terça-feira, 17 de junho de 2025

“Saciou de bens os famintos…”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi).

“Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão” (Lc 9,16)

 

Celebramos o “Corpo de Cristo”, uma das celebrações mais ricas que nos faz pensar em seu conteúdo e simbolismo... Mas, como celebrar este “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos dilacerados, explorados, odiados, famintos...?

Temos muito o que pensar e rezar diante dos corpos, tanto diante do Corpo de Cristo, como diante dos corpos que passam fome, que são explorados, que sofrem... Não esqueçamos isto: Corpo de Cristo...  comunhão, outro, fome, pão... partilha... celebração, amor, corpos...

Jesus Cristo nos fascina por ter a coragem de ser diferente em sua época, por ser Ele mesmo e estar profundamente integrado com seu corpo, colocando-o a serviço e crescimento do outro... do outro corpo.

Jesus, na vivência de sua corporalidade, destravou e dignificou os corpos dos outros: diante dos corpos doentes... curou; diante do corpo pecador... amou, perdoou, abençoou, encorajou; diante dos corpos esfomeados: alimentou, multiplicou os pães; diante do corpo sem vida: “ jovem, levanta-te!” vida nova; diante dos corpos que exploram/roubam: protestou, rejeitou, não façam da casa  de meu Pai um covil de ladrões; ai de vós, fariseus hipócritas, que se preocupam demais com as aparências dos “corpos”... e não vêem o interior.

Os Evangelhos nos recordam que foi no gesto do partir e repartir o pão que Jesus deixou transparecer o verdadeiro sentido do seu Corpo:  vida que se doa para aliviar todo “sofrimento humano” (curas), para proporcionar a “refeição partilhada” (ceias e multiplicação dos pães) e para ativar “novas relações humanas” (sermão da montanha).

Contemplar as cenas evangélicas é atualizar em nós estas três preocupações centrais da vida de Jesus. Aqui se conecta a essência de Sua vida com a nossa vida de seguidores(as).

Para Ele, no banquete da vida não basta dar e receber generosamente, mas acolher com gratuidade todo aquele que não pode oferecer nada em troca. A honra não se fundamenta mais no poder e no prestígio, mas na bondade, humildade e hospitalidade. A nova comunidade do Reino é esse banquete no qual todos tem lugar, seja qual for sua origem, crença, situação pessoal; ali todos se sentem convidados, sem merecimentos exclusivos nem dignidades adquiridas.

A “mística da mesa” não só nos recorda o modo original de Jesus agir, senão que é um chamado à comunidade cristã para que seja comunidade inclusiva e aberta, onde as diferenças são respeitadas, os espaços de igualdade são construídos, onde o Deus gratuito e cheio de amor e perdão é proclamado. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem.

Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro, alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida... Tudo aquilo que acontece na alegria, tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo em nós, ou alguém fora de nós.  Multiplica-se, triplica-se os cestos de pão.

Na mesa e na partilha do pão “cristificamos” e “sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano, vêm carregados de tão rico simbolismo: quando postos à mesa significam a mãe natureza dadivosa e boa, criada por Deus e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar para continuar a viver.

A relação de alteridade à mesa tem o poder de reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres diários. A presença provocante do encontro com o outro, desperta em nós o “dinamismo conspiratório”, ou seja, respiramos juntos o mesmo ar, compartilhamos o mesmo sonho, a mesma missão...Um caminho “mistagógico”, que é pura acolhida do Mistério revelado na mística da mesa.

Esse caminho é busca, encontro e acolhida.

Jesus, durante sua vida pública, desencadeou um “movimento de vida” e vida em plenitude. E este “movimento humanizador” se visibilizou, sobretudo, junto às mesas da refeição e na partilha do pão.

Jesus entendia e celebrava as refeições como sinal da presença do Deus Pai providente, que alimenta e cuida de todos os seus filhos e filhas; mas deviam ser refeições abertas aos pobres, sem distinções de pureza-impureza. Jesus comia e bebia em meio a um mundo injusto, para iniciar um caminho de revelação do Deus do Reino, partilhando o pão e o vinho com os necessitados, na alegria e na solidariedade.

Por isso, sua religião não era a do jejum, mas celebração de bodas e comunhão de mesa (refeição compartilhada). Fariseus e batistas antigos (e muitos cristãos de hoje) entendiam o jejum como rito de mortificação, uma renúncia centrada em si mesmo e esvaziada de qualquer relação com os outros. Jejuar por sacrifício para assim ter “méritos” diante de Deus. No seu horizonte, o outro não está presente; jejum auto-centrado é tortura inútil.

No relato da “multiplicação dos pães”, segundo o evangelista Lucas, a cena acontece em um “lugar deserto”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o que Deus realiza em nossas situações concretas.

Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes, dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita pobreza.

De alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto, onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão dispersa de escravos a um povo unido e livre.

O povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o “fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.

Longe do templo e das autoridades judaicas, seguido por uma multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa dele, aberta a um processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para todos. O congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é substituído pelo congraçamento em torno a Jesus, no lugar onde Ele estiver, com a multidão que o segue.

Enquanto a Páscoa no Templo favorecia os controladores dele, a Páscoa em torno a Jesus favorece e engrandece a todos. Também a centralidade do pão é trocada pela centralidade do próprio Jesus.

Ele dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de cinco mil pessoas famintas. É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É pouco, mas é dom de Deus, e o dom pode-se multiplicar, pois a graça partilhada tem alcance ilimitado.

Na Páscoa do Êxodo, as pessoas comeram às pressas, em pé, pães sem fermento, cordeiro assado e ervas amargas, cingidas, para viajar imediatamente (Ex. 12,8-11). Na nova Páscoa, elas comem organizadas em grupos, sentadas na relva, tranquilamente, sem pressa, pães e peixes, o tanto quanto necessitam para ficarem saciadas, e ainda sobra abundantemente, para o futuro.

A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas.

A partilha acontece quando há corresponsabilidade efetivamente solidária que leva a colocar, em comum, tudo o que cada um tem. Mas não termina aí: a Páscoa do pão sinaliza para a Páscoa da vida que se faz pão e do pão que permanece sempre.



Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 9,11-17

 

Na oração:

Qual é o pão que você busca?

- Como e de que maneira você se torna “pão” para os demais? O pão que você oferece aos outros alimenta o desejo de construir o Reino ou é somente um “pão que engorda e deixa acomodado”?

- Quem é “pão” para você, que alimenta e desperta o impulso para servir os outros?

- Quais são os “cinco pães e dois peixes” que você pode disponibilizar para alimentar a tantos?

- Sua participação na eucaristia implica passagem do “partir do pão” para o ser “pão partido e partilhado”?

sábado, 14 de junho de 2025

Trindade: Pai, Palavra e Vento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade da Santíssima Trindade.

“Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade” (Jo 16,13)

 

Todos nós já experimentamos, muitas vezes, a impossibilidade de comunicar algo muito profundo que sentimos ou vivemos; temos consciência de que não conseguimos nos fazer entender, porque não encontramos as palavras apropriadas para expressar nossos sentimentos mais nobres, nossos desejos mais oblativos, nossas inspirações mais elevadas. As palavras sempre são pobres e limitadas, pois não conseguem abarcar e expressar nossa realidade mais profunda

As palavras são, de fato, o comunicador menos eficaz. São mais sujeitas a erros de interpretação e compreensão. E por que isso ocorre? Devido ao que as palavras são; elas são meramente expressões orais: ruídos que representam sentimentos, pensamentos e experiências; as palavras são símbolos, não são a verdade, a coisa real. As palavras podem nos ajudar a “entender” algo, mas é a experiência que nos permite “saber”, no sentido de saborear.

Algo semelhante ocorre com o Evangelho deste domingo, festa da Santíssima Trindade. O que Jesus tinha a dizer para seus discípulos, o que gostaria de lhes comunicar, excedia a capacidade de compreensão deles. Foi preciso que eles vivessem um processo no qual o Espírito, lentamente, os conduziu à verdade plena, completa. O verbo que João usa - conduzirá à plena verdade – evoca o colocar-se em movimento, dirigir-se para... Não se trata de compreender algo racionalmente, mas de situar-se de outro modo diante do Mistério de Deus, numa atitude de abertura e acolhida.

Ao longo dos séculos, os teólogos realizaram um grande esforço por aproximar-se do mistério de Deus, formulando com diferentes construções conceituais as relações que vinculam e diferenciam as três Pessoas divinas no seio da Trindade. Esforço louvável, sem dúvida, nascido do amor e do desejo de Deus.

No entanto, eles abandonaram o estilo de Jesus, pensaram que com a razão poderiam ter acesso à intimidade de Deus; esqueceram a centralidade da experiência d’Ele e elaboraram alguns conceitos que passaram longe do mistério inesgotável da Comunidade Divina.

De fato, de Deus só conhecemos o que Ele mesmo revelou de si mesmo. Por isso, o ponto de partida deve ser sempre Jesus, porque o eixo fundamental de quem o segue é crer n’Ele como visibilidade de Deus, sem pôr em dúvida sua humanidade. Deus se dá a conhecer a nós em Jesus e se comunica conosco através de Jesus; portanto, crer n’Ele é crer que, não só seus ditos, mas toda sua vida é “Palavra de Deus”. Ele é a presença visível da comunhão Trinitária. Jesus não fala muito de Deus; simplesmente nos oferece sua experiência de Filho.

E Jesus é bem claro: O Pai vive n’Ele e Ele no Pai; e a Trindade vive também em nós. Somos moradas da Santíssima Trindade. Pertencemos ao mistério de Deus. E Deus pertence ao mistério de cada ser humano.

A Trindade habita em nós e nós habitamos nela. Não estamos vazios; podemos estar sozinhos, mas não vazios. Pode acontecer que não estejamos em nossa casa, mas continuamos habitados; pode ser que não tenhamos com quem falar, mas sempre tem os Três com quem dialogar todo dia. Pode ser que ninguém nos conheça, mas sempre há em nós uma Presença que nos conhece profundamente.

Esta experiência de “habitar” na Trindade e deixar que a Trindade nos “habite” pode transformar a raiz de nossa existência. Quanta nobreza! Esse intercambio mútuo, esta comunhão estreita, difícil de expressar com palavras, constitui a verdadeira relação do(a) discípulo(a) de Jesus com a Trindade. Aqui está a essência da nossa verdadeira identidade: somos sustentados(as) pela força e pela providência trinitária.

É preciso também ter presente que o dogma da Santíssima Trindade se revela muito distante para a linguagem de hoje e a razão não nos ajuda a viver este Mistério. No entanto, se formos além da sua formulação dogmática, poderemos descobrir a raiz evangélica que nela se esconde, ou seja, é em Jesus que descobrimos que Deus é para nós “Abbá, Verbo e Ruah” (Pai, Palavra e Vento).

Contemplando a Jesus vemos, pois, que Deus é o Pai Providente que sempre nos ampara, a Palavra que nos guia pela vida e o Vento que nos ajuda a caminhar. Deus se comunica conosco (Palavra), atua em nós (Espírito) e é nosso Pai (Abbá). E isto significa que Deus não é um ser “misterioso” e insondável, mas um Semeador que espalha a semente da Palavra continuamente e nos consola em nossa peregrinação pela vida.

De fato, quando escutamos Jesus falar de Deus, ou quando Deus nos fala de si mesmo através de Jesus, ficamos assombrados, porque não menciona nenhuma das qualidades maravilhosas que sempre lhe atribuímos, mas nos fala de Abbá, o Pai que sai, a cada entardecer, a esperar pela volta do seu filho perdido.

Jesus chama Deus de “Abbá” e o experimenta como um mistério de bondade; revela como uma Presença bondosa que abençoa a vida e atrai seus filhos e filhas a lutar contra tudo o que causa dano ao ser humano. Para Jesus, esse mistério último da realidade que chamamos “Deus” é uma Presença próxima e amistosa que está abrindo caminho no mundo para construir, conosco e junto a nós, uma vida mais humana.

 

Quando vemos Jesus dedicar sua vida a ensinar e a aliviar o sofrimento humano sem descanso, ou o vemos rodeado de multidões que lhe seguem fascinados, ou escutamos seus critérios poderosos de vida, ou o vemos capaz de levar sua fidelidade à missão até as últimas consequências... cremos que n’Ele “sopra” um vento irresistível, o “Vento de Deus”; é o mesmo Espírito (a Ruah de Deus) que impulsiona a humanidade e que atua em cada um de nós.

Jesus atua sempre impulsionado pelo “Espírito” de Deus; este é o amor do Pai que o envia a anunciar aos pobres a Boa Notícia de seu projeto salvador. É o alento de Deus que o move a curar a vida. É sua força salvadora que se manifesta em toda sua trajetória profética.

Este Espírito não se apagará no mundo quando Jesus se ausentar. Ele mesmo promete enviá-lo a seus discípulos. A força do Espírito os fará testemunhas de Jesus, Filho de Deus, e colaboradores do projeto salvador do Pai. Assim, como cristãos, vivemos na prática o mistério da Trindade.

Por fim, Jesus se experimenta a si mesmo como “Filho Amado” de Deus, nascido para impulsionar na terra o projeto humanizador do Pai e para levá-lo à sua plenitude definitiva, inclusive acima da morte. Por isso, busca em todo momento o que o Pai deseja. Sua fidelidade a Ele o conduz a buscar sempre o bem de seus filhos e filhas. Sua paixão por Deus se traduz em compaixão por todos aqueles que sofrem.

Em sintonia com o Pai, a existência inteira de Jesus consiste em curar a vida e aliviar o sofrimento, defender as vítimas e reclamar para elas justiça, semear gestos de bondade e oferecer a todos a misericórdia e o perdão gratuito de Deus: a salvação que vem do Pai.

Assim, somos um “mistério trinitário”; somos o mistério do Pai que nos gera; somos o mistério do Filho que nos revela a nós mesmos; somos o mistério do Espírito Santo que nos faz amadurecer em primavera de graça. Cada uma das Pessoas tem sua maneira original de agir em nós; cada uma tem sua própria obra em nós; cada uma tem seu próprio momento em nossas vidas. E nós somos fruto das três Pessoas.



Texto bíblico: Evangelho segundo João 16,12-15

 

Na oração:

- Como traduzir hoje, através da arte, a imagem clássica da Trindade representando um ancião, sentado junto a outro varão mais jovem, uma pombinha no centro e uma multidão de anjinhos ao redor?

- Como traduzimos e vivemos a experiência de Jesus que nos convida a chamar “Abbá” Àquele que nos deu a vida e nos envia a comunicá-la aos outros? Como encarnamos suas palavras, seus gestos, suas prioridades para nos identificar cada vez mais com Ele?

- Como nos conectamos continuamente com o Paráclito que nos foi dado? Com que outras imagens e símbolos o expressaríamos hoje?


sexta-feira, 6 de junho de 2025

Somos argila, mas portadores do “Sopro vital”

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade de Pentecostes.

“...mostrou-lhes as mãos e o lado; ...soprou sobre eles” (Jo 20,20.22) 

Chegamos à Páscoa do Espírito, o grande protagonista discreto que costuma passar despercebido; chegamos ao recomeço de uma nova história, de um presente criativo e de um futuro diferente. Chegamos, depois de cinquenta dias de encontros ressuscitadores, à possibilidade de “fazer novas todas as coisas”; recebemos Aquele que nos faz estremecer de esperança, que desperta grandes desejos e se revela como Alento vital.

Esta festa se enraíza na tradição judaica da Celebração das colheitas, quando eram oferecidos os primeiros frutos da terra, cinquenta dias depois da Páscoa; uma festa de agradecimento e fecundidade.

O Pentecostes cristão, no entanto, vem nos recordar que a humanidade não está abandonada por Deus, mas que o Espírito do Vivente está presente em nosso mundo e nas profundezas do coração humano; é Ele que sempre nos acode, com seu alento e consolo; é Ele que vem em auxílio de nossa fragilidade (Rm 8,26).

Na realidade, este dia festivo desperta a consciência de que somos “seres habitados” pelo Espírito, o Espírito do Senhor em nós. Às vezes, nem conseguimos percebê-lo, porque estamos envolvidos pela superficialidade da vida. Mas, em outras ocasiões sentimos de verdade que Ele está aí, no mais profundo de nosso ser. Ele sacode nossas entranhas diante da dor dos inocentes, e nos enternece com as coisas mais simples. Ele é presença e proximidade; se deixarmos guiar por Ele, não nos sentiremos sozinhos. Quando o esquecemos, Ele continua aí, sempre, paciente, esperando. Está dentro de nós sem nos anular, sem violentar. É companhia e refúgio, fortaleza e mistério, brisa e vento impetuoso.

Podemos, então, afirmar que o Espírito Santo faz parte de nós mesmos e não tem de vir de nenhuma parte. Está em nós, constitui nossa essência, antes mesmo que nós começássemos a existir. Ele é o fundamento de nosso ser e a causa de todas as nossas possibilidades de ser, enquanto humanos habitados. Nada podemos ser nem fazer sem Ele, mas tampouco podemos estar privados de sua presença em nenhum momento.

No início da Bíblia encontramos uma imagem muito bela e real do mistério da vida. Assim é descrita a criação do ser humano: O Senhor Deus modelou o homem do barro da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e ele tornou-se um ser vivente” (Gn 2,7).

O ser humano é barro; em qualquer momento pode desmoronar-se. Como caminhar com pés de barro? Como olhar a vida com olhos de barro? Como amar com coração de barro? No entanto, este barro vive! Em seu interior há um “sopro” que o faz viver; é o “sopro” de Deus, seu Espírito vivificador.

No relato do evangelho deste domingo, o Ressuscitado também “sopra” sobre sua comunidade, prolongando o Sopro original do Criador. A imagem de “soprar sobre eles” contém uma riqueza profunda: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo; trata-se de uma imagem que faz sentir a respiração comum que se compartilha com Ele e com todos os seres vivos.

As angústias mais radicais do ser humano são reunidas e transformadas pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte. A voz sopra onde quer, a Palavra vem do alto, o Espírito chega impetuoso rompendo o silêncio da morte. O Vento traz a vida, mas não se sabe de onde vem e nem para onde vai.

O Espírito é sopro, hálito, vento que gera vida, que move, impulsiona e sopra onde quer. De onde vem e para onde vai não é fácil dizer. É um Vento leve, refrescante, novo, penetrante, inovador; um sopro sutil, interior, profundo; um sopro que não pode ser detido, sufocado.

Homens e mulheres do Vento somos todos nós, quando nos deixamos mover de acordo com os movimentos do coração de Deus e da paixão pela humanidade. Movidos pelo Vento, pelo Espírito de Deus, acreditamos e construímos mediações libertadoras que promovem, incentivam e enobrecem o espírito humano. Preferimos a proximidade à distância, o dinamismo à inércia, a criatividade à normose.

O Espírito é o sopro que vivifica, anima, restaura e congrega. Pela linguagem do amor, acende a luz da paixão e permite desenvolver os dons da alegria, do entusiasmo, da compaixão, do cuidado, da esperança e da fé inabalável. Tais atitudes construtivas não são obra nossa, mas dom e fruto, isto é, algo de agradável, de fascinante, de belo, de alegre, de espontâneo, de saboroso como um fruto.

Elas nascem da árvore do Espírito. Nós as vivemos, mas é o Espírito que as desperta em nós, pois elas estão presentes como “reservas de humanidade” em cada um de nós.

Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver, escutar o Sopro daquela voz que habita a dimensão mais profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa existência.

Assim, com a Revelação aprendemos que o ser humano é um “todo” e que o corpo humano está unido à terra e ao céu; é argila que vive do sopro vital de Deus. Tanto o sopro vital como a terra são do Senhor; entre si estão indissoluvelmente unidos e numa constante tensão. Somos “argila” habitada pela “Ruah” de Deus; somos corpo “animado” (com ânima), atravessado pelo Alento divino.

O Espírito necessita do corpo para expressar-se e o corpo sem o Sopro não poderia transcender-se. O passo mais decisivo nesta integração o encontramos na Encarnação de Jesus Cristo. Numa religião da Encarnação, como o cristianismo, é natural dar toda a sua importância ao corpo e às suas atitudes. O corpo não é o túmulo da alma, mas o templo do Espírito, o lugar onde o “Verbo se fez carne”. Por meio da Encarnação e por meio da Ressurreição de Jesus, a carne se converteu em espelho da divindade, atravessada pelo Sopro vital. Assim, o corpo humano começou a ocupar um lugar central.

Por isso, o Evangelho deste domingo também nos recorda algo sumamente importante: o Espírito brota do lado aberto e das mãos feridas do Ressuscitado; portanto, não é alheia à violência, à injustiça e ao sofrimento.

É a partir das marcas das feridas que o Espírito se derrama como bálsamo, como alento, como resistência, como energia..., para atravessar os “infernos humanos”, enfrentá-los com ousadia, denunciá-los e buscar coletivamente eliminá-los. O Espírito aparece sempre como “resistência”, atravessando e curando todas as feridas atuais: ódios, intolerâncias, preconceitos, mentiras, violências...

Por isso, celebrar Pentecostes nos incomoda e nos desinstala; a paz que o Espírito nos oferece não é tranquilizadora de consciência, mas uma provocação profunda para sairmos de nossos esconderijos e trabalhar em favor de uma vida esperançada e da reconciliação entre todos. Receber o Espírito nos move sempre à missão e esta não se sustenta com nossas próprias forças, mas que é recebida e alentada como uma brasa inextinguível que nos move sempre à gratidão e à gratuidade.

Texto bíblico: Evangelho segundo Joao 20,19-23

Na oração:

Sinta todo o seu corpo como um templo. E neste templo acolha o Sopro.

- Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu

corpo seja iluminado e plenificado. Deixe vir a Luz e que ela penetre nas partes mais dolorosas do seu ser.

- Sinta que você é um corpo de argila e, também, um corpo de diamante.

- Simplesmente respire na presença d’Aquele que É.

- Com a argila de sua existência, aquecida pelo calor do Espírito de Deus, você pode transformá-la em material de uma nova experiência de vida. Não se trata de sufocar a vida, mas de torná-la leve e luminosa, mantendo límpida a sua fonte, livrando-a da camada de sentimentos doentios.

- Suplique com força: “Vem, Espírito Santo! Vem libertar-me do medo, da mediocridade e da falta de fé em tua força criadora!”