativas e não nas conveniências do próprio “amor, querer e interesse”.

Na Última Ceia, que Jesus mesmo preparara com tanto cuidado, Judas só está fisicamente presente no ritual, mas seu coração está ausente, não consegue entrar no clima da refeição. Ele tem outras coisas para fazer e desaparece na noite, sem inteirar-se do sentido deste momento. Na verdade, ele está “vendido” a outros poderes; recebe promessas “de fora”, mas não se sente bem dentro da comunidade. Chegar à traição é só um passo.

O tema da Campanha da Fraternidade deste ano - “Fraternidade e Ecologia integral” - vem denunciar a grande “traição” vivida pela humanidade inteira; recebemos do Criador a nobre missão de “cuidar e guardar” a Casa Comum; no entanto, traímos a confiança que Deus depositou em cada um de nós; traímos a Criação inteira porque nossa presença se revelou destruidora da grande rede de vida; traímos as pessoas porque a insensibilidade ecológica é expressão de nossa insensibilidade diante do outro, sobretudo o outro violentado e excluído.

Por trás da palavra “traição” se esconde o drama da existência humana. Esse drama mostra-se trágico, pois revela uma aparente situação insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana.

A experiência de traição é de desvio de rota, de frustração da própria vocação, experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados, solitários...

Nossa comunhão sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi substituída por um profundo desespero. De fato, temos lavrado nosso próprio “inferno”.

Hoje constatamos as chagas ecológicas estampadas por toda parte e os próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão: buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...

O drama do ser humano é perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial. A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...

Há muitas causas que nos fizeram chegar à atual crise ecológica. Mas é preciso chegar à última: a traição do ser humano que significa ruptura permanente da re-ligação básica que ele introduziu, alimentou e perpetuou com o conjunto do universo e com seu Criador.

Com sua traição, o ser humano rompe com a solidariedade natural entre todos os seres, contradiz o desígnio do Criador que o quis como co-criador e que, através de sua inteligência completasse a criação imperfeita.

A salvação reside na re-ligação com todas as coisas. Não precisa necessariamente ser mais religioso, mas mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. Ele precisa voltar à Terra da qual se exilou e sentir-se seu guardião e cuidador. Então será refeito o contrato natural. E, ao se abrir ao Criador, saciará sua fome e sede infinita e colherá como fruto a paz.

É preciso aprender da Mesa deixada por Jesus: ela pode ser lugar da traição ou lugar de novas relações.

Jesus, o Homem do Cuidado e companheiro de mesa, nos convida a ser mesa de acolhida e de partilha, se quisermos ser seus amigos e amigas.

Ecologicamente falando, o relato da última Ceia nos indica várias lições:

Em primeiro lugar, ela expressa uma comunicação com a Terra da qual o pão e o vinho procedem. Comer e beber é entrar em comunhão com as energias e forças cósmicas; é receber a energia que renova a vida, regenera cada pessoa, que experimenta uma sensação de plenitude não só fisiológica, mas existencial, relacional, espiritual... A Terra e o Cosmos são, ao mesmo tempo, símbolos máximos de Vida, epifanias de uma Energia renovadora através do campo, de sua fertilidade, de seus frutos; através do sol, da lua com seus ciclos e estações, do mar... estamos conectados com o Transcendente e, portanto, com o religioso, inseparável do antropológico e do ecológico. Entramos em comunhão com toda a realidade cósmica, primeiro através da respiração, do banho nas águas, na recepção dos raios solares e, finalmente, no ato de comer.

Através desta união entre o cósmico, o humano e o divino, nasce a nova Criação; ela nos possibilita viver a ecologia integral redentora, ou seja, através do alimento há uma reconciliação entre o homem-mulher, a natureza e Deus.  Há união, harmonia entre criação cósmico-humana e Criação. Há uma reconciliação pacificadora que é comunhão entre humanidade, cosmos e Deus.

 

Texto bíblico:  Evangelho segundo João 13,21-33.36-38

Na oração:

Dê nomes às diferentes “traições” que podem se manifestar no cotidiano da vida: na relação com o Criador, com os outros, com a natureza...

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Segunda-feira da Semana Santa - A ceia de Betânia

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da segunda-feira da Semana Santa (2025).

 “Maria ungiu os pés de Jesus”

Estamos entrando na Semana Santa, a semana da Páscoa de Jesus, da sua passagem deste mundo para o Pai (Jo 13,1). A liturgia de hoje coloca diante de nós o início do capítulo 12 do evangelho de João, que faz a ligação entre o Livro dos Sinais (cc 1-11) e o Livro da Glorificação (cc.13-21).

Somos convidados a entrar na casa em Betânia: casa de encontro, da comunidade de amor e coração de humanidade:

- Com Jesus Mestre, para nos tornar mais humanos e próximos;

- Com Marta, para professar a fé e a servir na diaconia;

- Com Lázaro, para passar da morte à vida e caminhar na liberdade do Espírito;

- Com Maria, para quebrar os frascos e derramar o perfume da escuta e do amor.

Assim é a vida: amizade, gratidão, refeição, perfume que invade tudo...

Betânia é “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam nossas pobrezas pessoais e comunitárias, nossa pequenez abençoada e nossa fragilidade iluminada; mas, também é lugar onde se fazem visíveis as pobrezas de nosso mundo, da humanidade e da Criação inteira, que afetam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos confrontar em nosso seguimento de Jesus.

A casa deve ser escola de encontro e fraternidade. A comunicação (comum união) se celebra entre suas paredes que, em seguida, se expande para além de seus limites, despertando uma sensibilidade solidária.

A casa prepara para a vida, pois é ali que os fundamentos de uma personalidade vão se solidificando.

A casa é mais do que uma realidade física, feita de quatro paredes, portas, janelas e telhados.

Casa é uma experiência existencial primitiva, ligada ao que há de mais precioso na vida humana, que é a relação afetiva entre aqueles que a habitam e com aqueles que nela são acolhidos.

A casa nos ajuda a fincar raízes neste mundo e em nós mesmos; ela nos fixa no solo e nos fornece orientação; ela é o lugar seguro que nos possibilita repouso e revigoramento afetivo, bem-estar e proteção...; ela nos oferece um espaço estabilizador e nutridor, suscitando vigor e saúde integral.

Negar casa a alguém é negar-lhe o útero que protege e acolhe, é tirar-lhe a segurança necessária para viver, é fazê-lo um errante sem pátria e sem rumo. Perder a casa é se perder-se a si mesmo.

A casa é também o lugar da nova comunidade inaugurada por Jesus; é a casa do Pai (Jo 14,2).

Para Jesus, ser “humano” é ser casa aberta e acolhedora. Tal atitude pede “mais portas e janelas e menos espelhos”. No espelho nós nos vemos; e o que vemos não é o que somos, mas o que aparentamos ser. Desta percepção não saímos. O horizonte perceptivo é mínimo. O espelho é incapaz de revelar a verdade de nosso ser e de ampliar nosso mundo afetivo e social.

As portas e janelas, pelo contrário, ampliam nosso horizonte. Através delas renova-se o ar denso e irrespirável do interior da casa que geramos fechados em nós mesmos. As portas e janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a sociedade, sem a qual não existe relação humana. Elas servem para apontar aos outros que eles fazem parte de nossa vida e que, abertas, indicam que podem entrar em nossas vidas.

Como seguidores(as) de Jesus, habitando em casas construídas sobre a rocha do Evangelho, deveríamos nos preocupar mais com as portas e janelas e menos com os ornamentos dos espaços interiores. É preciso descobrir outros rostos e de maneira especial, rostos feridos, machucados e necessitados de abraço.

É da nossa condição humana buscar um espaço, um lugar hospitaleiro e acolhedor, o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados.

São muitos os lugares por onde transitamos, mas o mais importante deles é a nossa casa.

É preciso que você saiba acolher o outro. Existe uma crise de moradia muito mais grave que

a falta de casas: é a escassez de pessoas interiormente disponíveis para seus irmãos.”

O ícone da “casa em Betânia” revela-se instigante diante do processo destrutivo da “Casa Comum”;

Somos terra e esta é nossa casa, nossa irmã e nossa mãe”. Assim começa o Papa Francisco sua encíclica “Laudato si’”. No fundo desta encíclica, pulsa esta intenção: aspiramos nos salvar juntos, porque tudo nos afeta a todos no único mundo que temos.

A Terra, nossa casa ameaçada por processos de aquecimento e ruptura dos equilíbrios da vida em comum, se converte cada vez mais em um imenso depósito de lixo.

Frente a uma realidade que apresenta múltiplos aspectos, todos intimamente relacionados, o Papa Francisco propõe uma grande virada no discurso ecológico, passando da ecologia ambienta à “ecologia integral”.

Somos, pois, “Casa Comum”, conectados numa vasta rede de relações no qual vivem, convivem e interagem, muitas outras pessoas e criaturas, muitas delas sobrevivendo em condições de grande penúria, escassez e violência. Cuidar da casa comum supõe, portanto, cuidar da maneira como somos “casa”, como influímos nas vidas de outras pessoas, como contribuímos para que se sintam acolhidas e acompanhadas em seu meio. É descobrir aí um desafio que vai muito mais além do mero cuidado de algo externo: cuidamos de nós mesmos, de nossa humanidade e da rede de relações que nos mantém vivos.

Nosso mundo está interrelacionado, fazemos parte da única terra, vivemos dentro de ecossistemas, atmosfera, vegetação, animais e seres humanos; fazemos parte dessa vasta rede vital, mas não podemos destruí-la sem afetar a todos; qualquer mudança repercute em todo o cosmos.

Um passo a mais damos quando reconhecemos a Natureza, nosso planeta, como “casa comum”. Sentimo-nos implicados com ela ao reconhecê-la como nosso habitat necessário, habitat por sua vez compartilhado com outros seres humanos; podemos assim nos posicionar de maneira criativa, reconhecendo a necessidade de não a deteriorar ainda mais e de conservá-la, e inclusive melhorá-la, para as gerações futuras.

Na unção em Betânia, Maria pode ser considerada como um ícone da nova sensibilidade que o evangelho

nos oferece. Ela está dotada de uma sensibilidade muito superior à dos discípulos, tanto para perceber o que acontece como para expressar seus sentimentos com admirável fineza e liberdade.

Os dirigentes judeus andavam buscando uma ocasião para matar Jesus. Maria, certamente havia escutado os rumores que chegavam da vizinha Jerusalém e que circulavam em voz baixa entre as pessoas do povo. Ela sintonizou com este momento dramático. Sua criatividade feminina encontrou no perfume um símbolo para expressar com grande delicadeza o que esse momento transbordava seu coração. Maria investiu num gesto gratuito e desmedido, expressão de um amor exagerado.

O excesso de seu gesto sintoniza perfeitamente com o amor sem medida de Jesus, mas ultrapassa a limitada capacidade de compreensão dos presentes à mesa, sobretudo Judas Iscariotes.

Os perfumes e os aromas estiveram muito presentes na vida de Jesus, em seus momentos de dor e prazer. O perfume revela e oculta ao mesmo tempo, aviva o desejo, a abertura à surpresa de uma presença. Jesus os recebeu agradecido, e sua própria vida tomou o símbolo do frasco, precioso e caro, que se quebra para poder derramar-se em favor de muitos.

Quando a Vida nos unge, estamos potencialmente equipados para anunciar a boa nova, a luz, a cura, o cuidado... Ações que nos plenificam.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 12,1-11

Na oração:

A casa “imprime caráter” ou nós imprimimos caráter à casa? Tudo vai depender como se encontra a “casa interior”, o próprio coração.

Nesse sentido a casa torna-se Templo do Espírito pois ela nos ajuda a fazer contato com nossas “moradas interiores”: lugar de intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimento e construção de decisões.

- É do “interior habitado por uma Presença” que brota o impulso para a saída de si e viver a “cultura do encontro”.

- Seja “casa cristificada” onde a mão estendida se revela como gesto contínuo, sinal visível de um coração compassivo e acolhedor; quebre o “frasco” do perfume mais original, presente em seu interior, para perfumar os ambientes fétidos de mentiras, ódio, intolerância, preconceito...

A esperança de uma Jerusalém humanizada - Domingo de Ramos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho do Domingo de Ramos, em que celebramos a entrada de Jesus em Jerusalém.

 “Jesus caminhava à frente dos discípulos, subindo para Jerusalém” (Lc 19,28)

Depois de uma longa caminhada Quaresmal, chegamos à Semana Santa, onde celebramos os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, ou seja, os acontecimentos centrais de nossa fé cristã. O toque principal é dado pela Páscoa: “passagem” da morte à Vida.

Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos da Galileia, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava re-criar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...

Estavam subindo a Jerusalém”. A paisagem familiar da Galileia foi ficando para trás e a fadiga da subida pesava agora sobre seus corpos cansados; sabiam o que lhes esperava, sobretudo pela inquietação que enchia seus corações de obscuros presságios. O Mestre, eterno Peregrino, alimentava a esperança de levar vida a uma cidade carregada de morte; por isso, caminhava com passos rápidos, seguido dos seus discípulos.

Jesus, entra nesta cidade aclamado pelo povo simples. Há muitas formas de entrar na vida, nas situações, nos problemas, nos povos..., por razões e interesses muito diferentes e, portanto, com atitudes diferentes. Muitas são “entradas” de poder, seja de ordem política, militar, desportivas, eclesiástica... Jesus entrou em Jerusalém de maneira provocativa e ousada. Sua “entrada em Jerusalém” pode também ser uma ocasião privilegiada para questionar nossa presença nos grandes centros urbanos.

Assim, o percurso quaresmal desemboca na cidade e nos convida a examinar nossa presença cristã nas cidades: como torná-las mais humanas, acolhedoras e possibilitadoras da vida.

A Campanha da Fraternidade deste ano pede de todos nós, seguidores(as) de Jesus, uma atitude ecológica, também nos grandes centros urbanos, através de uma “incidência política”; cada vez mais nossas cidades se revelam irrespiráveis, contaminadas, com diferentes expressões de muros que alimentam conflitos e divisões; é preciso criar “oásis de humanidade”, onde todos possam se sentir em casa.

Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade..., desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.

Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galileia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos.

Entrar Jerusalém” com Jesus é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o(a) seguidor(a) de Jesus tem em quem se inspirar.

As pessoas e os povos de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de seu interior, sonhos de rara beleza, uma esperança ousada, um sentimento de profunda comunhão com tudo e com todos (ecologia integral). São desejos de construção de uma nova Jerusalém, a cidade humanizada, ou seja, espaço de acolhida, de convivência, de proteção e cuidado da vida, de fraternidade... Era certamente nessa direção que Jesus apontava, ao se dirigir a Jerusalém como a cidade das esperanças e possibilidades.

Este é um dos grandes desafios nas nossas grandes cidades. Romper com o individualismo e as estruturas petrificadas que marcam as relações entre os homens e as mulheres, para criar um marco novo, humanizador e aberto a Deus Pai, através de pequenas comunidades. Comunidades daqueles que confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas – as mesmas esperanças, os mesmos sonhos, a mesma utopia da “Cidade Nova” do Reino.

Esta Cidade Nova deve estar circundada por “Novos Céus e Nova Terra”, assentada no centro de uma Nova Criação; portanto, em equilíbrio e beleza ecológica visível, integrada neste horizonte mais amplo da Nova Criação, que é manifestação da chegada de toda a realidade à sua plenitude.

Todas as expressões de vida devem estar inter-ligadas e inter-dependentes, constituindo uma Ecologia Integral, perpassada pelo mesmo Sopro do Espírito.

O mundo urbano é, certamente, área de missão da Igreja e dos cristãos. Sua principal preocupação é a defesa integral da vida e de seu sentido último, o mundo dos valores éticos que iluminam o homem e a mulher na sua ação no mundo.

No meio das cidades encontramos pessoas “especiais” que se comprometem alegremente com a humanização dos espaços, e se convertem assim em fator essencial de esperança para um futuro novo; são pessoas que “gastam” suas vidas, sua acolhida e seus cuidados em favor das vítimas da violência e da destruição.

A cidade é uma realidade humana que pode e deve ser iluminada pelo Evangelho, sustentada pela graça, animada pela esperança da vinda do Reino. É necessário aprender a ler a cidade com os olhos caridosos, pacientes, misericordiosos, amigos, fecundos, cordiais...

Para o(a) seguidor(a) de Jesus, a cidade é também o espaço para a busca e o encontro de Deus. Podemos falar de um “típico modo de proceder cristão” em sua referência ao espaço urbano.

É Deus que constrói a cidade perene, a cidade sem muralhas, a cidade da plenitude e da amizade, a cidade da fraternidade na qual todos se reconheçam como irmãos e irmãs sob um único Nome e sob um único Céu. Deus é o grande arquiteto; é Ele quem constrói, para a humanidade, a imensa cidade na qual todos se reconhecem fraternos, próximos, ternos...

É nessa direção que somos chamados a sermos colaboradores para “pôr o coração de Deus no coração da grande cidade”, e renová-la a partir de dentro.

A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica, portanto, romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência.

Somos chamados a uma pertença pessoal cada vez mais ampla, até sentir-nos parte da “Jerusalém” que sonhamos. Precisamos de fronteiras, sim, mas que sejam fronteiras abertas ao diálogo, flexíveis, fluidas, acolhedoras do diferente...

Nossa vocação é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas sociais, políticas e econômicas que tornem possível o diálogo, a solidariedade e o encontro entre todos os seres humanos e aponte para uma nova cidade, fraterna e justa.

Este pode ser nosso “Domingo de Ramos”: desejar, sonhar, alimentar esperanças, ver a Jesus nos pobres, nos excluídos, nos sofredores, e forrar seu caminho com nossos mantos, alegrar-nos com Ele, bendizê-lo e sermos benditos por Ele, enquanto, cuidando dos pobres e da Criação, neles cuidamos de nosso Rei.

Podemos, então, proclamar em alta voz: “Hosana”, “hosana nos céus e nas criaturas”, “hosana em todas as pessoas”, “hosana na Criação inteira” ...

Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 19,28-40

Na oração: O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, transformadora, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.

A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde, da ecologia..., onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...

- Traga à “memória” o que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?...

- Procure descobrir “sinais do Reino de Deus” no meio do ritmo frenético de sua cidade.

- Traga à mente nomes de pessoas corajosas e criativas que contagiam e fazem crescer a esperança na sua cidade.